Desde os primeiros “salves”, o PCC mostrou que podia organizar suas tarefas com grandes contingentes. Em 1993, eram as rebeliões; depois, vieram ações com o Comando Vermelho, atos de terror, assassinatos, tráfico, rifas, propinas… Ainda que a chefia fosse trocada, todas essas operações tinham algo em comum: eram controladas via mensagens de líderes que, como gerentes de empresa do submundo, acompanhavam-nas serem cumpridas de dentro de suas celas.
Os números atuais da facção mostram a eficácia dos métodos de disseminação: são 198 mil membros do PCC nos centros de detenção, presença em 90% das prisões brasileiras e células na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no México, no Paraguai e no Peru. Hoje é impossível dissociar a expansão do grupo de seus meios de comunicação. Como poucos ao redor do mundo, o PCC soube usar a tecnologia a seu favor para crescer e se consolidar como um dos mais temidos grupos de crime organizado na América Latina.
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O lugar-comum é crer que, nesse esquema de comunicação, os celulares ocupam o posto mais importante. Para a pesquisadora Camila Nunes Dias do Núcleo de Violência da USP (NEV-USP), autora do livro PCC – Hegemonia Nas Prisões e Monopólio da Violência e professora da Universidade Federal do ABC paulista (UFABC), porém, o canal é mais fundo. As visitas e os advogados, afirma, continuam sendo os principais meios de transmissão dos “salves”. Segundo ela, são eles que levam mensagens mais importantes e sensíveis. “É ilusão achar que é possível bloquear qualquer tipo de comunicação do preso com o mundo externo”, diz.
Mesmo assim, conta a pesquisadora, é inegável que os aparelhos ajudaram muito na consolidação do poder da facção. Basta lembrar que, em março de 2006, dois meses antes dos Crimes de Maio, o jornal Folha de S. Paulo flagrou Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC, usando um celular na penitenciária de Presidente Bernardes, interior de São Paulo. “Sem o celular, essa estrutura que temos hoje não existiria, seria outra coisa”, diz a pesquisadora. “O funcionamento dessa rede criminal, o fluxo das informações, tudo depende das informações em tempo real que só são propiciadas com o uso do celular para quem está na prisão”. Segundo a pesquisa de Camila Dias, a rebelião de 2001 e os crimes de maio de 2006 só foram possíveis por causa do acesso aos celulares e das 25 centrais telefônicas clandestinas do PCC, comandadas pelas mulheres, no ABC paulista, onde as “primeiras-damas” gerenciavam a troca de informações de dentro da cadeia para fora.
Como mostramos em matéria anterior no Motherboard, contrabandear telefones em prisões brasileiras virou indústria de nicho. Advogados e visitantes são pegos com frequência com artimanhas que vão de telefones enfiados nas solas dos chinelos a homens que colam o aparelho na cabeça e o cobrem com peruca afro. Relatórios da Secretaria de Segurança Pública também mostram tentativas de entrega de aparelhos via pombos e drones. Há também carcereiros corruptos que cobram entre R$ 800 e R$ 5 mil para contrabandear celulares e que, depois disso, confiscam os mesmos telefones e os vendem novamente aos prisioneiros. Esses e outros funcionários costumam ser pagos para contrabandear cartões de recarga e reabastecê-los para os presos usar em aparelhos ilegais.
No estudo de campo para construir sua tese, Camila Dias visitou duas prisões sob controle do PCC e reparou que havia diferenças em como cada uma delas tratava o acesso aos telefones. Numa das prisões – os nomes ela não pôde revelar –, os penitenciários disseram que obtiveram os celulares com agentes por meio de um pagamento de R$ 2500. Segundo ela, nesta prisão a revista era simples: quando soava o alarme do detector de metais, havia uma rápida e superficial checagem antes da liberação. Na outra, de vistoria bem mais rígida, o valor para conseguir um celular com funcionários da prisão ficava em torno de R$ 5000.
“O bloqueio e a proibição dão margem para esquemas e relações de corrupção muito grandes envolvendo funcionários e diretores dos presídios”, diz Camila. “A prisão em si propicia a criação de um ambiente promíscuo. Como são muitas as restrições, abrem-se as portas para um mercado ilegal onde se vende tudo e se pode comprar tudo, a depender do preço. Isso também envolve celulares.”
Embora os celulares cheguem a todos graus hierárquicos do grupo, existem aqueles que são mensageiros mais importantes. No caso do PCC, são os boieiros, presos encarregados de entregar as refeições aos demais, e os faxinas, responsáveis pela limpeza. Como suas funções lhes permitem ficar fora das celas e circular com menos restrições, acabam exercendo papel de liderança na comunicação. De acordo com Camila, eles também centralizam eventuais reclamações em relação à administração prisional, servindo como intermediários entre presos e funcionários.
A acadêmica ressalta que não existe setor específico de comunicação no PCC. Caso o “salve” seja destinado apenas aos “irmãos”, é transmitido em reuniões entre eles; se for endereçado a toda a população prisional, os faxinas convocam uma reunião no pátio da unidade. A partir desses encontros organizados, as comunicações com presos de outros centros de detenção e o mundo externo ocorrem via celulares.
O WhatsApp tem variados fins para o PCC: troca de mensagens individuais ou em grupos, envio de notas dos cadernos de contabilidade e informe dos resultados das rifas em que sorteiam prêmios como carros, apartamentos, bicicletas e até pistolas
Os telefones móveis começaram a ter importância para o PCC no começo dos anos 2000. Por volta dessa época, os “salves” mudaram de plataforma. Até então, as mensagens da facção eram dissipadas por cartas e pelos chamados salveiros. “Esse salveiro saía do presídio com essa carta e difundia essa mensagem para o pessoal de fora”, explica o delegado Fernando Santiago, responsável pela apreensão dos cadernos de contabilidade do PCC obtidos com exclusividade pela VICE.
O domínio dos celulares e da internet fez com que o papel dos salveiros sofresse adaptação e perdesse pouco da força. Segundo o delegado Santiago, a maioria das coordenadas passou a ser feita via SMS. “Eles colocavam codificação alfanumérica para passar SMS, facilitava”, explica. Um grande exemplo da proliferação das mensagens de texto ocorreu em fevereiro de 2001, quando o líder do PCC, Sombra, coordenou rebeliões simultâneas em 29 presídios paulistas. Na época, de acordo com a Anatel, havia menos de 20 milhões de aparelhos no Brasil, uma taxa de penetração inferior a 10% da população. O PCC, equipado como pequena parcela dos brasileiros, usou a ferramenta e ainda driblou autoridades ao usar uma rústica criptografia.
Alguns desses códigos são usados ainda hoje pelos “irmãos” do PCC via WhatsApp, segundo o delegado Santiago. “Gastos do x-197” (xeque-mate), “pote x-187” (telefone), “A8” (Desejamos boa sorte) são alguns dos exemplos de mensagens em códigos trocadas pelo WhatsApp as quais o delegado teve acesso. Segundo ele, o app, hoje propriedade do Facebook, tem os mais variados fins para o PCC: troca de mensagens individuais ou em grupos, envio de notas dos cadernos de contabilidade e também informe dos resultados das rifas em que sorteiam, mediante pagamento, prêmios como carros, apartamentos, bicicletas e até pistolas.
Os “salves digitais” também facilitaram, claro, a comunicação com detentos de outras regiões e de outros países. Em 2006, ano dos ataques, a facção estava concentrada em São Paulo e tinha presença em alguns poucos outros estados. De 2007 em diante, quando o crescimento de celulares no Brasil foi de 22% em relação ao ano anterior, a facção começou a se consolidar por todo o país. Em 2010, ano em que o número de telefones móveis superou o de habitantes, o PCC já operava pela maioria dos estados brasileiros e também em países como Bolívia e Paraguai na busca por ampliar o caixa com tráfico de drogas.
Para manter os custos dos celulares, prisioneiros passaram a aplicar o golpe do marketing direto. O funcionamento é simples: ao folhear a lista telefônica, os detentos ligam para residentes de São Paulo e dizem, entre outras variações, coisas como: “sou do PCC. Sei onde seus filhos estudam. Se você não pagar, vou sequestrá-los”. A ameaça termina com uma solução: deposite R$ 220 em créditos num número de telefone específico agora que seus filhos estarão a salvo. Com taxa de retorno positivo de aproximadamente 5%, os detentos ganham milhares de minutos de ligação para subsidiarem suas contas.
Mas nem tudo se baseia em comunicação e “salves”: membros do PCC também podem usar seus aparelhos para a própria vaidade. Da última década para cá, muitos foram flagrados se comunicando e se exibindo via redes sociais. Na época do Orkut, havia comunidades movimentadas que os enalteciam e não eram poucos os perfis de supostos integrantes da facção que ostentavam armas, tatuagens e declarações de apoio. No Facebook, as aparições são mais raras porém também acontecem. De acordo com a pesquisadora Camila Nunes Dias, o uso da rede social de Zuckerberg é feito por lazer e para ostentação, não para organização de contatos.
Quando chegamos a esse ponto, fica a questão: se os celulares são tão importantes para o PCC e as autoridades desejam coibi-los nas prisões, por que não há um controle maior sobre a entrada dos aparelhos? A resposta da Secretaria de Segurança Pública é que são aplicadas cada vez mais medidas para impedir a entrada dos celulares. Em email enviado ao Motherboard, a Secretaria da Administração Penitenciária informou que todas as 163 unidades prisionais do Estado já dispõem de aparelhos de Raio-X de menor e maior porte, além de detectores de metal de alta sensibilidade. Também afirmou estar em andamento um projeto piloto com máquinas que aprimorarão a inspeção corporal.
No ano de 2015, houve o recorde do número de telefones celulares apreendidos nos presídios do regime semiaberto do sistema penitenciário paulista. Foram 8.578 aparelhos interceptados, 9% a mais do que os 7.419 recolhidos em 2014. Parece muito, mas se levarmos em conta o alcance do PCC e seus quase 200 mil membros, talvez a fiscalização não seja tão eficaz assim.
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