O criador de ‘Cara Gente Branca’ fala sobre raça, identidade e cinema negro

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US

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Cara Gente Branca, o filme de estreia do roteirista/diretor Justin Simien, se tornou um ponto de discussão para todo mundo preocupado com questões de raça nos EUA desde a estreia do longa no festival de Sundance em janeiro de 2014. Agora, que o filme ganhou sua primeira temporada em formato de série no Netflix, o longa se mostrou menos controverso do que as pessoas esperavam e acabou por lançar um olhar cheio de nuances de como lidamos com as divisões raciais — tanto pessoais como sistêmicas — que infestam nossa cultura. O filme tem diversos protagonistas, mas foca primariamente em Lionel, um jovem jornalista gay, e Sam, uma ativista birracial e aspirante a cineasta, dois estudantes pegos na tensão racial de uma universidade fictícia da Ivy League. Justin e eu conversamos recentemente sobre seu trabalho, se encaixar, ser fiel a si mesmo e claro, Tyler Perry.

VICE: O que tirei do filme é que somos obrigados a aceitar identidade, gostando ou não. Você nasce com ela. Sou de uma família birracial, e pude ver minha luta com não saber onde me encaixava em cada personagem. Era isso que você queria, ou estou projetando muito no seu trabalho?
Justin Simien: Primeira coisa, você é bem-vindo para se projetar no filme. Essa é a coisa engraçada em ter vários protagonistas: você pode colocar personagens diferentes que jogam como uma rede em várias direções, e ver as pessoas respondendo a isso de um jeito que faz sentido especialmente para elas. Acho que é impossível falar sobre identidade de raça — ou identidade no geral — de um único ponto de vista, e é por isso que tenho quatro pontos no filme. Basicamente, meu foco no filme é que há uma relação entre identidade e o ser. Nos EUA é impossível — pelo menos até onde estamos vendo — fazer uso máximo do seu potencial se você não toma decisões sobre sua identidade.

A ideia é que ou você vai acabar tendo sua identidade decidida por você ou tem que escolher uma. Tenho personagens, assim que você os conhece — Lionel, em particular — que não tinham escolhido nenhuma caixa de identidade. [Lionel] nem sabe o que quer estudar. Ele é incrivelmente precioso sobre quem realmente é e o que realmente quer, seja lá o que for. Aí você tem uma personagem como a Sam, cuja identidade é tão forte que ela está realmente negando metade de si durante a maior parte do filme. Então acho que não era minha intenção que o filme fosse uma peça moral, ou terrivelmente dogmático. Acho que é só um diálogo sobre o relacionamento entre identidade e o ser, e entrar no conflito entre essas ideias e o que acontece nos dois extremos.

Tyler James William como Lionel. Foto por Ashley Nguyen.

Você acha que há essa necessidade de não fazer o que o mundo quer que você faça?
Bom, não tenho uma visão “tudo ou nada” sobre isso. Acho que tem que haver um equilíbrio. O que é interessante sobre a sua leitura do filme é que [Sam] — e eu não quero dar spoiler para quem não assistiu ainda — ela toma uma decisão e parece um daqueles momentos cinematográficos, mas a cena também rapidamente te lembra da realidade em que ela está pisando, que é obrigatoriamente desconfortável. Provavelmente haverá repercussões sociais para a decisão que ela tomou. Enquanto Lionel, que eu acho que realmente entra numa identidade, pelo menos por um momento, tem uma recepção descomplicada e amigável.

O mais engraçado é que acho que a coisa mais difícil de fazer é ser autêntico, especialmente quando você tem algum sucesso no que faz. Isso vindo de uma pessoa que teve algum sucesso em publicidade um tempo atrás, antes de me afastar e fazer meu primeiro filme, e também como uma pessoa que, acho, especialmente depois desse primeiro filme, as pessoas vão me ver de certa maneira e esperar que eu faça certo tipo de filme. Vai ser interessante ver o que acontece se e quando eu não fizer certos tipos de filme. Acho que minha crença pessoal nisso é que é sempre melhor seguir seu eu, se seu eu e sua identidade estão em conflito. Mas acho que será bem difícil. Essa é a verdade da questão.

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O mundo meio que sabe onde quer que você esteja, e você aceita isso ou não.
É, porque no final das contas você está no controle, mas não ter nenhuma identidade também te deixa para trás. Isso vai te deixar completamente de fora da conversa sobre o que você pode ou não ser. Você fica à mercê dos outros se não fizer certas escolhas. Então pelo menos faça aquelas que serão melhores para você.

Tessa Thompson como Samantha White. Foto por Ashley Nguyen.

As pessoas têm falado muito sobre esse filme, mas o que você geralmente vê nas matérias e críticas é uma necessidade de te colocar em caixas, como “esse cara é o Whit Stillman negro”, ou “ele é o Woody Allen negro”, ou o “qualquer coisa negro”. Spike Lee passou por isso quando She’s Gotta Have It saiu. Isso te irrita? Você sente que quer fazer algo parecido com o que Spike fez, onde ele rejeitou isso violentamente e basicamente disse “Vou fazer Lute Pela Coisa Certa e todo mundo vai odiar, e foda-se”?
Não tenho uma reação de raiva a isso. Alguém já mencionou a coisa do Spike Lee, dizendo em particular “Como você se sente sendo comparado com Spike Lee?” A verdade é que é ótimo até não ser mais ótimo. Não é legal ficar em nenhum tipo de caixa, mas se eu tivesse que ser colocado numa caixa, a caixa do Spike Lee não é uma caixa ruim. A caixa do Woody Allen não é uma caixa ruim.

Ao mesmo tempo, tenho certeza que em certo ponto, quando estiver tentando tirar meu segundo filme do solo, talvez me sentirei preso na caixa. Também acho que, sabe, Cara Gente Branca é um filme especial. Não acho que seja arrogante dizer isso. Não havia um filme como esse há muito tempo. Então estou empolgado em ver que muita gente que conheço está aberta para me ver fazendo coisas totalmente fora dessa caixa em particular, porque veem esse potencialmente em mim como cineasta. Então não tenho uma reação negativa. Acho um pouco suspeito, me comparar com outro cineasta negro. É uma coisa meio preguiçosa. Ao mesmo tempo, há outros cineastas com quem eu poderia ter sido comparado e não seria nada favorável.

Tessa Thompson e Justin Simien. Foto por Ashley Nguyen.

Um desse cineastas seria Tyler Perry, a quem você faz referência no filme. Ele foi estigmatizado por fazer esses filmes comerciais que acabamos achando absurdos ou bobos? Estamos pegando pesado demais com ele, o comparado com, digamos, Adam Sandler — que, sendo um homem branco, não tem a responsabilidade de sustentar a autoestima de uma população inteira?
Bom, não acho que Tyler Perry é uma vítima. Acho que Tyler Perry é o mestre de seu próprio destino. Tyler Perry ressuscitou filmes negros, na verdade, que estavam sumidos. Eles tinham quase que desaparecido, não faziam nenhum dinheiro, e ele chegou numa época que — com exceção de alguns astros — não tinha muita coisa acontecendo. Ele trouxe consigo um público pronto de suas peças, e ele fala muito bem com esse público, e continua fazendo isso depois de tanto tempo.

Acho que Tyler Perry está fazendo as coisas que ele quer fazer. Quer dizer, ele é dono de uma ilha! Acho que se Tyler Perry quisesse fazer algo diferente, ele faria. E não conheço Tyler Perry e não tenho como responder uma questão sobre o que ele está pensando, mas acho que ele está feliz em fazer seu público feliz. Acho que a parte mais difícil são os caras que guardam os portões, as pessoas que decidem o que tem sinal verde e o que não tem, e como promover isso, eles decidem não investigar qualquer outro aspecto do público negro, e realmente pararam de promover e apoiar trabalhos que ficam fora da caixa Tyler Perry. Eles decidiram qual o todo da experiência negra, que é apenas isso que pagaremos para ver, que é só isso que nos interessa.

Depois que 12 Anos de Escravidão teve sucesso, eles pensaram: “Ah, as pessoas querem ver escravidão de novo? Ótimo”, e você só lê matérias sobre o próximo filme de escravos ou a próxima série de escravos. Hollywood só está interessada em fazer mais do que já deu dinheiro antes. Acho que se devemos ficar frustrados com alguma coisa, temos que nos frustrar com esse sistema em particular. Mas por outro lado, você falou sobre alguém como Adam Sandler, e a razão para isso ser diferente é porque há muitas variações de homem branco na cultura. Mas quando se trata do jeito como pessoas negras são representadas — mesmo no “ano do cinema negro” — ainda é uma versão muito limitada da experiência negra que chega às telas.

Sempre falo sobre isso: geralmente o que você tem é a tragédia da experiência negra; o extremo, a dor trágica de ser negro neste país, seja através dos olhos de um escravo, de uma empregada ou de um jovem morto. Ou você tem coisas como a versão de Ebony ou Essence de ser negro, onde é tudo ótimo, você está se movendo economicamente para cima, está feliz, é engraçado e tem um emprego bom. A complexidade da experiência negra meio que fica ausente dessa conversa. Por isso acho que é fácil escolher um ou dois jogadores no campo num dado ano e atacar um ou dois outros, mas também acho que essa é uma conversa que os negros estão sempre tendo. Achei que valia a pena colocar [Tyler Perry] no filme, porque no final das contas, o jeito como nos sentimos confinados na cultura ao nosso redor é parte da nossa experiência.

Teyonah Parris como Colandrea Connors. Foto por Ashley Nguyen.

É difícil para os cineastas negros — como alguém considerado agora uma nova estrela do cinema negro — sentir uma responsabilidade tipo “Só vão sair três desses filmes este ano, então é melhor que o meu seja superbom!”
Acho que sim? Acho que há sempre uma pressão adicional quando você está lidando com um tema negro. Não apenas você quer que seu filme tenha sucesso, mas quer que as pessoas entendam. A verdade é que em termos de “filmes negros” — e coloco filmes negros entre aspas — em termos de filmes que são sobre a experiência dos negros e feitos por negros, consistentemente só vemos um ou dois tipos por vários anos, e em qualquer tentativa de fazer algo diferente disso há o medo de que “E se as pessoas não entenderem por que não viam nada assim há anos?” Há esse medo também. É a mesma conversa que acho que artistas negros vêm tendo desde a Renascença do Harlem, tipo: “É OK lavar roupa suja fora de casa sobre a experiência negra?” Quer dizer, se as pessoas brancas estão assistindo, devemos sempre colocar personagens negros incrivelmente positivos, e versões de nós mesmos de sucesso, felizes, lindas, limpas e inteligentes?

Há várias pressões. Mas no final das contas, enquanto acho que há alguma responsabilidade aqui com representação, minha responsabilidade tende mais para ser autêntico e dizer algo verdadeiro, dizer algo sobre a experiência humana, levantar um espelho, desafiar… Esse é o tipo de filme que quero ver. E não importa qual seja o assunto dos meus filmes — seja sobre a experiência negra ou não — eles são os tipos de filme que tenho que fazer. Filmes que dizem algo sobre a condição humana.

Só para voltar à questão do começo sobre identidade ou não, há uma terceira via? Pela minha leitura do filme, sinto que você estava dizendo que há um terceiro caminho. Você não tem que ser incrivelmente protetor com sua identidade negra, mas não precisa passar por um branqueamento. Num tempo futuro — pós-Obama — não vamos querer dizer “Esse é um filme negro”. Poderemos apenas dizer “Esse é um filme com atores negros”. Porque sinto que ainda não chegamos lá. Ainda estamos tendo essas entrevistas tipo “Então você fez um filme negro”. Pessoas brancas podem ver seu filme, e deveriam.
Acho que a terceira via é abraçar a contradição e se mostrar como você mesmo. Esse filme sou eu me mostrando como eu mesmo, sabe? Necessariamente, o filme será considerado um filme negro porque esse é o paradigma em que estamos. Talvez daqui a três filmes não seja mais, e talvez veremos isso de modo diferente. Não sei. Mas em certo ponto, não depende de mim o que a cultura decide, como a cultura decide definir esse filme, ou filmes no geral. Mas depende de mim o que quero contribuir na cultura. Essa ideia de se rebelar contra tudo ou ser assimilado — essa dicotomia de que essas são únicas opções que temos — é por isso que não saímos do lugar. Esse filme não seria o mesmo se eu decidisse por apenas uma dessas opções. Então esse filme, para mim, é um meio termo.

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Tradução: Marina Schnoor

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