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Por volta de 4 da manhã em 17 fevereiro de 2014, Lucero Sanchez foi acordada por gritos e batidas altas. Ela estava dormindo ao lado do amante, o chefe do Cartel de Sinaloa Joaquín “El Chapo” Guzmán Loera. Uma equipe de agentes do DEA e soldados mexicanos estava derrubando a porta da frente do esconderijo deles com um aríete.
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Momentos depois, Sanchez ouviu o secretário pessoal de Chapo, um homem que ela conhecia pelo nome Condor, gritar fora do quarto: “Tío, tío – abre a porta! Eles estão atrás de nós!”.
Os minutos seguintes foram frenéticos. Chapo estava completamente nu, mas não tinha tempo de se preocupar com roupas. Enquanto os soldados lutavam para derrubar a porta de aço reforçado, ele e Condor entraram no banheiro. “Amor, amor – vem aqui”, Chapo chamou.
Quando entrou no banheiro, Sanchez não conseguia acreditar no que via. Pistões hidráulicos levantaram a banheira, revelando a entrada de um túnel. Os homens se apressaram para descer uma escada de madeira, e Chapo ordenou que ela o seguisse. Ela estava apavorada, mas fez o que ele mandou.
“Ouvi ele dizer para o Condor: ‘Feche a banheira’, e quando ele fechou a escuridão era total”, lembrou Sanchez. “Para mim, foi horrível. Eu nunca tinha estado num lugar como aquele. Era muito úmido e cheio de lama.”
O túnel da banheira se ligava ao sistema de esgoto da cidade de Culiacán, o reduto de Chapo no estado mexicano de Sinaloa. Na hora seguinte, Chapo – ainda nu – liderou Sanchez, Condor e uma empregada que estava com eles na casa por uma fuga desesperada pelas passagens subterrâneas sujas. Eles emergiram de lá trêmulos, mas sem ferimentos, num canal de drenagem onde homens de Chapo foram resgatá-los. Eles tinham escapado, por hora.
Sanchez recontou a história incrível quinta passada, em seu testemunho contra Chapo durante o julgamento dele no Tribunal Distrital no Brooklyn. Não só o testemunho chocante dela revelou novos detalhes sobre a infame fuga da Chapo através do túnel da banheira, mas provavelmente acabou com qualquer esperança que ele ainda tinha de ser absolvido.
Nas últimas semanas, o júri do caso Chapo ouviu dezenas de testemunhas, incluindo membros de alto escalão do Cartel de Sinaloa, ex-chefes do tráfico de cocaína da Colômbia, e oficiais da lei de várias nações. Mas nenhum deles foi tão convincente quanto o de Sanchez, uma mulher de 29 anos que atuou brevemente como política em Sinaloa, e foi amante de Chapo de 2011 até a captura dele em 2014, alguns dias depois da fuga pela banheira.
Com a esposa de Chapo, Emma Coronel, assistindo impassível do salão do tribunal, Sanchez retratou o chefe do cartel como manipulador, arrogante e implacável. O que começou como um romance quando Sanchez tinha apenas 21 anos – 30 menos que Chapo – se transformou em algo mais sinistro quando ela a mandou numa missão para comprar várias toneladas de maconha de fazendeiros do Triangulo Dourado, a região montanhosa de produção de drogas onde ela e Chapo nasceram e cresceram.
Sanchez disse que sabia pouco sobre o negócio de maconha, mas que Chapo deu a ela instruções claras sobre o tipo de produto para comprar. Ela disse que se lembrava “dos três Bs de qualidade: buena, bonita y barata”.
Não ficou claro como Sanchez conheceu Chapo, mas ele a cortejou mandando um de seus homens dar a ela um celular. Eles começaram a se comunicar regularmente, e um pouco depois ela recebeu um BlackBerry “consertado”. Segundo testemunhos anteriores, esses aparelhos continham um spyware que permitia a Chapo rastrear a localização dela, monitorar secretamente suas chamadas e mensagens, e ligar remotamente o microfone de celular para ouvir as conversas da amante. Chapo fez a mesma coisa com a esposa e pelo menos outra de suas amantes.
Um informante deu ao FBI acesso às contas de spyware de Chapo, e promotores mostraram ao júri as conversas por mensagem entre ele e Sanchez. As mensagens (PDF abaixo) indicam que Chapo estava explorando o relacionamento deles para seu benefício, enquanto Sanchez parece apaixonada e ingênua. Em uma troca de mensagens, ela fala sobre os carimbos que colocou para ele em 300 quilos de maconha.
Sanchez: “Os corações significam que te amo, e o [número] quatro significa que fui abençoada no dia em que você veio ao mundo. [emoji de beijo] O dia no seu aniversário [emoji de coração].”
Chapo: “Ah, sim, certo. Compre 300 semana que vem, e assim você pode fazer outra viagem, amor.”
Depois disso, Sanchez mandou para Chapo uma foto do filho bebê deles.
Chapo respondeu: “Alô, meu rei. Parabéns por ser um verdadeiro homem. Amor, veja quanto eles têm [disponível] para comprar tudo, mas você precisa abrir os sacos e conferir direito, para não comprar mais com sementes.”
Sanchez disse que se sentia mal pelos fazendeiros de maconha pobres, e disse que estava comprando o produto de qualidade inferior deles de propósito, na esperança de provocar Chapo. “Eu estava mandando sacos com sementes para ele ficar irritado comigo e me pedir para voltar”, ela disse.
Eventualmente, Sanchez disse que estava em contato quase constante com Chapo por telefone. Ele mandava um novo aparelho para ela a cada duas ou três semanas, e eles se encontravam pessoalmente uma ou duas vezes por mês. Às vezes ela se sentia como uma dona de casa, saindo para comprar cuecas e produtos de higiene para Chapo quando ele não podia sair da casa. Mas ele ainda não confiava totalmente nela. Ela diz que os homens dele confiscavam seu celular antes de levá-la até Chapo, e que a vendavam no caminho para as casas seguras.
“Falávamos sobre nosso relacionamento romântico, coisas assim”, disse Sanchez, lembrando suas conversas com Chapo. “Ele disse que queria ter um relacionamento mais estável.”
Ao mesmo tempo, Chapo estava arrastando Sanchez cada vez mais para seu império de drogas. Ele a usou para gerenciar empresas de fachada, incluindo um negócio de sucos na Cidade do México. Ele também tentou convencer Sanchez a envolver seus irmãos no tráfico, ao que ela resistiu. Ela testemunhou que ela e Chapo se afastaram no final de 2012, mas que ela se sentia presa.
“O relacionamento acabou, mas parecia que nunca ia terminar”, ela disse.
Sanchez decidiu trocar de carreira e se candidatar para um cargo público, vencendo a eleição local em sua cidade, Cosalá, Sinaloa, mas disse que foi removida do cargo antes do final do mandato “por causa de meu relacionamento com Joaquín”.
Sanchez evitou o olhar de Chapo do banco da testemunha, e parecia estar satisfeita em testemunhar. Ela tinha um tic nervoso que a fazia piscar os olhos. Depois de uma pausa no testemunho e antes que o júri retornasse, ela começou a chorar e foi escoltada para fora do tribunal para se recompor. Ela estava usando um microfone na lapela e seu choro ainda era audível nos alto-falantes do tribunal quando ela estava fora do salão, o que fez a esposa de Chapo, Coronel, rir.
As mensagens entre Chapo e Sanchez incluíam várias ameaças não tão veladas sobre o que aconteceria se ela se voltasse contra ele. “Olha, a máfia mata pessoas que não pagam ou pessoas que deduram, mas não se você for séria, amor”, ele disse a ela.
Sanchez testemunhou que um pouco antes da fuga pela banheira em 2014, ela estava fazendo uma refeição com Chapo em outro esconderijo quando Condor chegou para dar notícias. O primo de Chapo, um homem conhecido como Juancho, tinha morrido. Sanchez inicialmente achou que ele tinha morrido de causas naturais, mas a resposta de Chapo sugeria algo diferente.
“Primeiro ele não reagiu, depois me olhou sério e disse algo que não gostei”, disse Sanchez. “Ele disse que dali em diante, qualquer pessoa que o traísse ia morrer, fosse da família ou mulher.”
Antes de Sanchez testemunhar, o júri ouviu Victor Vazquez, um agente do DEA que liderou os esforços de captura em 2014. Ele descreveu o que aconteceu enquanto Sanchez e Chapo estavam dormindo no esconderijo em Caliacán. O DEA, com ajuda da Segurança Interna, tinha conseguido se infiltrar na rede de telefones de Chapo e estava monitorando as comunicações dele. Primeiro eles prenderam um dos subordinados de confiança de Chapo, que os levou até o esconderijo. Eles pegaram Chapo de surpresa, mas levaram quase 10 minutos para passar pela porta de ferro reforçado, dando a ele tempo suficiente para abrir a banheira e escapar.
Mais tarde naquele dia, Vazquez e o exército mexicano vasculharam cinco casas seguras de Chapo em Culiacán. Todas eram conectadas por túneis subterrâneos. Vazquez explicou como colocar um pedaço de arame numa tomada abria a banheira em uma das casas. Ele ouviu “um som de rachadura” enquanto o selante se partia e o topo da banheira se abria.
Em uma das casas, Vazquez e os soldados encontraram 2.800 tijolos de metanfetamina, centenas de bananas de plástico cheias de cocaína e um pequeno arsenal, incluindo um lançador de granadas. Itens pessoais encontrados na casa não deixavam dúvida de quem era o proprietário. Eles encontraram a pistola pessoal de Chapo – uma Super .38 com as iniciais JGL na coronha encrustada de diamantes – além de fotos da família dele.
Vazquez disse que o DEA recebeu informações da inteligência de que Chapo tinha fugido para Mazatlán, um resort de praia 217 quilômetros a sudoeste de Calicán. Para evitar serem identificados pelos vigias do cartel, os agentes do DEA e soldados mexicanos foram até uma loja local para comprar shorts, chinelos e outros adereços de praia. “Fingimos que estávamos indo para a praia como turistas”, disse Vazquez.
O DEA e os soldados mexicanos chegaram em Mazatlán em 22 de fevereiro de 2014. Chapo estava hospedado no Hotel Miramar, bem em frente à praia. Havia duas viaturas da política local estacionadas na frente do hotel, o que preocupou Vazquez. Ele suspeitou que os policiais estivessem sendo pagos por Chapo, mas eles saíram quando a equipe pediu. Vazquez testemunhou que ficou no saguão enquanto os soldados vasculhavam o hotel, onde acabaram surpreendendo Chapo num quarto no quarto andar.
Chapo estava sozinho com a esposa e suas filhas gêmeas pequenas. Ele não tentou reagir. Os soldados também prenderam Condor, que estava armado, e uma babá. Nenhum tiro foi dado. Vazquez disse que os soldados o chamaram no estacionamento embaixo do hotel para confirmar a identidade de Chapo.
“Naquele momento, congelei”, disse Vazquez. “Eu disse ‘Caramba – é ele’. Olhei para ele e disse ‘Eres tu‘.”
No interrogatório, o advogado de Chapo, Eduardo Balarezo, mostrou a Vazquez uma foto tirada logo depois da captura que mostrava hematomas e marcas no rosto e torso de Chapo, sugerindo que ele podia ter sido espancado. Ele também questionou o agente do DEA sobre carregar um fuzil durante a operação, já que oficiais dos EUA são proibidos pela lei mexicana de carregar armas no país. Mas as evidências continuavam contra Chapo.
O DEA e os soldados levaram Chapo para uma base ao norte de Culiacán, depois o colocaram num jatinho para a Cidade do México. Ele ficou atrás das grades por menos de um ano antes de fugir novamente, dessa vez através de um túnel de 1,6 quilômetro ligado ao banheiro da cela dele. Ele finalmente foi recapturado em janeiro de 2016, e mais tarde extraditado para o julgamento em Nova York. O veredito do caso dele deve sair no começo de fevereiro.
Sanchez, enquanto isso, foi presa em junho de 2016 enquanto tentava cruzar a fronteira de Tijuana para San Diego. O advogado dela disse que ela estava tentando conseguir asilo para ela e a família. Ela se declarou culpada outubro passado de acusações de conspiração envolvendo drogas, e agora encara de 10 anos a prisão perpétua numa prisão federal. Ela testemunhou contra Chapo na esperança de receber uma pena reduzida.
Mesmo que o testemunho dela quase certamente leve à condenação de Chapo, às vezes parecia que Sanchez ainda estava sob o feitiço do ex-amante. A descrição dela do relacionamento deles destruiu a imagem de Chapo como um chefe do tráfico todo poderoso, em vez disso o mostrando como um pequeno vilão de novela. Mas ela sofreu para explicar por que ficou com ele por tanto tempo, mesmo enquanto ele destruía sua vida.
“Eu estava tentando manter ele feliz”, ela disse. “Eu estava confusa sobre meus sentimentos por ele. Às vezes eu o amava, às vezes não.”
Imagem no topo: Um agente do DEA num dos túneis de fuga de Chapo.
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