Música

O Tricky Tá Numa Boa

Tricky que me apresentaram em críticas e resenhas é um cara carne de pescoço. Nascido e criado nas quebradas portuárias de Bristol, o moleque botava fogo na bomba muito antes de pintar a capa do primeiro álbum do Massive Attack, que anunciava que o negócio ali era inflamável. Blue Lines é o líbelo contra a finesse do pop e do rock britânico do início dos anos 90. Denso como os graves dos subwoofers de Kingston, o disco apresentou ao mundo um doidão com as costas quentes que, como um toaster sóbrio, rimava pelos cantos das faixas.

O Tricky, pessoalmente, é sereno. Ou o tempo passou. “Eu gosto de rap gangsta, tipo Chief Keef, mas alguns eu acho muito pesado. Talvez seja porque eu sou mais velho agora”, me disse ele durante uma conversa no saguão do hotel em que está hospedado em São Paulo. Pela primeira vez no Brasil a trabalho, Tricky reservou um tempo pra trocar uma ideia com a gente. Não teve como não falar de rap.

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Nos anos 80, os guetos dos Estados Unidos e do Reino Unido eram bastante parecidos, apesar de haver um oceano entre eles. O trip hop e o hip hop saíram quase que do mesmo lugar cultural. “O hip hop era música rebelde, revolucionária. Como o Public Enemy. Aquilo era contra o establishment”, lembrou ele.

De rima a tecla, Tricky rumou pra carreira solo e passou a compor não só as letras, mas as bases. Gravou mais de dez álbuns. Chamou uma penca de gente pra trabalhar com ele, como o Mikky Blanco e Cyndi Lauper. A mais nova da lista é a Mallu Magalhães. “Quando eu soube que viria ao Brasil, pedi a meus empresários que encontrassem uma cantora brasileira. Eles me mostraram a Mallu e eu achei a voz dela incrível, muito incrível.”

A brasileira revisitou a faixa “Something in the Way“, do álbum Adrian Thaws, o último lançado pelo músico. Distante do fluxo downtempo por excelência do início de carreira, o disco saca um monte de nuances de hip hop, de música eletrônica e do que vier dessa mistura — como ele faz há mais de vinte anos e como tanta gente faz agora. “Não tem um limite entre os dois e muita gente tenta fazer isso, mas não faz isso bem. Eu sou sortudo. Posso fazer um rock e vai soar autêntico. Posso fazer um hip hop e vai soar autêntico.”

Mesmo assim, a parada ainda continua quente. Dá uma sacada na capa do álbum: o fogo não saiu dali. Com o rosto fino, o Tricky é alguém com menos ânsia de brigar. Nem por isso tem menos porque brigar ou porque curtir. Ele vai fazer três shows em São Paulo como parte do Nublu Jazz Festival. Você acha que faz parte do que se entende por jazz, perguntei a ele. “Vamos celebrar.”

THUMP: É sua primeira vez aqui? Teve alguma folga pra passear?
Tricky: Sim, primeira vez. Não vejo a hora do show. Porque a apresentação é a hora em que você realmente conhece as pessoas. Eu posso sair por aí conhecer a galera, mas quando você tá lá no show… É pra isso que eu vim. Lá na hora, não sou só eu e minha banda, a plateia tá lá também. É isso que faz um show, não somos só nós, há uma interação. Então eu tô muito empolgado pra tocar amanhã, pra ser sincero.

Todo mundo lá junto…
Sim, pra mim é uma celebração. Acho que a palavra “show” não tá certa pra nomear isso, “show” é de se mostrar. O que não está errado, mas pra mim é muito mais interação, sabe? Você não tem um show sem pessoas e você não tem um show sem a banda. É todo mundo junto celebrando.

Você não acha que isso é enfatizado na sua música, a partir do momento em que ela é tão voltada para essas sonoridades mais graves? Porque quando você ouve alguns sistemas de som ou sons jamaicanos, o baixo é tão grave que você entra na vibe. Você sente o mesmo em relação a sua música?
Sim, porque eu vim dessa cultura do grave, é parte de mim. Então às vezes eu tô fazendo as faixas sem baixo, mas quando ele tá lá, é um sentimento. O baixo é um dos instrumentos mais bonitos de ouvir. O baixo é muito importante pra mim.

Quando você tá produzindo, você pensa “ok, eu vou colocar essa frequência aqui”…
Não, quando eu tô fazendo música não penso em nada. A música faz você, então eu vejo um teclado e começo a brincar com ele e gravo tudo. Faço sons diferentes e aí vejo uma coisa que eu toquei e gostei, daí volto e dou outra ouvida e, antes que se perceba, rola uma faixa nova. Então eu não penso dessa forma.

Mas como vêm as letras?
Às vezes elas só vêm, às vezes eu escrevo algo e ela não vira nada concreto por uns dois anos. Daí lembro de algo ou encontro alguma coisa que aparece na hora certa e no lugar certo. Eu não planejo no estúdio, só gravo. E eu amo o que faço e não preciso pensar. Algumas pessoas fazem ioga, alguns fazem jiu-jitsu, outros fazem tai-chi… Eu faço música. É a minha meditação, minha ioga/jiu-jitsu/tai-chi, ela alivia minha pressão. Então se estou passando por uns dias ruins e não tô me sentindo bem, faço música e esqueço. Fazer música é liberdade total. Se eu não gravo por alguns meses fico mal humorado, negativo. Pensar demais não faz bem, por isso não penso fazendo música.

E você tem seu próprio equipamento na sua casa?
É (risos) eu nunca gravo em estúdio comercial. Eu tenho um notebook, um teclado… Coisas muito simples mesmo. Nos estúdios você paga por hora, então você tenta terminar tudo rápido por conta do dinheiro. Em casa eu gravo algumas horas e paro pra cozinhar ou ouço música. Não é pra ser um emprego.

Há alguns dias eu dei uma olhada no seu Instagram e vi uma foto de uma capa do Specials. Você ainda gosta deles?
Eu ainda escuto Specials. Eles mudaram minha vida. Eu ia pra cama quando era criança sonhando que eu era do Specials, que estava no palco com eles. Durante um momento da minha vida, quando eu ouvia hip hop, pensei: eu posso fazer isso. Terry Hall… Vamos lá, digamos que eu ouça o Prince. Eu não consigo cantar como ele, eu não consigo tocar instrumentos como ele. Quando eu ouvi o Specials, percebi que poderia fazer aquilo. Terry Hall é um cara bem de rua que canta. Ele não canta perfeitamente, ele não consegue chegar a todas as notas como o Prince, mas ele pode te tocar. Aí eu percebi: eu posso fazer isso.

Você acha que esse é o ponto de encontro entre a música jamaicana e o hip hop? Essa possibilidade: todos podem fazer música?
O reggae é um ótimo exemplo. Muitas crianças jamaicanas podem cantar. É fantástico. Eles conseguem cantar porque eles tentam. Tem rappers que não são cantores naturalmente, mas eles pegam palavras e fazem uma canção a partir disso. Isso dá possibilidades a pessoas como eu. Eu sou um cara das ruas. Eu não sou forte, eu não consigo cantar, mas o hip hop e o reggae me deram a possibilidade de fazer isso. Na real, todo mundo pode fazer música, todo mundo tem algo a dizer, mas a indústria da música pega pessoas e as fortalece por dinheiro. Eu posso colocar qualquer um no estúdio e fazê-lo cantar algo. Eu posso fazer isso com qualquer um. Nem todo mundo pode cantar, mas todo mundo tem algo a dizer, tem uma história pra contar.

É por isso que você chama tantas pessoas para fazer música com você?
Muitas pessoas nos meus discos vão a um estúdio pela primeira vez comigo. Eles nunca cantaram antes. Acredito que todo mundo pode fazer isso.

Por que você chamou a Mallu Magalhães pra cantar com você?
Quando eu soube que viria ao Brasil pedi aos meus empresários que me encontrassem uma cantora brasileira. Eles me mostraram a Mallu e eu achei a voz dela incrível, muito incrível. Pedi para que eles entrassem em contato com ela . Fizemos duas versões de uma mesma canção, a voz dela tocou minha alma e felizmente eu consegui passar algumas semanas no estúdio gravando com ela.

E você tem ouvido o quê agora? Escutei você falando do Sam Smith… Ele é um cantor bem pop.
Sim, mas se você for pop… O Sam Smith é meio brega, né, mas o Justin Timberlake supostamente é legal, mas eu não entendo o porquê. O Justin Timberlake trabalha com pessoas como Timbaland e Jay Z e isso supostamente faria dele um cara legal, mas eu vejo que ele é um cara da moda que trabalha com algumas pessoas… Eu nunca faria nada com o Justin Timberlake. Nada contra ele, mas eu trabalharia com o Sam Smith. Ele é brega, ele não sabe muito bem como se vestir, dá pra ver isso nos clipes dele. Ouvi uma história um dia que uma garota mexeu muito com ele, bagunçou com ele. Já o Justin Timberlake parece que tem tudo: dinheiro, roupas maneiras… Supostamente ele é legal… Um dia eu estive em um show dele em Los Angeles e eu nunca tinha visto tantas garotas juntas em toda a minha vida! As minas amam esse cara! Não acho que seria o caso com o Sam Smith, mas ele toca minha alma porque tem alguma coisa ali.

O que você acha do hip hop hoje em dia? Você fez parte do que podemos chamar de primeira onda do hip hop britânico, desde o Wild Bunch, mas hoje em dia a gente tem rappers com enorme sucesso. É o caso do Jay Z, que se auto-denomina Hova, ou Kanye West, que se diz Yeezy…
Eu não entendo o Kanye West. Jay Z tem umas músicas legais, mas eu venho de uma época em que o hip hop supostamente não deveria ser comercial. O hip hop era música rebelde, revolucionária, como o Public Enemy. Aquilo era contra o establishment. Hoje o rap é pró establishment. Ele te incentiva a ser um consumidor: grana, diamantes, garotas… Eu não quero ser parte do problema, eu quero ser contra o problema. Eu sou contrário ao governo, contrário à política. Se eu estou falando de diamantes, meu objetivo é ter diamantes. Não. Eu preciso falar sobre ser como Malcom X, Martin Luther King, Robert Kennedy. Pra mim, o hip hop perdeu um pouco da sua mensagem. Eu gosto de gangsta rap, tipo o Chief Keef, mas alguns eu acho muito pesado. Talvez seja porque eu sou mais velho agora. Não costumava pensar assim. Ou talvez seja porque as coisas não são fáceis para os jovens hoje em dia. Você tem que ter cuidado com as mensagens que passa hoje em dia. Bem, eu gosto de alguns gangstas, mas eu preferia dizer a um moleque: se liga, eu sei que você é bem de rua, é nóis, mas continue na escola. O cara pode vir do mundo de gangues, mas não vou promover isso. Eu escuto umas paradas desse universo mais perigoso, tipo uns raggas, mas isso não sou eu e eu não quero promover isso.

Quando você começou, você misturava hip hop e música eletrônica. E você faz isso bem. Como você enxerga isso hoje em dia? Me parece que isso é a nova fronteira da indústria: juntar hip hop e música eletrônica. Não dá pra saber o que é cada um hoje em dia…
Sim, sim. Eu acho que tem até demais, de alguma maneira. Não tem um limite entre os dois e muita gente tenta fazer isso, mas não faz isso bem. Eu sou sortudo. Posso fazer um rock e vai soar autêntico. Posso fazer um hip hop e vai soar autêntico. Só que você tem que fazer isso pela razão certa: amor. Se você não fizer por amor, tipo “quero soar como um roqueiro ou como um rapper”, isso vai ser transparecer no seu trabalho.

E como você se sente vindo ao Brasil para tocar em um festival de jazz? Você se vê de alguma maneira como parte do jazz?
Ah, eu nem ligo. E com certeza eu não sou músico de jazz. Quando as pessoas virem o show amanhã vão perceber que eu estou bem longe do jazz, não tem nada ali com jazz. Eu posso tocar em qualquer lugar: festival de rock, de jazz, de reggae. Seremos nós mesmos no palco. Vamos celebrar.

Pra fechar: você tem pensado em um novo álbum?
Em junho vai sair o álbum da Francesca Belmonte pelo meu selo. É um disco incrível, é algo que as pessoas estão procurando. E eu gravei um álbum na Rússia com rappers de lá. Vai ser em russo e em inglês. Gravei em Moscou, vai ser um hip hop pesado. Eu faço um rap nesse disco, você não vai reconhecer minha voz. Tem uma pegada gangster, pretensiosa. É difícil descrever. Algumas letras são bem explícitas. Normalmente, quando componho eu estou mais no lado feminino. É como o Mikky Blanco. Você não vai reconhecer minha voz lá.

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