Diz a máxima que o trabalho enobrece o homem. Talvez fosse melhor pensar que o trabalho molda o homem. Ao menos para quem vive uma realidade bruta, a crueldade dos meios de vida cava sulcos na pele e na alma. A escritora nascida em Nova Iguaçu e residente no Rio, Ana Paula Maia, 41, prestes a lançar em março pela Companhia das Letras o romance Enterre Seus Mortos, vem construindo uma sólida obra que olha no âmago de homens assim, em busca de revelar a humanidade que há sob a couraça. Eles estão nos abatedouros, nos sistemas prisionais, nas carvoarias, aterros sanitários e crematórios. Pantaneiros que matam pelo ofício ou em nome da honra, atravessam o fogo, encaram bichos selvagens. É como se a lei do Velho Oeste repousasse sobre uma localidade imaginária fronteiriça da América Latina.
Dona de um texto econômico e envolvente, ela se destacou com a instigante trilogia A Saga dos Brutos – Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos & O Trabalho Sujo dos Outros (volume único, 2009) e Carvão Animal (2011) –, seguida do romance De Gados e Homens (2013). De um título a outro, a mecânica das histórias só evoluiu. Seu livro mais recente, Assim Na Terra Como Embaixo da Terra, o qual narra os últimos dias de horror de uma colônia penal à beira de ser desativada, foi um grande salto e repercutiu positivamente na cena literária da Argentina. Ana Paula ainda comemorava o sucesso quando recebeu o convite da Cia das Letras. Com a saída da Record, pela primeira vez ela escreve e publica dois romances em menos de um ano.
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No intervalo entre os lançamentos, Ana Paula Maia atendeu a VICE . Na conversa, ela contou que Enterre Seus Mortos fala sobre cadáveres e traz o retorno do personagem Edgar Wilson. Acompanhe:
VICE: As suas histórias abordam as atividades de luta pela sobrevivência e a própria condição de vida do homem bruto, rural… Há também uma relação de autoridade implícita nessas dinâmicas?
Ana Paula Maia: Na verdade, quando eu escrevo sobre essa temática, eu nem acho muito que tem gente mandando ou obedecendo tanto, sabe. Acho que está todo mundo num nível muito semelhante de miserabilidade, ali… Na verdade, eles não são miseráveis, miserável é aquele personagem que vaga à beira da história. Os personagens principais são homens trabalhadores braçais. Ninguém está passando fome, nada. São trabalhadores braçais, eles fazem o trabalho pesado, e esse tipo de trabalhador está muito perto da gente, outros estão mais distantes, porque são do campo. Está num matadouro, ou é um lixeiro, que está muito perto, eu falo de gente que quebra asfalto… então é um trabalho bruto, né. E que em geral tem a ver com morte e com sujeira. Isso é um fato, mesmo, quando um cara fala que é lixeiro, as pessoas não tocam. Quando o cara fala que trabalha no Instituto Médico Legal, as pessoas evitam. Foram relatos que eu fui coletando ao longo da vida literária. É muito trabalho assim: é lixo ou morte. Alguns são violentos, outros não, eles só estão inseridos numa dinâmica pesada.
E esses personagens trafegam pelas histórias. Às vezes de passagem, ou como protagonistas…
Tem um personagem que é recorrente nos meus livros, o Edgar Wilson, e ele é um que mata, que é necessário dentro daquela dinâmica da história, mas não chega a ser um matador de aluguel. A não ser no segundo livro, que é o Edgar lá na frente. Porque a cronologia das histórias não segue o padrão, eu fui voltando. Tem parte de algum elemento do real, sim, no pano de fundo, mas as histórias são baseadas na ficção. Tem a empatia, é um universo de que gosto. Moro na cidade, mas gosto do campo. Sou mulher, mas gosto de escrever sobre homem, porque eu tenho uma empatia com os homens muito grande, prefiro ficar mais perto dos homens do que das mulheres. Tem muito a ver comigo mesmo, com a minha personalidade. Eu sempre olhei pras margens, não importa, onde estiver, sempre olho pras margens. Mas não me interesso muito por essa miséria urbana, não. Gosto do rural, gosto muito do homem caçador, do sujeito que dirige uma caminhonete, gosto disso, desse universo.
Mas quando você diz miséria, não é que você está se referindo ao pobre coitado, certo?
Estou falando do homem que — ele tem um problema — vai lá e mata pela dívida dele, que espera a justiça, a polícia, e a polícia não chega, não passa por ali… São homens trabalhadores, brutos, que nasceram naquilo. Eu costumo dizer que os meus homens não são sertanejos, eles são mais pantaneiros, é outra região. Eu gosto desse espaço, de gado, o homem pantaneiro lida mais com o gado. Aquela região do Matogrosso do Sul e tudo, me encanta mais, aquela fronteira do Brasil, as regiões próximas da Bolívia, Paraguai. O meu universo vai muito mais para aquele lado do Brasil do que do homem sertanejo.
“Então eu não lido muito com a miséria do pobrezinho, eu lido com homens que vão morrer depois de tomar um tiro na cara, uma facada, uma flechada.”
As histórias não têm uma localização geográfica definida. Acho que só no primeiro livro que escrevi tinha. E cada vez mais essa localização é perdida, ninguém faz ideia de onde se passa, nem eu. É um lugar que está na minha cabeça e que pode ser qualquer um. Pode ser aqui ou qualquer outro aí pela América do Sul, não importa muito. São personagens bem marcados, e, o pano de fundo, de acordo com a profissão, com o que eles vão fazer, a trama. Então eu não lido muito com a miséria do pobrezinho, eu lido com homens que vão morrer depois de tomar um tiro na cara, uma facada, uma flechada. Mas também não mato gratuitamente meus personagens. É um universo que tem muita referência do Sergio Leone, de quem gosto muito, Billy Wilder, esse cenário me agrada, me encanta.
Essa imersão em universos de violência e morte não te causa um esgotamento?
Causa, bastante. Quase todo ano eu sinto um esgotamento, mas hoje em dia eu já vou controlando. Mas de 2015 pra 2016 escrevi dois romances em um ano e quatro meses… Num período de dois meses tive que escrever outro, e não fazia a menor ideia do que seria. E é esse próximo que vai sair. Com este que vai sair em março, serão dois livros em dez meses. O Assim Na Terra…, que saiu em maio pela Record, e o próximo, que está na porta, pela Companhia das Letras. O da Cia veio por encomenda, então foi, assim, uma coisa em cima da outra. Foi muito puxado.
Eles que propuseram a temática?
Tinha que ser alguma coisa ligada a um certo terror, econômico, sobrenatural, psicológico, algo assim. Que não é a minha linha, não sou uma escritora de terror. Mas como era um terror mais no aspecto incômodo, do estranhamento, aí cabe.
Do que se trata a história?
Ele é mais leve do que o Assim Na Terra…, é um livro sobre cadáveres, mas apesar do tema, ele é mais suave no desdobramento, a atmosfera dele é bem menos densa, mas ele tem um estranhamento. Eu acho que em comparação é uma coisa tranquila, não sei se é, talvez seja só a minha impressão [risos], porque já vinha de algo tão pesado. Mas ele tem algo mais pós-apocalíptico, e o Edgar Wilson protagonizando de novo. Desde o De Gados e Homens ele não vinha, e está de volta agora.
Você acredita em coisas sobrenaturais ou é apenas um assunto que rende boas histórias?
Acredito em tudo. Em tudo e mais um pouco! Sempre acreditei, sempre gostei de filme de terror, até comecei a assistir filme de terror por causa da temática. Não assisto tanto hoje em dia, mas gosto muito dessa temática do sobrenatural. É algo que me interessa, aos pouquinhos estou colocando nos livros, acho que em De Gados e Homens já aparece um pouco, no Assim Na Terra…, um pouco mais. Eu tenho uma novela, por exemplo, chamada O Trabalho Sujo dos Outros, que tem um bode já na história, e esse bicho já é um bode místico. Então algumas coisas vão surgindo no meio do nada, no meio daquela trama e tal, tem alguma pincelada que acho que vem se intensificando, principalmente nos dois livros recentes, mais ainda neste último, acho que consegui me aprofundar um pouquinho mais nesse elemento de estranhamento sobrenatural. Tem que tomar muito cuidado pra não ficar cafona, ruim, perder a mão. Gosto desse assunto, mas pra trabalhar com sutileza. É o que tentei fazer.
Eu acho legal esse cruzamento de personagens e situações entre os livros, além da ordem não cronológica…
Justamente, é um livro só costurado, com vários fragmentos. O Bronco Gil volta no Assim Na Terra… como protagonista, o Edgar Wilson… Por exemplo, o protagonista de O Trabalho Sujo dos Outros, o lixeiro Erasmo Vagner, ele volta, numa passagem muito rápida, no final do Carvão Animal, meu quarto livro, eles se cruzam. São todos habitantes do mesmo universo, vivem na mesma região, um lugar imaginário que não sei o nome, e eles vão se cruzando. No Enterrem Seus Mortos tem um diálogo em que se comenta uma passagem que aconteceu no De Gados e Homens. Quando o Assim Na Terra… termina, o Bronco Gil está indo pra De Gados…, então tem uma costura.
Por que o estilo econômico na escrita?
Meu estilo é “menos é mais”. Meu estilo de vida. Conscientemente uma escolha. Na verdade, eu só leio livro em que menos é mais. Se não, eu largo. O mesmo com filme, se começa a encher muita linguiça, tchau. Acho que a concisão é imprescindível, e é difícil. É muito mais fácil ficar dando voltas pra falar uma coisinha do que ser direto e objetivo. Acho que você pode lembrar o leitor, em algum momento, de algo importante, mas aquela demora muito grande em cima de um detalhe, eu particularmente não gosto. Isso dificulta às vezes de eu ler um livro. Eu particularmente gosto de texto limpo, assim como de filme. Os meus personagens são muito limpos também, eles não têm essa verborragia toda. O texto é mais seco porque reflete isso também. Os meus dois primeiros livros não foram econômicos, consegui chegar nessa concisão a partir do terceiro.
As suas narrativas trazem questões que suscitam todo um pensamento filosófico, dilemas… De onde vem isso?
Acho que é alguma coisa que reflete nisso e reverbera, mas eu não sei. Quando estou escrevendo, aquilo é o que é. Todas as histórias têm um personagem como filtro, ou às vezes um narrador. Na verdade, me sinto muito mais uma narradora de um diálogo que estou assistindo, acompanhando. Só que eu tenho acesso aos sentimentos, acho que nem eu às vezes compreendo o todo daquilo, mas em parte eu também entendo. Essas questões filosóficas vão entrando como um filtro, uma colcha de retalhos, que você vai costurando, uma ideia puxa outra ideia, e constrói como se fosse uma melodia, uma nota puxa outra nota. Além de eu ter o personagem como um parceiro de escrita, o leitor é a parte que complementa, porque aí vai ser o filtro dele. Como isso atinge o leitor é uma outra etapa da composição do livro. O livro nunca se esgota. Porque às vezes o leitor de hoje não é aquele que vai ler daqui a dez anos. Eu chuto a bola, ela começa a rolar naquele campo, e eu vou só descrevendo o jogo.
O destino do livro está nas mãos do leitor, e o leitor muda de geração pra geração.
Sim, e às vezes o leitor nem gosta num determinado momento, e vai gostar no outro. Quando eu assisti O Bebê de Rosemary, do Roman Polansky, eu odiei, achei horrível. Passou um tempo, assisti de novo, e achei horrível outra vez, tedioso. Na terceira vez, depois de um tempo, me apaixonei pelo filme, assisti diversas vezes apaixonada, comprei o livro, li em inglês já, umas duas vezes. Sei lá o que aconteceu [risos]. Teve até uma minissérie pra TV, que eu realmente não recomendo, é meio cafoninha, mas gosto tanto da história que fui lá e assisti. A obra nunca se esgota. A gente cria o filho e ele toma o rumo, toma a estrada.
Vi que o seu trabalho está repercutindo bem na Argentina. Você tem um público formado lá?
O Assim Na Terra… saiu em maio aqui [2017], e em outubro na Argentina. Aí em novembro saiu uma excelente resenha. Até que a Beatriz Sarlo, que é uma bem importante pensadora da América Latina, fez uma baita resenha do livro. Vai fazer seis anos que publico no exterior, o primeiro romance foi em 2012. Já tive uma boa repercussão na Alemanha… depende muito. Agora está repercutindo na Argentina. Lá é um polo importante que acaba difundindo na América Latina, porque nós, entre aspas, não somos América Latina, né [risos], porque a gente não fala espanhol, então ficamos muito ilhados, o problema da língua deixa a gente muito separado. Então se você não tem nada que reverbere positivamente em espanhol é muito complicado. Porque você tem que ser um autor, além de brasileiro, latino-americano. Pra mim, ser uma escritora latina é muito mais importante do que ser uma brasileira na França. Entendeu? Eu tenho mais interesse na América Latina do que na Europa.
Você se lembra de quando começou a gostar de ler?
Eu tive dois momentos de leitura. Na infância eu lia, ali com uns sete anos, livros infantis. Fui até os meus 13 anos. Aí lia Ágata Christie, pegava na biblioteca da escola. Um dia entrei lá, aí tinha uns livros de suspense, umas coisinhas assim. Aí eu parei de ler na adolescência, fui tocar, montei uma banda de punk rock. Mas não era punk, nada, não, era só baterista. Punk mesmo, nunca fui. Fiquei cinco anos assim, quem querer ler, só biografia de banda de rock. Já cinema, eu comia o melhor. Aos 14 anos eu não existia nem lançamento, só os clássicos. E eu tive acesso a uma locadora que era muito boa de filmes clássicos, chegava a ter a filmografia do Hitchcock. Era incrível, tanto que foi muito desfalcada, porque roubavam vários filmes. E era bem o início da TV por assinatura no Brasil. Peguei aquele início de Fox, assistia Arquivo X, muita coisa boa. Só fui retomar a leitura lá pelos 18 anos. Mas era pra valer, lia uns quatro livros ao mesmo tempo.
E de escrever?
Com 21 comecei a rabiscar, e com 23 escrevi meu primeiro romance. Comecei rabiscando contos, mas nada publicável. Ficava escrevendo ali no computador, depois imprimia, jogava fora… Mas o meu primeiro texto melhor foi um curta-metragem, esse curta eu levei pra faculdade e ele foi filmado até, mas nunca editado. Se perdeu aquilo. Nem lembro mais a história. Eu tinha dificuldade de escrever literatura, pequei aquele manual de roteiro, fiz naquele formato e saiu. Logo depois continuei a escrever uns contos, senti que dava, peguei umas férias da faculdade e fiz o romance em dois meses e meio, que foi publicado em 2003.
Mas eu demorei pra publicar o segundo, foram quatro anos entre um e outro. Dali pra frente, comecei a publicar rotineiramente, porque no terceiro livro eu fui pra Record. O primeiro foi uma editora pequena do Rio, a 7 Letras, o segundo, A Guerra dos Bastardos, publiquei pela Língua Geral, na sequência já fui pra Record e fiquei nove anos, foram quatro livros.
Pra terminar, gostaria que comentasse sobre a capa do novo livro. Já teve vaca, boi, cachorro, um javali e agora um abutre. Mais um bicho na capa?
Eu amei a capa. Mais um bicho na capa. Eu pedi que fosse, ainda bem que concordaram. Achei perfeito. No Assim Na Terra… também, porque o livro é aquilo ali. A capa o traduz. Só que acho que essa capa é mais alegrinha, o que é bom também. O livro é mais pesado. Essa agora não é tão alegrinha, mas não é uma capa pesada, assustadora, é uma capa bonita, mais melancólica, talvez.
E o bicho homem?
O bicho homem, tem [risos]. No Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos tem uma espinha dorsal, um crânio, e tem um cachorro e um porco, tudo misturado.