Música

Do Hotel Chelsea ao Claridges: Patti Smith Ainda É um Xamã

Há algo indiscutivelmente espiritual quando se conhece pessoalmente a Patti Smith. É um pouco como uma audiência com o Papa mas o Papa sendo uma mulher que, em 1974, lançou um single de estreia chamado “Piss Factory”. Adentrei os portões perolados do Claridges e me encaminho para onde Patti está sentada me esperando. Agora com 67 anos, cabelo comprido, áspero, grisalho e um rosto com ares gastos, Patti parece ainda mais xamânica do que no palco. Constantemente me pergunto como uma vida dedicada a contra-cultura pode afetar seus anos futuros. Estaria Patti ainda lendo poesia simbolista do século 19 no seu apartamento do SoHo?

“Adoro ITV2 e ITV3”, diz Patti Smith, com seu sotaque carregado de Nova Jersey, listando as séries criminais britânicas que assiste: Wallander, Wycliffe, Broadchurch, Morse e a sua favorita, Luther. “Ele é tão incrível. E tão lindo! Mas é tão estressante, tão estressante que preciso desligar, às vezes.”

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Patti está na cidade para promover o filme novo do seu amigo Darren Aronofsky, Noah, para o qual ela gravou uma pequena faixa, uma cantiga chamada “Mercy Is”. Seu amor por cantigas é inspirado pelo trabalho de seu herói, William Blake, mas sua afinidade com a forma é algo pessoal. “Minha mãe as cantava pra mim. Cantei-as pros meus filhos. Gosto da forma de uma cantiga; são reconfortantes, bonitas. Essas pequenas agradáveis canções que têm tanta inocência, porque elas são cantadas aos inocentes.” Patti começa então a cantar “Away in a Manger”, e eu me pergunto se estou imaginando aquilo. Olho ao redor pra ver se mais alguém está testemunhando esta cena.

Sou uma grande fã dos outros filmes de Aronofsky — Pi, Requiém por um Sonho, The Wrestler — mas não embarquei muito no Noah. E também fiquei surpresa com o envolvimento de Smith num épico de Hollywood estrelado por Emma Watson, Russell Crowe e Ray Winston, ainda mais quando ela me diz que seu gosto cinematográfico vai de Robert Bresson a Jean-Luc Goddard e Jim Jarmusch. Mesmo assim ela já viu Noah três vezes e diz que adora o filme. Ela diz que escreveu o título da canção com Crowe em mente “como sua musa”. Contenho meu riso.


“Pissing in a River”, um single inicial de Patti de 1976

Pintora e poeta, Patti foi uma corajosa tanto na cena da música quanto da arte no início dos anos 70 em Nova York. Ela circulava entre a patota de Andy Warhol no Max’s Kansas City e no florescente CBGB. Ela trocava suas obras de arte por uma cama no Hotel Chelsea, onde ela ouvia Janis Joplin reclamar sobre sua vida amorosa e ficava até altas horas desenhando e escrevendo. Alta, obscura e angular, ela era a imagem perfeita da androginia; Alan Ginsberg tentou dar em cima dela; Thurston Moore a descreveu como “o garoto mais gostoso da cidade de Nova York”. Ela era amiga do grande escritor americano William Burroughs, amante do dramaturgo Sam Shepherd e a outra metade do fotógrafo Robert Mapplethorpe.

Naquela época, sua inspiração não era Russel Crowe, mas as Iluminações do poeta francês Rimbaud, roubadas de uma livraria na sua cidade natal, Nova Jersey. Rimbaud, ela brincava, era “como um namorado”, e foi o seu trabalho e de William Blake que a inspiraram a escrever poesia. Em 1971 ela começou a apresentar seu trabalho ao vivo na igreja de St. Mark no Bowery por sobre a guitarra elétrica de seu futuro companheiro de banda, Lenny Kaye. Ela cantava os versos “Jesus died for somebody’s sins but not mine”, e isso soava como o novo amanhecer do punk rock, menos um movimento e mais um sentimento, algo gerado pela própria Patti.

Ela lançou seu primeiro disco, Horses, em 1975, com uma foto de Mapplethorpe como capa: Patti contra uma parede branca, jaqueta jogada no ombro. Ela seguiu adiante produzindo mais três discos seminais pelos anos 1970, mas depois de se casar com Fred ‘Sonic’ Smith do MC5, Patti, sem mais nem menos, se mudou para Detroit para começar uma família. Parecia que ela tinha desistido da música como um todo até que, depois da morte de Fred em 1994, ela decidiu voltar fazendo uma turnê com Bob Dylan e gravando com o REM. Ela tem tocado sem parar desde então.

Atualmente ela vive num prédio mambembe no bairro do SoHo, em Manhattan. Pergunto o que ela escuta pela casa. “Neil Young, My Bloody Valentine, Jimi Hendrix. Mas às vezes uma música que ouço no rádio me cativa, tipo aquela “Rolling in the Deep”. Ouvi aquilo um milhão de vezes, e “Stay”, da Rihanna. Às vezes uma música específica se torna minha música pelos próximos seis meses e as pessoas ficam, ‘você não conhece nenhuma outra música?’, e essa vai ser minha única música no iTunes. Tenho umas cinco músicas e ouço só aquelas repetidamente.”

Pergunto com alguma cautela se ela tem planos para começar a desacelerar sua carreira musical. “Tenho 67 anos agora e quero passar muito tempo escrevendo livros. Para mim, trabalhar é puro alívio. Não estou interessada em festas. Só quero ir até o mar e me sentar num café e escrever. Tenho um neto. Sinto que sempre vou trabalhar enquanto estiver saudável e conseguir fazer um bom trabalho. Mas está chegando a hora de tomar algumas decisões. Pensei que largaria tudo quando tivesse 60. Na verdade, achei que já tinha parado quando tinha 35, então é muito bom estar aqui.” Há uma pausa e Patti olha pela janela. Penso com algum egoísmo sobre como, se ela tivesse largado tudo, pessoas como eu, muitas gerações depois da dela, não teriam tido a oportunidade de presenciar suas apresentações messiânicas.


O anúncio original de Horses.

Smith está planejando uma grande turnê para o ano que vem, ela me conta, para celebrar o quadragésimo aniversário de Horses. Surpreendentemente, ela própria não curte muito ver música ao vivo, “nunca vi muita coisa ao vivo porque sou muito impaciente, irrequieta. Se vou a um show tenho vontade de subir no palco, pegar no microfone e dizer ‘minha vez!’. Não sei explicar. Talvez não soe muito generoso. Eu poderia ver Tom Verlaine tocar para sempre, ou My Bloody Valentine, ou Neil Young & Crazy Horse. Mas, caso eu não ame muito a banda, na maior parte do tempo parece que estou sentada num formigueiro”.

Conto a Patti que no ano passado vi Neil Young & Crazy Horse tocaram na noite anterior ao meu aniversário. “Uau, isso é tão bacana. E você me viu no seu aniversário? Adoro aniversários.”

Se ela está sendo indulgente comigo, está escondendo isso muito bem. “Sim, e estranhamente você me cantou feliz aniversário, você se lembra disso?” “Me lembro”, diz Patti, “não sabia que era você”. Gostei de como Patti agia como se nos conhecêssemos há séculos. “Que dia foi?”, ela pergunta. “19 de Junho.” “Bem, em qualquer lugar que eu estiver no dia 19 de Junho desse ano vou pensar ‘É aniversário da Milly hoje’.

O que eu sempre admirei mais na Patti é sua rara conjunção entre auto-confiança e humildade. Isso cria uma avassaladora convicção em talento artístico, tanto dela quanto dos outros. Você pode ouvir isso em seus discos, longas odes líricas aos trabalhos de William Blake ou Andrei Tarkovsky; você tem uma ideia disso ao ler seu livro de memórias, Só Garotos, em que ela exalta o trabalho de seus contemporâneos enquanto navega na sua própria trilha ao sucesso; e eu experimento isso agora em primeira mão, enquanto estamos sentadas falando sobre seu apreço por toda gente desde Idris Elba a Russel Crowe, e discutindo seus incontáveis projetos em constante malabarismo.

Só Garotos conta a história de sua mudança pra Nova York no final dos anos 1960, sua relação com Robert Mapplethorpe de amante a muso, a amigo e sua morte por doenças relacionadas à AIDS. O novo livro caminha em paralelo, mas seu foco vai para outras coisas que aconteceram na mesma época, como sua carreira musical e o relacionamento com seu marido Fred. Ela diz que também planeja “escrever muito sobre a gênese das canções”, o que as produziu e de onde vieram as ideias.

Inspirada por seu amor pelo drama criminal britânico, Patti também está trabalhando numa história de detetives. “Estava em Londres um dia, sentada na grama na igreja St. Giles, perto da Denmark Street e, de repente, toda uma história veio na minha cabeça. Foi como assistir a um filme. Não estava chapada nem nada disso. Vi a história e sabia que deveria escrevê-la. Até considerei me mudar pra Brighton. Pensei em apenas pegar um quarto num hotel lá e trabalhar na minha história de detetives.” Patti é tão fã de histórias de detetives que ela até já apareceu num episódio de Criminal Intent, “Iam cancelar a série e me chamaram para fazer uma cena. Eu deveria ser uma professora de antiguidades falando a uns alunos, algo assim. Foi divertido!”

Antes de nos separarmos, não pude deixar de pedir algum tipo de conselho a Patti. No início dos anos 1970, ela era uma jornalista musical, escrevia críticas para a Rolling Stone e a Creem. Pergunto a ela o que faz um bom jornalista musical. “Acho que a coisa mais importante é se focar no trabalho”. Ela responde. “Quando leio esse suposto jornalismo e vejo um monte de tiradinhas espertas e as pessoas tentando tanto parecerem legais ou depreciarem alguém ao invés de darem uma real noção do trabalho sobre a qual estão escrevendo, penso que nada disso é verdadeiro e não está sendo útil pra ninguém a não ser para o próprio jornalista.”

“A ideia de ser um crítico não é necessariamente criticar, é abrir os olhos das pessoas. Você está partilhando com as pessoas algo que você considera interessante, algo que eles talvez não consigam ver sozinhos. E por isso que eu escrevia coisas sobre Clifton Chenier, ou os irmãos Allman quando estrearam, ou Patty Waters. Não estou dizendo que são ótimos nem nada disso, só estou dizendo que eu sabia qual era minha função, e a função de um jornalista não é mostrar quão bacanas eles são. A função do jornalista é servir ao povo e você quer dar-lhes algo e elevar e enriquecer suas vidas.”

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