Em 2003, a esposa do carpinteiro vietnamita Le Van, 55, faleceu. Com o coração partido, ele abriu sua cova, fez um molde de argila de seu corpo e dormiu ao seu lado por cinco anos.
A história é perturbadora, mas há algo de universal na dor de Le Van. Muitos que sofrem com luto sentem ligação emocional com objetos que representam entes queridos que já se foram, a exemplo do lápides, urnas funerárias e altares.
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No futuro, as pessoas talvez elevem o fenômeno ao cúmulo: estudiosos da área de inteligência artificial preveem que humanos substituirão parentes mortos com clones robóticos com uma cópia digital do cérebro do falecido.
“É como quando empalham um cão ou gato. Não empalhamos seres humanos, mas esta é uma forma de ’empalhar’ suas informações, personalidade e maneirismos”, afirmou Bruce Duncan, diretor da Terasem Movement, instituto de pesquisa que objetiva “transferir consciência humana para computadores e robôs”, nos Estados Unidos.
A empresa já criou milhares de “clones mentais” altamente detalhados para registrar memórias, princípios e atitudes de pessoas específicas. Com os dados em mãos, os cientistas criaram um dos robôs mais avançados do mundo: uma réplica da esposa do fundador do Terasem Movement Martine Rothblatt, chamada Bina48, ao custo de cerca de 150.000 dólares.
Rothblatt, que é transgênero e a CEO com maior salário dos EUA, liderou o projeto para criar uma réplica digital do cérebro humano. Ela usou sua esposa, Bina Aspen, como protótipo inicial, instalando o “arquivo mental” da sua mulher em um robô projetado como ela.
Constituída por uma espécie de borracha semelhante a pele, Bina48 foi criada com mais de 100 horas de áudio gravados pela Bina humana. Contém, a bem dizer, suas memórias e crenças. Como a Bina real, o robô “ama” flores, tem pele morena e um senso de humor autodepreciativo. Também é capaz de realizar expressões faciais, cumprimenta as pessoas e conversa (incluindo umas bizarrices), tudo possibilitado por software de reconhecimento facial e de voz, rastreamento de movimentos e conectividade à internet.
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Bina48 ainda tem alguns defeitos, mas é uma prova de conceito funcional. Ela é um exemplo de como, no futuro, a barreira entre os mundos biológico e digital poderão ruir, disse Duncan. “A definição de ‘vivo’ pode até evoluir para ‘contanto que suas informações pessoais essenciais sigam organizadas e acessíveis’”, comentou.
De acordo com Duncan, versões mais avançadas de robôs como Bina48 podem chegar ao mercado nos próximos 10 ou 20 anos com preços entre 25 e 30.000 dólares e com diversas aplicações como a replicação de gente falecida. “Parecerá novidade porque a tecnologia é nova. Mas o desejo de manter contato com alguém após a morte não é novo”, disse. “Em termos antropológicos, temos projetado personalidade em objetos inanimados por centenas de anos.”
“Encare desta forma: quando a bússola foi inventada, de repente nos vimos capazes de viajar pelo mundo de forma inédita. Mas a bússola não é a responsável por nossa vontade de viajar.”
Pelo menos 56.000 pessoas já cederam informações para a criação de arquivos mentais. Os dados vão para um espaço de armazenagem com base na rede para a preservação de “características únicas e essenciais de cada um para o futuro”, de acordo com a Lifenaut, espécie de ramificação do Terasem Movement que coleta dados de personalidade humana. O objetivo é capturar as atitudes, crenças e memórias de uma pessoa e então criar um banco de dados que um dia será repassado para um robô ou holograma, de acordo com seu site. Até mesmo trejeitos e manias de uma pessoa podem ser recriados.
Nesse negócio há também o desejo de imortalidade. Alguns usuários gostam da ideia de viver para sempre. Outros querem documentar a si mesmos como parte da história humana e passar adiante um projeto artístico ou informação genealógica para seus filhos. Poucos usarão a tecnologia para “relembrar” e “comunicar-se” com os mortos, afirma Duncan.
Sua empresa não é a única entrando nessa de clones com IA. No ano passado, o Google requisitou a patente de um produto que poderia replicar a personalidade específica de um ser humano, incluindo aí “um ente querido falecido” ou uma “celebridade”.
A patente descreve um sistema com base na nuvem em que uma “personalidade” digital poderá ser baixada como um aplicativo. “A personalidade robótica também poderá ser modificável a partir de uma personalidade-base para fornecer estados ou humores que representem estágios transitórios de felicidade, medo, surpresa”, diz a patente. “A personalidade robótica [será] compartilhável por uma série de robôs em diversos locais.”
A patente também afirma que o humor do robô poderá mudar e sua personalidade evoluir com o tempo. O porta-voz do Google se negou a comentar o assunto, mas novas adições à patente foram enviadas em meados de fevereiro, o que indica o avanço do projeto.
Mas, embora as gigantes da tecnologia se debrucem sobre o conceito, projetos semelhantes já vieram e fracassaram. Há seis anos, a agora-finada empresa Intellitar lançou um clone digital que prometia aos usuários a “eternidade virtual” e a possibilidade de se comunicar com o eu digital de alguém após a morte. Os usuários enviavam fotos, amostras de voz e testes de personalidade para criar um cérebro “avatar” por 25 dólares mensais. A empresa fechou em dois anos porque atraiu apenas 10.000 clientes.
Se a ideia soa familiar, é porque ela inspirou a ficção científica, incluindo um episódio do drama sci-fi britânico Black Mirror. No arrepiante capítulo “Be Right Back“, uma mulher encomenda um substituto digital de seu falecido namorado por meio de um serviço online. Posteriormente, ela faz o upgrade um clone robótico seu e, depois, vem a dependência emocional, o sexo e a bizarrice.
O fato é que há uma demanda por reencarnação robótica, de acordo com especialistas em luto. “As pessoas consideram o luto uma experiência dolorosa, até mesmo excruciante. Se esta é uma maneira de diminuir a dor, ela atrairá as pessoas”, disse Robert Zucker, conselheiro em luto e autor de The Journey Through Grief and Loss, livro sem versão em português.
Mas, assim como depender de remédios, reencarnar pessoas em formatos robóticos talvez não seja uma forma saudável de lidar com a situação. “Há algo de muito problemático nisso”, disse Zucker. “Parece ser motivo por medo, um desejo de amortecer a dor e fazer com que o mundo não sinta o pesar. Estaríamos nos enganando.”
“Há muitas formas de luto estranhas e extremas”
Ele comenta ainda que “há muitas formas de luto estranhas e extremas”. “Contanto que isso não impeça a pessoa de seguir com a sua vida de forma saudável – talvez funcione.”
Especialistas em tecnologia admitem que provavelmente sejam necessárias décadas para que reencarnação robótica se torne socialmente aceitável. “Pode levar uma geração ou duas para que tecnologias como o ‘arquivo mental’ evoluam para uma forma de memorialização mais mainstream”, diz Duncan.
Ainda assim, segundo ele, o conceito não está distante das formas atuais com que usamos a tecnologia para relembrar quem já se foi. “As pessoas acham normal ver vídeos de eventos passados importantes de nossas vidas, como casamentos e aniversários. É bem possível que, socialmente, torne-se mais aceitável interagir com as personas digitais de gente falecida de forma mais dinâmica e interativa.”
Mas os cientistas talvez nunca capturem a essência do ser humano, desafiou Zucker. “Há mais em uma pessoa que seu intelecto e experiências. Há um aspecto espiritual”, falou.
No final, devemos abraçar aquilo que nos torna humanos – mesmo a dor, disse Zucker. “Se as pessoas creêm que podem pular essa etapa do luto, perdem uma oportunidade. Ele nos ensina sobre a vida e o amor. E isso faz parte de ser humano.”
Tradução: Thiago “Índio” Silva