De Malasaña a Chefchaouen a fazer novos amigos

As primeiras impressões
Depois de comer um gelado numa espécie de gelataria de produtos orgânicos/comércio justo — a passar Arcade Fire e levemente decorada com réplicas de artigos vintage, uma menina sorridente e fortemente tatuada ao balcão, a usar uma t-shirt do Homem-Aranha dos anos 70, completamente à espera que não houvesse mais clientes para ir snifar para a casa de banho — decidi sentar-me numa esplanada. Estava em Malasaña e no dia seguinte tinha de apanhar um voo para Tânger.

Os aeroportos são uma espécie de limbo, nunca se sabe muito bem onde se está — algures entre países — e viajar implica esta passagem: somos colocados dentro destas cápsulas que nos levam pelo ar para outro aeroporto e, onde quer que esse outro aeroporto seja, à chegada vamos sentir o mesmo. Continuamos num aeroporto: aterrei em Tânger por 17 euros e apanhei uma outra cápsula, um táxi, até ao terminal de autocarros — até lá chegar, a realidade de outro país nunca me atingiria totalmente.

Saímos, eu e a minha amiga, do táxi e entrámos no terminal e foi aí que percebi que estava noutro país. O terminal era meio escuro, iluminado apenas por lâmpadas que já falhavam, e havia homens a gritar destinos de viagem para angariar clientes. Fomos imediatamente cercados por uns cinco homens que nos perguntaram para onde queríamos ir — sendo a minha amiga uma polaca loira que não usava hijab, conseguimos chamar a atenção de toda a gente e essa atenção não sabia bem.


Para quem não sabe, Chefchaouen é isto.

Lá encontramos um homem que vendia bilhetes para Tetuão que nos disse que de lá conseguíamos um autocarro para Chefchaouen. Comprámos os bilhetes e entrámos num autocarro já cheio. Depois fomos abordados para que guardássemos as mochilas no porão (nem pensar) e notava-se que os donos do autocarro também não se preocupavam muito com coisa nenhuma porque havia montes de coisas partidas e parecia que alguém com óleo nas mãos tinha andado a tocar em todo o lado.

Tânger, Tetuão e, enfim, em Chefchaouen
A viagem foi bastante tranquila. O Norte de Marrocos é bastante verde, com vários edifícios semi-acabados (talvez para não pagar imposto). De Tetuão só conhecemos o terminal, e era bem melhor do que o outro (ninguém parecia querer matar-nos). Comprámos facilmente um bilhete para Chefchaouen a um dos 12 homens que andavam por lá a gritar — aparentemente era um destino popular, especialmente com os estrangeiros.


Uma rua em Chefchaouen.

A viagem durou algumas horas e chegámos quando o sol já se deitava nas montanhas envolventes. De longe, Chefchaouen parecia uma sorrateira aldeia a repousar na encosta de uma montanha cheia de casas simples. Pedimos a um taxista que nos levasse à medina da cidade por 20 dirames, ele concordou e lá fomos. No fim da viagem, por engano, dei-lhe um moeda que pensei que valia 20 dirames, mas que só valia um quarto de dirame, sendo que um dirame equivale a dez cêntimos de euro.

Começava já a anoitecer, por isso corremos para o hostel e só aí é que me apercebi que de facto já estava noutro sítio completamente diferente: as típicas ruas labirínticas, pessoas que nunca tinha visto e tudo pintado de azul (o chão, os postes, as portas e as maçanetas — tudo menos as centenas de gatos vadios).

Depois de tratarmos de todas as formalidades, fomos jantar. Para escolher um restaurante usei o seguinte método: qual é que tem mais gatos? E sentámo-nos nesse. Uma prato normal custava uns 35 dirames (nem quatro euros) e, sem dar por isso passei toda a minha estadia a almoçar e jantar sempre no mesmo restaurante e a comer o mesmo prato, acho que encontrei o meu ponto de conforto culinário óptimo. Volta e meia, as mesquitas começavam a gritar que Alá é o maior e que só existe um deus e etc. Até tive um bocado de saudades dos sinos das igrejas.


Um Mohammed.

A juventude local
Todos os indígenas que conheci eram homens, as mulheres estavam-me interditas. Conheci três jovens, dois locais e outro marroquino que estava a viver por lá, mas mais numa de ando-aqui-a-gastar-o-dinheiro-do-papá-que-pensa-que-estou-numa-universidade-estrangeira — por questões de segurança vamos chamá-lo Mohammed. Dias antes, o Mohammed tinha caído lá pelas montanhas e sofrido alguns ferimentos. A culpa, disse-me ele, foi do escuro e das drogas. As pessoas de Chefchaouen não gostavam muito dele e tinham contado aos pais, que eram médicos em França, que ele andava a traficar heroína — não sei se isso é verdade, foi ele que me contou tudo, mas é um gajo porreiro, talvez um bocado bipolar.

As outras duas pessoas eram locais que se tinham virado para a “indústria turística”. Por questões de segurança vou chamá-los Mohammed 2 e Mohammed 3. Falavam castelhano, francês e um bocado de inglês, mas nunca cheguei a perceber o que faziam exactamente. O pai do Mohammed 2 tinha um hostel, vazio, onde aproveitámos para passar algumas noites. O Mohammed 3 devia trabalhar a arrendar casas para turistas. No fundo, sempre achei que eram prostitutos.



Também havia um quarto Mohammed que a minha amiga tinha conhecido da primeira vez que lá esteve — ao que parece, até deram uns beijos —, mas o Mohammed 4 agora estava na prisão por ter partido um bar. Descobri ainda que, além de prostituto, este quarto amigo era casado com uma espanhola de idade avançada (para obter nacionalidade) e que tinha um namorado no Sul de França.

Já tinha conhecido marroquinos, dois rapazes e uma rapariga, no estrangeiro, nomeadamente em Roma, e eram gente super simpática e ocidental. Bebiam álcool, comiam batatas com sabor a presunto e sabiam divertir-se. Mas com os marroquinos que sempre viveram no seu país foi impossível estabelecer uma relação de amizade porque parecia sempre que me estavam a esconder alguma coisa.

Vou fazer um pequeno aparte e partilhar com vocês, tal e qual, algumas mensagens de texto que enviaram à minha amiga, aparentemente bastante cobiçada sexualmente:

I and we want you. Was waiting for a hot special night full of passion and surprises. So put on your clouths and im waiting in hotels door. Quickly.

Ou ainda…

What i realy want is kissing and sucking every mm of your body while you can’t move your hands and your eyes are boned and you will scream of plesur. We’r alone home. That’s what’s excite me. Is exciting for you to cum volcanos?

Apesar das proibições, os jovens que conheci passavam os dias a fumar droga, borrifando-se para os tabus e para o sistema moral em volta do sexo — ouvi bastantes histórias de prostituição masculina ou de homens que talvez gostassem mais do que deviam de cabras e ovelhas. No fundo, a repressão só piorava as coisas.



Malta do hardcore
A canábis (e todos os derivados) é proibida em Marrocos e, no entanto, todas as pessoas, tanto os locais como os estrangeiros, pareciam ser consumidores em privado. Li que a maior parte do haxixe que aparece pela Europa vem desta região e que a canábis era por aqui plantada, pelas montanhas, por inúmeros agricultores. Depois há cartéis que tratam da exportação, principalmente perto de Ketana.

Contaram-me várias histórias de turistas que, por vezes, iam para onde não deviam e acabavam a ser corridos com pedras. Um português contou-me que alugou um carro e que foi abordado por dois homens de mota, enquanto conduzia no meio do nada — obrigaram-no a parar, mas felizmente só para lhe tentar vender droga.



Lá arranjei uns contactos e combinei de irmos visitar um homem que plantava canábis nas montanhas. Queriam-nos cobrar 200 dirames pela visita, mas ficou de graça depois de uma sessão de regateio. Saímos, depois do almoço, por um trilho que percorria a montanha diagonalmente, por entre arbustos e oliveiras. Pelo caminho, encontrámos umas crianças que tinham apanhado um escorpião com uma garrafa vazia de vodca — putos mais hardcore do que eu com a idade deles, só queria saber de jogar Final Fantasy.

O nosso guia tinha uma enorme cicatriz na mão. Disse-me que a fez em pequeno, a apanhar cobras. Foi mordido e teve de cortar parte da sua própria mão para impedir que o veneno se espalhasse. Achei, simultaneamente, interessante e pouco recomendável.



A plantação
Chegámos a uma casa semi-abandonada em que vivia um senhor já velho com o seu filho. Se não me tivessem mostrado, nunca teria desconfiado que tinham um barracão cheio de canábis a secar, prontinha para ser transformada em haxixe (e em óleo de haxixe, que depois é barrado nos cigarros). O dono da casa era bastante hospitaleiro e preparou-nos um chá de menta debaixo de uma oliveira. Era relativamente difícil alguém passar por lá e ver a plantação proibida, já que ficava numa encosta protegida por árvores.



Depois do chá convidou-me para bater com uns paus numa espécie de mecanismo que ele tinha desenvolvido com uma peneira para separar “o trigo do joio” — ainda há uns dias estava numa gelataria hipster em Malasaña e agora estava a participar no tráfico internacional de droga. Lá ajudei o homem e ele, em troca, ofereceu-me um saquinho cheio do produto da terra. Aceitei, mas ofereci-o depois ao meu guia porque não estava disposto a correr riscos nem a entrar para a estatísticas de turistas que são denunciados à polícia por encomenda (a troco de dinheiro).



Para muitos destes pequenos agricultores plantar canábis é a única forma de subsistência, já que o clima e o solo não permite outras culturas. Este senhor em particular, por exemplo, já tinha sido preso por dois anos depois de alguém o ter denunciado — no fundo, saí de lá a pensar que estas pessoas eram apenas vítimas de caprichos ocidentais e de todo um sistema económico-político.

O regresso
Voltei para Tânger para apanhar o voo para Madrid e acabei a jantar na Pizza Hut, onde uma pizza média custava sete euros. Havia segurança à porta e tudo porque, aparentemente, aqui é um restaurante requintado. Estava a chover e vi uns dromedários na praia e um menino com um cavalo que não queria subir as escadas. Dava para ver Gibraltar do outro lado e os ferries com turistas a chegar.