Glenn Weyant usa o muro da fronteira para fazer música abstrata e fantasmagórica, tão bizarra quanto a própria estrutura de metal.
Estamos em Sasabe, Arizona, uma pequena cidade de fronteira pouco conhecida com uma população de 54 habitantes. Era Memorial Day, fazia quase 34º C. Um dos postos mais tranquilos da fronteira norte-americana, Sasabe é cercada pelo Refúgio Animal Buenos Aires, não muito longe da reserva indígena Tohono O’odham, e fica a 60 quilômetros de Nogales.
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O muro é uma estrutura metálica enorme feita de postes de aço de 6 metros separados por poucos centímetros de distância e da cor de sangue seco. Glenn aponta pegadas e marcas de mãos empoeiradas nos dois lados dos postes, evidências de uma infiltração. Muitos descrevem essa muralhacomo uma “lombada” pensada para atrasar quem passa, e não para impedir sua passagem. De acordou com esse vídeo, é possível escalar a barreira em menos de 20 segundos.
Glenn anda ao longo do muro batendo nele com um martelo. Muitos dos postes são cheios de cimento, mas alguns são ocos, tocando como um sino de igreja: rat, rat, rat, rat, DING! Glenn sorriu. “Não é lindo?”, perguntou.
O morador de 50 anos de Tucson prendia o cabelo encaracolado marrom e grisalho num rabo de cavalo. Com um cavanhaque, óculos atléticos, camiseta preta e jeans, ele parece um professor de faculdade, um trabalho que ele teve antes de começara “falar mal” docorpo docente. Hoje ele é pai em período integral. Nascido em nova Jersey, Glenn mora no Sudoeste dos EUA há 20 anos, mas ainda se descreve como um migrante. Aqui ele não é exatamente paranoico, mas coloca uma ênfase extrema em seguir a lei à risca.
É completamente legal morar tão perto do muro. Através dos vãos, pode-se facilmente colocar os dedos do pé no México. Mas tudo ainda parece proibido, sinistro – especialmente sabendo que todos os seus movimentos estão sendo gravados por câmeras, drones e torres de segurança. Mesmo sendo proibido pintar, alterar ou vandalizar de qualquer maneira o muro (e obviamente é proibido pulá-lo), é permitido tocá-lo com as mãos — e fazer música com ele. E é isso o que Glenn faz.
Bem no campo de visão de uma torre de vigilância a cerca de 1,5 Km dali, Glenn descarregou seu equipamento: muitos pedais de efeito, uma pequena mesa de som, um amplificador movido à bateria e vários microfones personalizados que se magnetizam ao metal, amplificando as vibrações que vierem dele. Ele também vestiu sua fantasia, colocando duas máscaras – uma de cabra e outra parecida com um Kokopelli –, porque ele diz que as pessoas na Índia usam uma máscara na parte de trás da cabeça para afastar tigres.
Usando mallets de bateria, um arco de violoncelo e uma viola, ele começou a tocar. A música começou com trinados bizarros e alienígenas, alguns cliques e estalos, depois ecos se repetindo em si mesmos, oscilando em ondas de zumbido. Glenn usou uma vassourinha de bateria entre os postes e até bateu seu mallet contra o solo mexicano. Ele fez um chamado de alce que soava mais como um cavalo gritando de dor. Então ele encarou a torre, puxou a viola e começou a arranhá-la. Inicialmente o som parecia bonito, mas rapidamente se tornou angustiante, tipo uma trilha de filme de terror. Houve uma calmaria estendida e depois ele levou o arco para a cerca, usando-o como que para cortar, fazendo isso estalar e produzir um barulho como de celofane sendo amassando. Finalmente, o som começou a diminuir e desapareceu. Glenn encarou a torre e fez uma reverência.
A composição é “Escape Goat/Ghost”, parte de uma série maior chamada Performance for Surveillance. É apenas mais um dos muitos trabalhos musicais efêmeros de Glenn no The Anta Project (“anta” quer dizer “limite” ou “fronteira” em sânscrito), incluindo “Droneland Security”, “Unreal City Sounding” e “The Two Sun Sin Phony”.
Performance for Surveillance foi escrita com essa mesma torre de vigilância atrás de nós em mente. Registrada na Biblioteca do Congresso dos EUA, é uma partitura anotada que começa com um zumbido de retorno em Dó maior e transições para ondas de rádio e violoncelos tocando para depois inserir ecos. A parte final da apresentação envolve preencher um solicitação baseada na Lei de Liberdade de Informação (FOIA, em inglês) pedindo todo o conteúdo em vídeo, áudio e outras documentações relacionadas ao trabalho. Glenn começou a preencher essas solicitações da FOIA, contendo, inclusive, as coordenadas de GPS, já na primeira apresentação de Performance quando ele usou uma máscara de zebra e tocou o violoncelo para quem quer que o estivesse assistindo através das câmeras.
“Eles não admitiram que tinham a documentação, mas disseram que tinham recebido tudo”, me disse Glenn. “Em certo ponto eles me afirmaram não ter nada, depois outra pessoa escreveu dizendo: ‘Ah, você vai precisar esperar’. Se eles não têm essa documentação, será que essa torre funciona mesmo? Esse instrumento de um bilhão de dólares realmente está funcionando? Ou é só fachada?”, disse entre risos.
Ele continuou importunando o Departamento de Segurança Interna dos EUA, tendo de repetir todos os passos, mas acabou recebendo uma filmagem de cerca de uma hora. O vídeo era do dia e hora de sua apresentação, mas não da localização que ele pediu.
“A câmera dava um zoom, você via dois objetos pretos se movendo e ficava pensando: ‘O que é isso?’”, contou Glenn. “E você percebe que são dois cachorros. Eles estão nos EUA e passam para o México. E a câmera os segue até a rua da cidade mexicana. Quanto esse cara recebe para seguir cachorros que estão entrando no México? Isso é ridículo. É absurdo. É quase tão absurdo quanto fazer música com o muro.”
Um dos muitos objetivos do The Anta Project é desafiar o efeito do observador em que o monitoramento influencia o comportamento do observado. Imagine ser um agente da Patrulha de Fronteira, um membro de um cartel ou um rancheiro observando o muro o dia todo com um binóculo, e aí você vê alguém tocando isso com um arco de violoncelo, fazendo música e barulho com o próprio muro. Como o relacionamento com o objeto muda? A observação de algo muda seu comportamento?
“Como isso muda seu relacionamento para as pessoas de ambos os lados?”, perguntou Glenn. “Isso cria o potencial para algo mais? Você pode construir uma ponte em vez de um muro?”
O ex-professor toca o muro desde 2006, e nesse curto período de tempo ele viu muitas mudanças. Originalmente, a fronteira era apenas arame farpado e galhos. Então, para deter o cruzamento de veículos, a Patrulha da Fronteira construiu barreiras no estilo da Normandia, com trilhos de trem reciclados. Alguns desses enormes “X”de metal ainda pontuam a paisagem. Depois vieram partes de helicóptero modificadas. Atualmente temos esses formidáveis postes de ferro com base de concreto.
Agora as coisas devem se tornar ainda mais complexas, já que a Sasabe Pipeline Co. planeja exportar gás natural do México através de um gasoduto construído no divisor de águas de Altar Valley. Compreensivelmente, muitos grupos de defesa ambiental são contra, já que sua construção seria próxima de um refúgio da vida selvagem. Chegamos a ver os pessoas do lado mexicano trabalhando no gasoduto e tentamos nos comunicar no nosso espanhol quebrado, mas não descobrimos muito.
Para Glenn, a semântica entre “cerca” e “muro” é importante. Ele explicou que quando ouve a palavra “cerca”, você pensa em algo um pouco mais benigno, mais temporário. “Um muro é mais permanente, e há algo essencialmente antiamericano em muros”, ele disse, citando a famosa frase do ex-presidente Ronald Reagan para o antigo líder da URSS Mikhail Gorbachev: “Derrube esse muro!”
“Linguagem é importante. Ouvir alguém dizer ‘muro na fronteira’ é muito mais poderoso que ‘cerca na fronteira’”, explicou. “Eu já acho que há instrumentos numa fronteira. Quilômetros e quilômetros dos mais caros instrumentos.” E eles são realmente caros: 1,6 Km de muro na fronteira custam, em média, US$ 2,8 milhões. “E isso não faz nada além de sons. É inútil.”
Geralmente, quando Glenn começa a trazer seus equipamentos, a Patrulha da Fronteira aparece. Até aquele momento não tínhamos visto nenhum policial – só a torre silenciosa. Mas então um Ford F-150 se aproximou. O agente saiu do veículo com as mãos na cintura e perguntou: “Vocês estão fazendo música ou algo do tipo?”
Glenn parecia em êxtase por ter mais plateia. Explicou todo o projeto, como fez tudo e até entrou na história da fronteira. O agente não parecia muito entretido. “Por que tem que ser essa cerca?”, questionou. Mas não havia nada que ele pudesse fazer – estávamos agindo dentro da lei.
Mas a Patrulha da Fronteira já havia sondado Glenn anteriormente. Um policial da fronteira sugeriu que o músico estava testando as fraquezas do muro, outro o acusou de ser um espião russo. Mas ele disse que se você estiver dirigindo uma caminhonete branca e tiver um chapéu de cowboy, ninguém mexe com você por aqui. Antes de ir embora, o agente mencionou que a maior parte do tráfico de imigrantes tinha sido empurrado para o Texas e que esse pessoal devia estar passando por maus bocados. Parece que ele estava certo – semanas depois, ouvi notícias sobre 8.000 crianças que viajavam sem os pais pegas na fronteira mexicana com o Texas em maio. Desse grupo, cerca de mil delas foram mandadas a Nogales, Arizona, ficando “hospedadas” no Escritório de Reassentamento de Refugiados, um centro de detenção federal. Isso é só uma fração dos estimados 60.000 migrantes que chegaram até aqui apenas neste ano, e os oficiais esperam que esse número suba para 90.000.
Glenn evita se rotular como ativista, mesmo querendo atrair atenção para a questão da fronteira e apoiando o No Más Muerte, um grupo que tenta frear o número de mortes no cruzamento da fronteira. Para Glenn, o Anta Project apenas começou a documentar as estranhezas que ele tem visto no lugar que ama.
“Ouvi como as pessoas estavam morrendo por aqui”, ele disse.
De acordo com a National Foundation for American Policy, pelo menos 2.202 migrantes morreram tentando cruzar a fronteira entre 2001 e 2013 – e isso apenas no Arizona. O total, incluindo os outros estados entre os anos de 1998 e 2012, fica em torno de 5.595 mortes, mas como os registros oficiais têm buracos e nem todos os corpos são encontrados, isso é só uma estimativa.
A pergunta não é o que pode te matar aqui, mas o que não pode. Os riscos incluem afogamento, desidratação, cobras, insolação, hipotermia e até atropelamentos, sem falar no risco de ser morto pela Segurança Interna. Um dos casos de morte mais recentes envolvendo a Patrulha de Fronteira nem tem nada a ver com tráfico ilegal. No dia 10 de outubro de 2012, Jose Antonio Elena Rodriguez, 16 anos, estava em Nogales, México, quando levou oito tiros através do muro, um na cabeça e o resto nas costas. Por quê? A Patrulha de Fronteira diz que ele estava jogando pedras em seu veículo. Ninguém foi considerado responsável.
Em março, participei de uma vigília em Nogales por Jose realizada por que a família ainda quer respostas. Grafites com o rosto do garoto estavam por toda a rua, onde era possível ver de onde os patrulheiros atiraram.
Coincidentemente, Glenn costumava tocar o mesmo muro (do lado norte-americano), quando ainda era feito de partes de helicóptero. “Falei com um cara do Corpo de Engenheiros do Exército que derrubou o muro antigo e construiu o novo mega muro”, relembra. “Achei que um design mais aberto do muro iria facilitar a comunicação, mas aparentemente só ajudou a Patrulha da Fronteira a mirar com mais facilidade.”
Agora, sinais de “Não Ultrapasse” cercam aquela parte do muro, o que provavelmente fez Glenn dizer: “Música pode ser muito assustadora quando tocada no lugar errado”.
Por estar no “lugar errado”, o músico já testemunhou muitas bizarrices no deserto, mas disse que não sabia com certeza se já tinha presenciado um cruzamento ilegal. Ele acrescentou que bizarro é “o que as pessoas deixam para trás”, como escovas de dente, garrafas de água, mapas, sapatinhos de bebê.
“Histórias que nunca são contadas. Os corpos no deserto que nunca são encontrados ou nunca são identificados”, destacou. “Isso é a coisa bizarra. As pessoas continuam vivendo normalmente. Se um acidente de ônibus matasse centenas de pessoas, isso seria notícia de primeira página. Mas centenas de pessoas morrem cruzando o deserto todos os anos, e isso merece apenas uma notinha. São tantas pessoas morrendo, tantas crianças sendo deslocadas. O deserto é a coisa mais normal do mundo. A bizarrice são os pequenos talismãs de desumanidade que existem aqui.”
Glenn quer usar sua música para desafiar essa desumanidade, encorajando outros a seguir seu exemplo. “Toque o mundo”, ele disse. “Tudo é um instrumento musical. Todo som é válido. Você não precisa comprar uma guitarra, um amplificador e tudo mais. Você só precisa de alguns pauzinhos para bater em alguma coisa. Queria ouvir mais pessoas fazendo isso.”
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Tradução: Marina Schnoor