Créditos: Ged Carroll/Flickr
Nos Estados Unidos, não é crime mentir. Não é crime trapacear. E não é crime mostrar a alguém como mentir. Então, para silenciar um homem que passou boa parte da vida adulta ensinando pessoas a mentir, o Departamento de Segurança Interna do país buscou uma solução criativa.
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No final de outubro, Douglas Williams, 67 anos, ex-agente do FBI, começará a cumprir uma pena de dois anos na prisão federal. O caso dele é a maior apreensão da “Operação Lie Busters” (Operação Caça-Mentiras): uma iniciativa dos Estados Unidos para apanhar e prender pessoas que ensinam a “passar” nos testes de detecção de mentira de polígrafos.
Williams não está certo de que cometeu um crime. Nem ele, nem um bando de gente. Mas se declarar culpado seria melhor do que os 100 anos de pena e centenas de milhares de dólares de multas à sua espera.
Durante anos, William cobrou cerca de mil dólares por dia para treinar pessoas a passarem na detecção de mentira do polígrafo por meio de seu site polygraph.com. O negócio por si só não é crime e é protegido pela Primeira Emenda. Mas o Departamento de Segurança Interna, insatisfeito com o negócio usado para inocentar criminosos, incitou Williams a cometer uma fraude.
“A criminalização do discurso que prega comportamento ilícito serve de pretexto para suprimir ideias impopulares”
Segundo o processo contra Williams, dois agentes disfarçados pediram para Williams ensinar a passar no teste do polígrafo para burlar uma verificação federal de antecedentes.
Durante os preparativos para o curso e nas próprias aulas, ambos os agentes confessaram, diversas vezes, detalhes de crimes passados e imaginários sobre os quais gostariam de mentir. Segundo a acusação, Williams auxiliou um criminoso a defraudar o governo já que um de seus supostos clientes descreveu a ele atividades (imaginárias) de contrabando.
Em 2013, Williams foi acusado de dois crimes de fraude postal (ele recebeu os pagamentos dos agentes pelo correio) e três crimes de manipulação de testemunho. Cada crime consistia em uma sentença de 20 anos. Chad Dixon, outro cara que costumava demonstrar contramedidas para testes de polígrafo, cumpriu uma pena de oito meses depois de uma operação similar do governo.
“Eu não fazia ideia de que isso era ilegal e ainda acho que não é”, me disse Williams logo após a condenação, semana passada. “Amontoaram tantas acusações que fui esmagado pelo alcance exacerbado do governo — meu advogado me aconselhou a acatar os danos e me declarar culpado.”
Como o governo tornou a mentira ilegal? E que importância tem isso?
“Engajar-se em discursos é legítimo, um ato protegido pela constituição; até mesmo oferecer ferramentas que outros podem usar para infringir a lei é um ato lícito. É permitido defender a mentira, bem como defender trapaças”, me contou Lee Rowland, advogada sênior da União Americana das Liberdades Civis, especializada em desdobramentos da Primeira Emenda.
Anarchist CookbookEla disse que o governo costuma operar na beirada da lei para suprimir discursos.
“Quando o governo consegue provar que alguém que fornece ferramentas para vencer um teste de detecção de mentiras está cometendo um crime, surgem — e deveriam mesmo surgir — fortes impedimentos legais”, disse ela. “O governo só pode levantar acusações em um contexto de triunfo sobre polígrafo quando apresentar um ato significativo de fraude.”
“Quanto mais pessoas compreenderem o que o polígrafo faz ou deixa de fazer, mais chances de virar sucata histórica”
O trabalho de Williams não é muito diferente daqueles que defendiam o comunismo durante a Guerra Fria, ou daqueles que advogam pela legalização das drogas. Como muitas pessoas no mercado, Williams não pretende ajudar criminosos. Na verdade, ele quer chamar atenção para uma tecnologia falha, que é usada para encarcerar e desqualificar pessoas para cargos federais.
“Não tenho interesse em ajudar criminosos a escapar de acusações ou ajudar pessoas desqualificadas a arrumar empregos. Quanto mais pessoas compreenderem o que o polígrafo faz ou deixa de fazer, mais chancesl de virar sucata histórica”, disse Williams. “É uma tecnologia inútil. Não é a prova de escrutínio.”
Em um relatório importante, de 417 páginas, publicado em 2002, o Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos praticamente concordou com Williams, ao sugerir que testes de polígrafo “se baseiam em alicerces científicos fracos, apesar de quase um século de estudos”.
Além de ensinar pessoas a burlar polígrafos, Williams testemunhou perante o Congresso sobre a utilidade do aparelho e apareceu no noticiário 60 Minutes com uma demonstração de sua técnica. Há décadas, ele é um dos oponentes mais veementes da tecnologia e acredita que é por isso que começou a investigação.
“Se você protestar contra um programa do governo que parecer errôneo, alguém vai bater na sua porta”, disse ele.
Rowland comentou que esse tipo de comportamento condiz com o governo federal.
“A criminalização do discurso que prega comportamento ilícito serve de pretexto para suprimir ideias impopulares. Não é loucura presumir que essa é a motivação por trás do caso”, disse ela. “Está claro que o governo crê que tem muita coisa em jogo — se [Williams e pessoas como ele] obtiverem sucesso, trarão à tona o fato de que esse negócio tem brechas, que é uma pseudociência. O mais perturbador é terem usado agentes secretos para fabricar um crime que não vai além de palavras, e apenas palavras.”
Williams cumprirá pena, mas agora que o caso está fechado, ele colocou o site polygraph.com de volta no ar e seu livro já está à venda. Segundo o próprio, a obra contém resmas de evidências que a tecnologia é falha.
“Quero que saibam o que está acontecendo”, disse ele. “Acho que não dá para eu me ferrar mais do que já estou ferrado agora, mas vai saber. É um novo risco. A esta altura do campeonato, acho que o governo tem poder ilimitado.”
Tradução: Stephanie Fernandes