Texto publicado originalmente na VICE Canadá.
Estou deitado de cara no chão de um banheiro de hotel em São Petersburgo, Rússia. O vinil barato do banheiro cola na minha testa e meu corpo inteiro dói como nunca doeu antes. Na minha visão periférica posso ver uma poça do meu próprio mijo, bem amarelo, lentamente se aproximando do meu queixo. Tento me levantar mais minhas pernas estão fracas. Caio na banheira e vomito. Uma tentativa de tomar banho é cortada quando descubro que a água caindo na minha pele é como agulhas sendo enfiadas em baixo das minhas unhas. Hoje vou ficar fedendo e tudo bem. Pego a camisa suja mais limpa que tenho na minha mala antes de me aventurar até o lobby do hotel, esperando encontrar alguma coisa pra rebater a ressaca ou, no mínimo, algum carboidrato para entupir minha vergonha. Saio do quarto e a luz fluorescente do corredor atinge meus olhos. Minha dor de cabeça se intensifica instantaneamente, um solo de bateria arrítmico dentro do meu crânio. A dor é tanta que quando vejo o corpo não sei se é real ou não.
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Espalhado pelo chão do corredor está o maior ser humano que já vi na vida real. O homem deve pesar facilmente uns 180 quilos. Ele está deitado de costas, os membros jogados, a barriga aparecendo por debaixo da camisa. O homem está inconsciente e soltando pequenas respirações entre seus roncos de trovão. Estou prestes a verificar o cara, talvez cutucar a barriga dele para ter certeza que não é uma alucinação, quando perto do elevador vejo outro corpo até maior que o cara aos meus pés. O homem está caído num sonho estranho. Ele rola para o lado e revela dois caras (ligeiramente) menores deitados além dele, como uma versão gigante de bonecas russas. Com a cabeça latejando, tento entender o que está acontecendo.
Os quatro homens no chão são lutadores de sumô. O dia anterior foi o último de uma competição de no World Combat Games. Na festa de encerramento muitos dos lutadores beberam quantidades heroicas de goró. Os caras na minha frente devem ter desmaiado tentando entrar em seus quartos. Nenhum deles era forte o suficiente para mover seu peso morto.
Alguém no corredor solta um peido. Enquanto tento escapar do cheiro começo a me lembrar da noite anterior. Tentei acompanhar o ritmo de bebedeira de homens com literalmente o dobro do meu tamanho, comi mais comida do que achava ser fisicamente possível, e ataquei carros estacionados como um Don Quixote pós-moderno. Quando chego ao final do corredor minha dor de cabeça se intensifica — de novo — e vomito. Saí de rolê com lutadores de sumô e quase morri.
Minha aventura com os lutadores de sumô na verdade começou como uma viagem de trabalho. Fui contratado pela companhia de TV a cabo em que trabalho para cobrir o World Combat Games. Foi meu primeiro trabalho pago como analista de artes marciais e eu estava determinado a mostrar meu valor. Nos meses antes do evento, consumi minha vida estudando a beleza do conflito competitivo. Passei horas aprendendo a pronúncia correta dos nomes dos atletas. Foram dias colados na frente de um computador assistindo a centenas de vídeos de técnicas. Li livros que debatiam as origens arcanas da luta belt-and-jacket, experimentei estratégias de chute alto na minha sala e entediei minha esposa quase até a morte com estatísticas de jiu jitsu. Ainda assim, nada poderia ter me preparado para o espetáculo puro do sumô.
Num nível conceitual eu sabia que lutadores de sumô eram grandes. Mas até ver um Rikishi em pessoa, você não tem ideia de quão gigantescos, e fortes, esses atletas realmente são. Sob as camadas de gordura de cada competidor há poder corporal e velocidade. Quando uma luta começa os lutadores disparam como balas de uma arma. O agarramento intenso deles seria suficiente para esmagar um humano normal, mas os gigantes se entregam com precisão e estratégica a mais violenta das danças. A aura das lutas de sumô é elétrica. A arena vibra com excitação, indo de silêncio antecipatório para comemorações ensurdecedoras enquanto a competição segue. Os lutadores são tratados como astros do rock e nenhum astro é maior que Byamba.
Byamba é duas vezes campeão mundial de sumô. Ele aparece em Treze Homens e um Novo Segredo. Ele apareceu em America’s Got Talent. A VICE já fez o perfil dele para o documentário 10 Mil Calorias por Dia. Na verdade, se você viu um lutador de sumô na televisão na última década, provavelmente era o Byamba. Naquele dia, o campeão foi dominante em sua performance. Suas lutas acabavam em segundos, os oponentes jogados fora do ringue com facilidade. Assistindo os comentários eu pareço um menino, rindo empolgado ao testemunhar esse mestre realizando sua arte agressiva. Quando ele recebeu sua medalha, todas as pessoas assistindo à premiação no ginásio estavam de pé. A festa naquela noite foi dada no nosso hotel. Meu plano era simples: eu ia apertar a mão de Byamba, o parabenizar por um trabalho bem-feito, e deixar o homem em paz para sua comemoração tão merecida. Mas Byamba tinha outros planos.
Quero deixar um prefácio aqui para esclarecer que eu estava muito, muito bêbado naquela noite. Provavelmente mais zoado que nunca, o que é muito, considerando que passei mais de uma década tocando numa banda glam e uma vez chapei com Nikki Sixx por três dias. Apesar de não saber se esses fatos se sustentariam num tribunal, e as coisas aumentam ou encolhem dependendo de quando reconto o evento, sei no meu coração que o tom geral do que estou prestes a dizer é verdade. Vou chamar de não-ficção bêbada. A versão blockbuster do que aconteceu.
Quando cheguei no bar, Byamba estava segurando uma corda de linguiças. Na outra mão ele tinha uma garrafa de vodca Russian Standard. Me aproximei do campeão. O homenzarrão apontou na minha direção. Outro lutador de sumô pegou um sinal de reserva numa mesa (os sinais de reserva russos têm o formato de um chapéu de burro) e arrancou a ponta para criar um funil improvisado. De repente o funil estava na minha boca. Byamba riu e jogou meio litro de vodca direto na minha garganta. Era o começo das festividades e eu já estava destruído.
Depois disso, como grupo, cambaleamos para outra parte do bar. Na minha frente tinha uma mesa enorme: jarrete de porco, chucrute, sopa, montanhas de linguiça e pão. Byamba fez uma pilha no seu prato e gesticulou para eu fazer o mesmo. Todo mundo pegou uma cadeira. Na cabeceira da mesa — na noite em que ele ganhou uma medalha —, Byamba tirou um tempo para conseguiu um lugar para todo mundo. O campeão era humilde e engraçado. Impossível não gostar dele. A mensagem dele era que com a equipe certa e o treinamento certo, todo mundo pode atingir a grandeza. Quando pedi para ele falar sobre essa ideia, ele bebeu mais vodca e terminou minha comida. Engoli uma dúzia de linguiças e tomei pelo menos outro meio litro de vodca. Comi chucrute até meus poros vazarem vinagre. Com o volume de consumo, comecei a acreditar que eu também poderia ser um lutador de sumô. Decidimos testar essa teoria no estacionamento.
Bom, já fiz muita merda nessa vida. Mas posso dizer com certeza que enfrentar lutadores de sumô profissionais num estacionamento de um hotel russo é uma das maiores. Byamba oficializou o evento. Ele explicou que o homem contra qual eu competiria pesava meros 113 quilos. Cento e treze. Isso dá 45 quilos a mais que eu? Eu consigo. O que Byamba esqueceu de me dizer foi que meu competidor também era, por acaso, o campeão mundial de sumô peso-médio. Abastecido por adrenalina e álcool, eu estava prestes a fazer sparring contra meu oponente, com espectadores por todo lado. Colocamos nossas mãos no chão, o que significava o começo da luta. Byamba gritou alguma coisa, aí disparei o mais rápido que consegui. Me chocar contra o corpo do lutador foi como atingir um enorme pedregulho. Empurrei. Agarrei. Tentei levantar uma perna. Nada que eu fazia tinha qualquer efeito. Depois de uns 15 segundos, o campeão de sumô peso-médio me jogou no chão com uma risada jovial. Bati no concreto com força e ouvi num som de algo estalando nas minhas costelas. Para aliviar a dor, alguém me deu mais vodca.
Byamba me disse que para uma primeira vez, eu tinha ido bem. Ele perguntou se eu queria ver o que os lutadores de sumô realmente fazem. Temi estar entrando em outro round, então balancei a cabeça, mas nesse ponto ninguém mais estava prestando atenção. Os lutadores viraram seus copos e começamos a empurrar os carros no estacionamento como uma pessoa normal empurra um carrinho de supermercado. Tentei fazer avançar um sedan médio mas minhas costelas doíam demais. Para compensar procurei mais bebida, mas tinha acabado. Por isso os lutadores de sumô decidiram saquear um restaurante próximo.
Na melhor das hipóteses, entender a aparição de 30 pessoas sem reserva num restaurante é sinônimo de caos. Mas quando você leva em conta que a maioria dessas 30 pessoas são lutadores de sumô, isso vira um completo pandemônio. A comida apareceu do nada e foi consumida tão rápido quanto. Começamos uma competição improvisada de agarramento e caímos sobre as mesas. Quando a bebida não estava sendo servida rápido o suficiente, um dos lutadores andou até o bar, pegou um barril de cerveja e saiu pela porta. A última coisa que lembro antes de apagar é de Byamba tirando fotos com os funcionários do lugar.
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Minha ressaca daquela noite durou umas duas semanas, ela me seguiu da Rússia até o Canadá, e se eu tossia muito forte minhas costelas ainda doíam. Até hoje o cheiro de Russian Standard me faz querer sorrir e vomitar ao mesmo tempo. Enquanto a memória da noite está queimada no fundo do meu crânio, todas as provas do evento se perderam, junto com meu celular, em algum beco de São Petersburgo. Mas o que posso dizer com certeza é o seguinte: depois daquela noite sempre que ouço alguém usar o termo “curtindo como um rockstar” eu rio na cara da pessoa. Curtir como um astro do rock não é nada. Curtir como um lutador de sumô é muito mais do que você pode imaginar.
Robin Black vive de falar sobre MMA. @robinblackmma.
Detalhes das próximas aparições de Black podem ser encontradas aqui.
Graham Isador fica bêbado com meia taça de chardonnay: @pressgang.