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O Roberto Carlos do cinema nacional prepara novo filme com Álvaro Dias, Marcelo Rezende e Ratinho

A Avenida Afonso Pena não possui nada de especial. É a via central em que estão localizadas as principais empresas, bancos, restaurantes e o maior shopping center de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ali também fica o estacionamento Fênix. Mas esse empreendimento também não possui nada de especial.

Apenas o acanhado escritório do proprietário do Fênix destoa por completo de qualquer estacionamento comum. As paredes da sala estão cobertas de cartazes, fotos, recortes de jornais e capas de revistas antigas. É que ali funciona uma produtora de cinema. Inclusive é assim que o proprietário apresenta o local quando atende o telefone:

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“Boa tarde. Dacar Filmes.”

O estacionamento é o empreendimento que atualmente sustenta o ator, produtor e cineasta David Cardoso. Aos 71 anos, o homem que levou dezenas de brasileiros aos cinemas nas décadas de 1970 e 1980 acaba de concluir um novo projeto. Trata-se do longa-metragem Sem Defesa, misto de ficção e documentário que trata da violência nas grandes cidades brasileiras. Quando fala sobre o filme, David demonstra paixão pelo cinema e seus olhos começam a brilhar. “É uma fita de denúncia. É diferente de todos os filmes que fiz até hoje”.

Cardoso dirigiu, protagonizou e bancou a produção do próprio bolso. A película conta com as participações de personalidades díspares como o senador Álvaro Dias, o jornalista Marcelo Rezende e o apresentador de televisão Ratinho. David interpreta o papel principal: um juiz do seu estado que sofre uma tentativa de sequestro e fica paraplégico.

O veterano chegou a perder diversos quilos para poder fazer o personagem numa idade avançada. Empenhou dinheiro e prestígio com autoridades locais para viabilizar o filme. Mas ele garante que Sem Defesa é a última produção da Dacar. “É muito desgastante e difícil”, admite com voz cansada.

Apesar da canseira, o ator segue mantendo o porte de galã. Faz academia diariamente e circula no calor de Campo Grande usando óculos escuros e roupas esportivas. “Meu sonho era ter feito sucesso em Hollywood. Não consegui. Mas pelo menos fiz algo no meu país.” Mesmo tendo seus negócios em Campo Grande, David mora numa casa confortável em Terenos, cidade localizada a trinta quilômetros da capital sul-mato-grossense. É ali que temos a maior parte desta conversa.

José Darcy Cardoso nasceu em 9 de abril de 1943 em Maracaju, no então estado único do Mato Grosso. Na infância e adolescência acompanhava os filmes norte-americanos que passavam em sua cidade natal. “Eu recortava as matérias que a Dulce Damasceno de Brito (jornalista e correspondente brasileira em Hollywood) escrevia no O Cruzeiro sobre os artistas de Los Angeles.”

Eu queria era participar, fazer cinema.

O gosto pelo cinema estrangeiro iria influenciar David de maneira definitiva. No início dos anos 1960, ele veio para São Paulo, morar com uma tia e pretendia formar-se em direito na Faculdade do Largo São Francisco. Mas tudo mudou quando ele conseguiu uma oportunidade com o produtor Amácio Mazzaropi. Foi continuísta e figurante em comédias do humorista caipira como O Lamparina e Meu Japão Brasileiro. Logo depois atuou e trabalhou na equipe técnica de duas produções de Walter Hugo Khouri. “Foram dois filmes excelentes. O primeiro é o Noite Vazia, que é o melhor desse diretor, e depois Corpo Ardente. No primeiro fui continuísta e no segundo assistente de produção. Assim consegui aprender sobre diferentes áreas do cinema.”

Trabalhando com diversos diretores e produtores, Cardoso foi pegando os macetes do meio cinematográfico. Ele admite que nunca se considerou um profissional talentoso. Sua entrega e dedicação faziam a diferença. “Enquanto toda equipe técnica estava dormindo eu já tinha levantado, tomado café, estudado inglês e feito ginástica. Tinha estudado detalhadamente as folhas de continuidade. Nisso, fui vendo que não era tão difícil produzir aquele negócio chamado cinema.”

O galã destaca que nesse período ele não tinha função preferida. Topava qualquer convite que fosse feito. “Se num filme precisasse de contrarregra pra mim estava bom. Eu queria era participar, fazer cinema.” Antes de virar produtor David já tinha colaborado na realização de 33 longas-metragens.

Em 1974, veio a virada na carreira: David Cardoso fundou a produtora Dacar. A sede foi instalada num casarão de 23 cômodos na alameda Dino Bueno, centro de São Paulo. O produtor iniciante era tão obsessivo que construiu um apartamento para ele próprio na parte superior do imóvel. “Queria estar sempre lá. Era uma casa tão grande tanto cabiam dez carros dentro da garagem.”

Aos 31 anos, David iniciou a empresa baseando-se em produtoras norte-americanas. Meticuloso, o produtor pantaneiro estabeleceu uma empresa com padrão acima da média para o cinema da época. Comprou equipamentos fora do país, montou um departamento de câmera e mesmo um departamento de maquiagem. “Trouxe inclusive uma moviola Entretine italiana. Queria que os montadores trabalhassem lá dentro mesmo. Assim, reduzi os custos centralizando a produção num único local.”

O pantaneiro conheceu o cineasta Ozualdo Candeias durante a produção de Sinal Vermelho: As Fêmeas (1972) de Fauzi Mansur. Nesse filme, Candeias fazia um pequeno papel. Houve um bom relacionamento entre os dois. Foi assim que os dois acabaram iniciando uma relação profissional. “Ele foi o diretor mais diferenciado que eu trabalhei na minha vida”, admite David.

O galã acabou chamando Candeias para dirigir o primeiro longa-metragem da Dacar. Ele acreditava que ainda estava inseguro para lançar-se na direção. No entanto, Cardoso fez duas exigências: a fita fosse realizada em seu estado natal e tivesse mulheres nuas. Candeias articulou o roteiro de um thriller com perseguições no pantanal de Mato Grosso: A Fuga. O produtor não gostou desse título. “Sempre fui bom de título. Buscava nomes comerciais para os filmes”, diz Cardoso com orgulho. A Fuga foi lançado comercialmente com o título de Caçada Sangrenta.

Muitas confusões aconteceram quando equipe técnica e elenco foram filmar numa reserva dos índios xavantes. Todos tiveram que almoçar uma iguaria inusitada para o homem branco: arroz com carne de onça. “O gosto daquilo era horrível. Um negócio seboso e depois ficou um cheiro desgraçado”, lembra o diretor de fotografia Virgílio Roveda, o Gaúcho, que trabalhou naquele filme.

Caçada Sangrenta conseguiu pagar-se e teve certo destaque na crítica cinematográfica. Mas David percebeu que ele e Candeias pensavam cinema de maneira diferente. O realizador buscava uma arte autoral que denunciasse os excluídos da sociedade e contatava atores amadores. “A maioria dos trabalhos que fizemos juntos a equipe técnica se resumia a duas pessoas: ele e eu”, resume Gaúcho, que trabalhou em seis longas-metragens assinados pelo diretor. Não é exagero. Em vários de seus filmes Candeias cuidou do argumento, roteiro, fotografia, câmera e mesmo da montagem. Era o autêntico autor de seus filmes. “Assistente em filme dele até podia dar alguma sugestão. Mas ele quase nunca ouvia”, admite Gaúcho.

David buscava um cinema industrial baseado nos conceitos norte-americanos: diferentes profissionais buscando um produto acessível para o grande público. “Queria fazer filme que desse dinheiro”, explica. Mas faltava um diretor para emplacar algum sucesso de bilheteria para a Dacar fazer seu nome na Boca paulista. O galã pantaneiro ainda estava inseguro para dirigir seu primeiro longa-metragem. A alternativa foi apostar num obscuro fotógrafo de fotonovelas.

Falar sobre certas pessoas causa desconforto em David. Isso porque diversos companheiros de outros tempos já morreram. “Eu sou um camarada atormentado pelo passado”, diz com nostalgia. Isso acontece frequentemente quando o galã fala sobre pessoas como o cineasta Jean Garrett (1946-1996). “Ele era um completo desconhecido quando apostei nele.”

O mato-grossense David e o português dos Açores Jean conheceram-se no início da década de 1970. O último era fotógrafo fixo da revista Melodias que publicava fotonovelas estreladas pelo galã pantaneiro. “Vi que ele era ágil e rápido. Tinha pouca cultura, mas era muito intuitivo. Resolvi apostar nele.”

Pouca gente poderia imaginar que aquele jovem loiro com pinta de galã iria tornar-se um dos diretores mais respeitados da Boca paulista. “Conheci o Jean quando ele tinha três meses de Brasil”, relembra o cineasta José Adalto Cardoso. “Ele apareceu na sinagoga que era estúdio do Mojica querendo trabalhar em cinema. Já era marrudo e gostava de se meter em confusão”, recorda Adalto rindo.

O aprendizado de Jean no meio cinematográfico foi com o realizador José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Foi ator e contrarregra em trabalhos como Trilogia de Terror e O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Começou a ficar conhecido na Ruado Triunfo quando passou a trabalhar como fotógrafo de cena. “Ele era um ótimo profissional. Quando entrava numa produção se dedicava e era muito sério”, explica José Adalto Cardoso que foi assistente de direção em Sedução (1974) de Fauzi Mansur. Jean trabalhou como fotógrafo de cena nesse filme.

Tanto eu quanto o Jean somos arianos. Isso era algo importante para mim.

O cineasta Mário Vaz Filho foi um dos colaboradores mais fiéis de Jean Garrett. Trabalharam juntos inúmeras vezes. Ele desmente a versão que Jean teria pouca cultura cinematográfica. “Foi o melhor diretor com quem trabalhei na minha carreira. Ele conheceu o David durante a produção do Sedução. Parece que o Cardoso queria que o Fauzi dirigisse um filme para ele. Não conseguiu e acabou chamando o Jean que naquela produção trabalhava como fotógrafo de cena.”

David Cardoso admite que gostou do trabalho de Jean em Sedução. “Foi ali que eu percebi que ele tinha entendia a gramática do cinema e que poderíamos trabalhar juntos.” Mas o pantaneiro desmente parte da versão defendida por Marinho. “Trabalhei duas vezes com o Fauzi Mansur. Mas nunca imaginei ele dirigindo um filme meu. Ele não tinha a cadência que eu tenho.”

As razões do início da parceria são várias. Mas talvez elas se resumam a uma coincidência um tanto engraçada. “Tanto eu quanto o Jean somos arianos. Isso era algo importante para mim”, entrega David, rindo.

Os dois se reuniram antes de iniciar a primeira produção. David foi sincero com o amigo:

“Jean quero que a Dacar produza o seu primeiro filme como diretor.”

“Duvido David.”

“Mas eu vou apostar em você. Mas tem um porém: vou pagar pouco pra você: somente 5% da bilheteria.”

Eu adorava quando o Blota Júnior nos comparava dizendo: ‘David Cardoso, o Alain Delon brasileiro.”

O iniciante acabou topando. Assim nasceu o segundo longa-metragem de David como produtor e o primeiro de Jean como diretor: A Ilha do Desejo. Nesse filme, Cardoso vive Gilberto, um boa-vida cujo passatempo é recrutar jovens para trabalharem para a cafetina Geny em sua ilha. Algumas moças começam a morrer. O recrutador começa a ser suspeito de ter assassinado as moças.

Cardoso admite que a trama policial foi inspirada nos filmes franceses estrelados pelo galã Alain Delon. “Ele foi o homem mais bonito que eu conheci na minha vida e sempre acompanhei a carreira dele. Eu adorava quando o (apresentador) Blota Júnior nos comparava dizendo: ‘David Cardoso, o Alain Delon brasileiro.”

O galã mantinha amizades na alta sociedade paulista. Tanto que essa fita foi inteiramente rodada na casa do empresário e político Pedro Piva no Guarujá, litoral sul de São Paulo. “Ficou todo mundo confinado na casa dele como se fosse uma ilha.”

Um dos destaques da película foi o elenco feminino. Um filme paulista para ter sucesso na época precisava trazer algumas musas. A Ilha do Desejo contou com atrizes iniciantes que se tornariam referência na Rua do Triunfo como Helena Ramos e Zaíra Bueno. “A Helena eu conheci sendo telemoça do Sílvio Santos, e a Zaíra era modelo fotográfica das fotonovelas. Duas grandes profissionais.”

Apoiado pela mescla de título sugestivo, erotismo softcore e trama policial, A Ilha do Desejo tinha tudo para ser um sucesso de público. E foi. O filme estreou em 7 de junho de 1975 no cine Marabá, principal sala de cinema do centro de São Paulo. Os bons resultados de bilheteria chegaram logo. O longa-metragem da Dacar fez tanto sucesso que conseguiu bater sucessos internacionais daquele momento como o faroeste italiano Meu Nome É Ninguém e o clássico O Poderoso Chefão.

Gaúcho lembra que David ficou conhecido na imprensa da época como o Rei do Marabá. “Isso porque quando entrava uma produção dele acabava tirando um filme estrangeiro do lugar”, rememora o técnico.


David Cardoso em frente ao Cine Marabá. Crédito: FolhaPress.

Era uma época em que os cinemas de rua tinham uma espécie de identidade própria. Eram colocados diversos outdoors na porta do Marabá provocando os transeuntes que passavam pelo centro em São Paulo. O próprio David chega a se emocionar em falar do local onde ele era tido como uma autoridade. “O Marabá era o cinema lançador que mais público levava em São Paulo. Eu fiquei a cara de lá porque todos os meus filmes estreavam lá.”

Na década de 1970, os filmes estreavam na sexta-feira de manhã. Era a primeira sessão de manhã do Marabá que previa se o filme iria ter êxito na bilheteria. “Eu sempre fazia uma noite de lançamento com champanhe, salgadinhos e deixava o público feliz”, rememora Cardoso com emoção. “Eu era o Roberto Carlos do cinema. Por dez anos ninguém me bateu. Não vou me comparar com Xuxa, Trapalhões, esse pessoal que tinha a Globo nas costas.”

A Ilha do Desejo representou um novo momento na carreira do produtor. O filme obteve sucesso nas bilheterias e conseguiu ser aceito pela crítica. Mas o relacionamento com os críticos não incomodava o produtor. “Eu não ligava para isso. A maioria das críticas não era construtiva. Eles me pichavam por puro preconceito”, argumenta.

O curioso é que a maioria das críticas para A Ilha do Desejo são favoráveis. Algo raro para os filmes produzidos na Rua do Triunfo. O crítico Carlos Motta defendeu a película no O Estado de São Paulo: “Estreia na direção do assistente, fotógrafo de cena e comparsa Jean Garrett que aqui demonstra algumas intenções de imagem bem composta e tratada”.

Já Luciano Ramos do Jornal da Tarde ressaltou os cuidados técnicos da produção: “O filme é confeccionado cuidadosamente. A música, por exemplo, é original – requinte atualmente muito raro, nas produções nacionais”. Ramos também elogiou a direção de Garrett: “Cuida da imagem com carinho de artesão, enfeitando-a com preciosismos de montagem e rebuscados movimentos de câmera”.

A trilha sonora sempre foi um detalhe marcante das primeiras produções da Dacar. Nessa época, o músico responsável por essa parte dos filmes era o trompetista Ronaldo Lark. David chegou a estudar direito numa universidade de Guarulhos. O pai de Lark era o dono da faculdade. “O Ronaldo tinha dinheiro, mas ele era boêmio e a paixão dele era tocar na noite de São Paulo. Ele tinha um conjunto e muitas vezes eu ia vê-los tocar. Fomos amigos e sempre pedia para ele cuidar dos meus trabalhos.”

David acredita que A Ilha do Desejo esteja entre as melhores produções da Dacar. “Foi o trabalho que me lançou no mercado cinematográfico nacional. É um filme muito bem acabado e que todo mundo gosta”.

O longa-metragem também foi bastante importante na carreira de Garrett. Com essa produção Jean tornou-se um dos artesãos mais competentes da Rua do Triunfo. O diretor português conseguia fazer filmes de baixo orçamento com eficiência. “Ele foi o melhor diretor da Boca. Era o cara que mais sabia de cinema de lá”, garante o cineasta Mário Vaz Filho.

Wellington Trindade foi o diretor de fotografia e câmera de A Ilha do Desejo. Segundo seus contemporâneos, ele tinha tudo para tornar-se um dos grandes nomes do cinema paulista. “Era um bom profissional. Fez trabalhos conosco e era uma pessoa muito esforçada”, lembra David.

Gaúcho trabalhou algumas vezes como assistente de câmera de Trindade. “Ele tinha tudo para ser um dos grandes técnicos do cinema brasileiro. Mas sofreu um baque terrível.” Trindade acabou tendo um colapso nervoso e afastou-se da área. “Soube depois que ele acabou morrendo muito novo. Uma pena”, lamenta Gaúcho.

A fórmula de utilizar o galã pantaneiro em tramas policiais prosseguiu no trabalho posterior da Dacar: Amadas e Violentadas. O filme chamou atenção por Cardoso interpretar Leandro, um escritor de livros policiais que escrevia suas tramas com riqueza de detalhes. Ele começa a ser suspeito de praticar diversos crimes. Ao mesmo tempo em que ele conhece e acaba se apaixonando pela jovem Marina (Fernanda de Jesus). “Para fazer aquele personagem eu deixei a barba e usei óculos fundo de garrafa para parecer com o (ator) Raymond Burr do Janela Indiscreta.”

David admite que o cinema de Hitchcock influenciou essa fase do seu trabalho. “Sempre gostei muito dele. Eu devo ter assistido o Psicose centenas de vezes. Cheguei a conhecer o (ator) Anthony Perkins pessoalmente em Los Angeles uma vez. Fiquei tão emocionado que acabei falando com ele num inglês macarrônico.”


Cartaz de “Amadas e Violentadas” enquadrado no escritório de Cardoso. Foto por Matheus Trunk.

Amadas e Violentadas chama atenção pela riqueza de detalhes do roteiro. David acredita que isso acontece pela primeira vez em que ele trabalhou com o roteirista Ody Fraga (1927-1987). “Eu considero ele o maior gênio da Boca. É o número um pra mim. Depois que ele morreu acabou o meu cinema”, admite emocionado.

O filme teve o roteiro elaborado tanto por Fraga como por Garrett. “Eles pensaram na trama juntos. Não tinha exigência nenhuma. Era só ter o David Cardoso como protagonista”.

A produção foi praticamente toda rodada na casa do banqueiro Guilherme Mellão no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo. “Parte do final foi realizado no hotel Delfin no Guarujá. Fizemos uma parceria com eles e acabamos não pagando a estadia lá”, relembra David.

O longa-metragem estreou em 25 de março de 1976 mais uma vez no Marabá. Estouro de bilheteria, o filme tornou David uma das referências da Boca paulistana. A confiança do produtor com o diretor acabou aumentando. “Deixei ele ficar com 10% da renda da produção. Isso era muito dinheiro para aquela época”.

As críticas dos jornais paulistas não foram muito favoráveis. “A ideia é copiada de produções B de estúdios estrangeiros. As emoções são as mais baratas (…) Seu erótico é apenas o dos espetáculos de strip-tease mais ordinários”, escreveu o crítico Telmo Martino no Jornal da Tarde.

Já Rubem Biáfora do O Estado de São Paulo achou o filme pretensioso: “Jean Garrett procura repetir o êxito de A Ilha do Desejo (…) o filme anterior era mais ‘primitivo’ ou ‘ingênuo’, mais público classe ‘c’, mais ‘público de Marabá’”.

Mas os resultados das bilheterias foram maiores ainda. “Amadas e Violentadas, filme produzido e interpretado por David Cardoso bate recorde de bilheteria em São Paulo, rendendo 43 mil cruzeiros por dia no cine Marabá no último fim de semana”, publicou Jornal da Tarde semanas depois.

O filme chegou ao Rio de Janeiro e no restante do Brasil. O longa-metragem conseguiu até surpreender alguns críticos cariocas. “Começa muito bem. Tem clima e David Cardoso consegue dar a seu personagem um toque de verdade dramática”, escreveu o crítico Miguel Pereira no O Globo. O jornalista chegou a elogiar os detalhes técnicos do filme: “Seus enquadramentos embora nada inventivos, estão corretos no ponto de vista da narrativa”.

Amadas e Violentadas foi uma das maiores bilheterias da história da produtora do galã pantaneiro. “É um dos meus filmes preferidos. Junto com Dezenove mulheres e um homem foi um dos maiores êxitos da Dacar”, atesta Cardoso.

Em 1977, David Cardoso e Jean Garrett lançaram o terceiro e último filme dos dois juntos: Possuídas pelo Pecado. Trabalho mais ambicioso da dupla, a película contou com mais investimento que todos os trabalhos anteriores da empresa Dacar. “Nesse o Jean já ficou com 15% da renda líquida do filme. Talvez seja a minha produção com o melhor elenco: Márcia Real, Américo Taricano, Benjamin Cattan e até o Agnaldo Rayol.”

Foi na mansão do cantor que parte da trama foi gravada. A casa ficava em Itapecerica da Serra, município da Grande São Paulo. A centralização desse local acabou barateando alguns custos de produção. Para esse filme, David contou com um elenco feminino de primeiro nível: Helena Ramos, Zilda Mayo e Meire Vieira. “A Meire era uma das atrizes mais requisitadas e caras do Rio de Janeiro. Mesmo assim consegui fechar com ela. Uma baita atriz”, detalha David.

Mas a principal estrela do filme foi uma loirinha novata do interior do Paraná: Nicole Puzzi. Foi o ator Dedé Santana que apresentou a jovem para Cardoso numa padaria que ficava próxima a antiga TV Tupi:

“David você poderia ajudar essa minha amiga.”

“Pode ser. Mas ela vai precisar fazer um teste.”

Dedé e Nicole eram namorados. David pediu que Jean Garrett fizesse um teste fotográfico com a moça. O teste foi realizado na produtora Dacar e durou dez minutos:

“Pode contratar. Ela é perfeita.”

“Aquilo nem foi teste”, explica Nicole. “O David ia me contratar de toda maneira, mas o Jean era todo detalhista. Ele queria me conhecer antes de começar a produção.”

Nicole tinha apenas dezessete anos. Mas acabou sendo emancipada para participar do filme. Ela comprou a maioridade de um vendedor trambiqueiro na Praça da Sé, centro de São Paulo. “Foi algo ilegal. Se nós fizéssemos um filme com uma menor como ela hoje seríamos todos presos”, admite David.

Era uma época mais ingênua para certos assuntos. “Não me arrependo de ter feito esse filme”, declara Nicole. “Muito pelo contrário. Possuídas pelo Pecado foi um dos melhores trabalhos que fiz na minha carreira.”

O milionário Leme (Benjamin Cattan) sente-se triste por não ter filhos do seu casamento com Raquel (Meire Vieira). Seu motorista André (David Cardoso) é amante de Raquel e irá tramar um golpe para tentar ficar com a fortuna do patrão. A produção ambiciosa acabou tendo bons resultados tanto na produção como na parte técnica. “O Jean sempre foi um diretor muito caprichoso e acima dos demais da época”, afirma Reynaldo Paes de Barros que foi diretor de fotografia em Possuídas pelo Pecado e que hoje mora em Campo Grande. “Acho que os meus melhores trabalhos como técnico foram com o Jean.”

Rubem Biáfora não perdoou o filme e o diretor Garrett em sua crítica no O Estado de São Paulo: “Fita feita puramente para o estrelismo narcísico e para os dardos comerciais do produtor David Cardoso (…) A oportunidade para Garrett dar vasão a um ‘mood’ gramatical de certo modo expressivo e condizente (e claro bastante “kitsch”) com a tara de personagens e situações fluiu bem mais e melhor no primeiro filme. No segundo já pendia para a fórmula encontrada”.

A película foi outro sucesso da produtora Dacar. Possuídas pelo Pecado alavancou a carreira da atriz Nicole Puzzi dentro da Boca paulista. “O David foi uma das pessoas mais honestas com quem trabalhei”, defende ela. “A verdade é diferente do que muita gente pensa. O David nunca deu em cima de mim e nunca fez teste de sofá com atriz nenhuma. Sempre foi excelente profissional.”

Um detalhe que pouca gente sabe: os dois primeiros filmes dirigidos por Jean na Dacar fizeram sucesso em outros países da América Latina. Isso tanto é verdade que no escritório de David em Campo Grande existe o cartaz argentino de Amadas e Violentadas. “Não eram todos os filmes paulistas que iam para esses mercados. Tive esse privilégio”, diz o produtor com emoção.

Cardoso tentou fazer um quarto filme com Jean. Mas o diretor pediu um valor ainda maior da renda líquida. “Dessa vez ele queria 20%. Acabamos não tendo um acordo, continuamos amigos e cada um seguiu o seu caminho.” O galã pantaneiro percebeu que estava chegando o momento dele próprio dirigir. A ideia veio numa viagem entre São Paulo e Campo Grande: alugar um ônibus e lotar de mulheres. O roteiro foi encomendado a ao roteirista Ody Fraga. Dessa maneira, nasceu um dos maiores clássicos da produtora Dacar: Dezenove Mulheres e Um Homem. “Esse filme talvez tenha sido o meu maior sucesso”, afirma David com nostalgia.

Dezenove Mulheres estreou no Marabá logo depois da segunda parte do Poderoso Chefão. O filme norte-americano ficou quatro semanas no cinema paulistano, enquanto a produção da Dacar ficou o dobro. “É o único longa-metragem nacional até hoje a ficar dois meses direto no Marabá.”

Cardoso tornou-se a estrela masculina de maior prestígio do cinema da Boca. Sua produtora foi responsável por diversos êxitos comerciais como A Noite das Taras, Pornô!, Aqui, Tarados e Caçadas Eróticas. “O cinema precisa ser uma indústria de fomento. O produtor antigo pensava no lucro que ia ter num filme para conseguir fazer o trabalho seguinte. Esse era o cinema de Mazzaropi, Anselmo Duarte, Jece Valadão, Mojica, Tony Vieira, David Cardoso e tantos outros. Esse cinema morreu.”

Mudou tudo. Agora os cinemas ficam nos shoppings e quem não está na principal emissora acaba não tendo tanta chance.

Após o início na Dacar, Jean Garrett firmou-se como um dos diretores mais criativos da Boca paulista. Em seguida, ele dirigiu dois longas-metragens de diferentes gêneros para o produtor Augusto de Cervantes: o suspense Excitação (1977) e o cine-catástrofe Noite em Chamas (1978). Depois perseguiu uma verve autoral em dramas como A Força dos Sentidos (1978) e Mulher, Mulher (1979). “Trabalhar com o Jean foi um privilégio. Ele foi um dos melhores diretores do Brasil”, defende Nicole Puzzi.

Jean nunca mais dirigiu filmes policiais. Já David Cardoso só voltou ao gênero agora com seu novo trabalho: Sem Defesa. “É bem diferente daquelas produções antigas”, diz ele. O produtor veterano sabe que não receberá o dinheiro empenhado nesse novo trabalho. “Eu produzi com dinheiro meu mais para deixar uma mensagem. É uma espécie de testamento”, garante. Ele sabe que o filme dificilmente entrará no cinema comercial. “Mudou tudo. Agora os cinemas ficam nos shoppings e quem não está na principal emissora acaba não tendo tanta chance.”

David Cardoso demonstra ser um artesão eficiente em Sem Defesa. Apesar do empenho, o filme acaba não conseguindo ter o mesmo acabamento técnico de outras produções nacionais contemporâneas. Mesmo assim, o filme tem seus bons momentos. O produtor pantaneiro não desanima. O longa-metragem teve exibições públicas em Campo Grande, Maracaju, São Paulo, Rio de Janeiro e até Los Angeles, nos EUA. “Talvez eu tenha feito esse trabalho mais pra recordar como que era dirigir um filme”, resume ele de maneira sincera. “Mas como eu te disse antes: é a última produção da Dacar.”

Um elemento de Sem Defesa é igual aos primeiros trabalhos do galã pantaneiro. “Eu utilizo a mesma música do Ronaldo Lark dos primeiros filmes. É algo que acabo reutilizando nesse trabalho novo.”

David Cardoso não sabe. Mas Lark morreu em 2008, vítima de câncer no pâncreas. “Eu sou um camarada que vive muito do passado. Muitos amigos já morreram. Um dia eu também vou, mas as pessoas não vão se lembrar de mim. Você ainda vai se lembrar de mim?”, pergunta ele cheio de nostalgia e ainda usando os óculos escuros na noite quente de Terenos. Aos 72 anos, o rei do Marabá tem medo de ser esquecido. “Todo dia passo muitas horas pensando naqueles amigos que já foram como o (diretor de fotografia) Cláudio Portioli, (montador) Jair Garcia Duarte, Jean Garrett e Ody Fraga. Grandes companheiros.”

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