O escândalo de Trump com a Rússia pode acabar em impeachment?

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Na última segunda-feira (13), a administração Trump perdeu, pela primeira vez, um de seus membros para um escândalo quando Michael Flynn renunciou como conselheiro de segurança nacional. O ex-general não foi formalmente acusado de nenhum crime, mas mentiu (ou, pelo menos, induziu ao erro) o vice-presidente Mike Pence sobre as conversas que teve com o embaixador russo sobre as sanções contra o governo de Putin. Além da parte de não falar a verdade — supostamente a razão para ele ter sido cortado do cargo — há dúvidas se Flynn conduziu diplomacia ilegal quando falou com o embaixador, já que a ligação em questão ocorreu antes de Donald Trump se tornar presidente.

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Membros do Congresso dos dois partidos já estão fazendo barulho sobre investigar os laços de Flynn com a Rússia — assim como a interferência da Rússia nas eleições — quando, menos de 24 horas depois, vários meios de comunicação informaram que pessoas da órbita de Trump se encontraram repetidamente com oficiais da inteligência russa antes da eleição. Segundo o New York Times, alguns espiões norte-americanos estão assustados que, ao mesmo tempo em que o pessoal de Trump tinha esses contatos com espiões e oficiais do governo russos, o candidato tenha publicamente elogiado Putin.

Teorizar sobre os laços de Trump e a Rússia virou esporte nacional desde julho passado. Foi quando relatórios críticos sobre os acordos pró-Rússia do ex-chefe da campanha de Trump, Paul Manafort, no Leste Europeu levantaram novas questões sobre as relações internacionais Putin-friendly de Trump. Um dossiê divulgado na época alega todo tipo de coisa inacreditável, como Trump ter sido filmado pela inteligência russa assistindo prostitutas mijarem numa cama de hotel onde Barack Obama teria dormido. Mas as notícias de que o pessoal de Trump estaria falando com russos ligados à agência de inteligência aumentam significativamente as apostas para a queda da administração, que já vem encarando pedidos de processo e impeachment desde o primeiro dia.

Agora que membros do Congresso norte-americanos estão usando palavras como “traição” e tabloides como o New York Daily News vem publicando aleatoriamente a ordem de sucessão presidencial, decidi ligar para Carlton F.W. Larson, especialista em lei constitucional e traição da Universidade da Califórnia-Davis. Falamos sobre a suposta relação entre a equipe de Trump e Moscou e se esse contato poderia ser criminoso — e como seria um processo legal sobre o caso.

VICE: Primeira coisa, não é incomum que candidatos e suas equipes conversem com oficiais estrangeiros durante campanhas presidenciais, certo?
Carlton F.W. Larson: Certo. Obama falando na Alemanha em 2008 — isso certamente envolveu alguma coordenação com o governo alemão, suponho.

E frequentemente há reuniões entre candidatos presidenciais dos EUA e chefes de estado estrangeiros, como o primeiro-ministro israelense.
Exato. Ou mesmo quando Trump visitou o México, não acho que há nada de problemático nisso.

Acho que o que é incomum agora são as alegações de contatos entre pessoas na órbita de Trump — não o próprio candidato — e oficiais de inteligência estrangeiros. O que me parece sério.
Sim, está certo. Não sei se eles alegaram especificamente que o pessoal de Trump sabia que estava falando com oficiais da inteligência. Às vezes os russos são muito bons nisso — ter agentes da inteligência que parecem qualquer pessoa. Mas conversar com um agente da inteligência russa sabendo quem ele é pode ser um grande problema. E acho que depende do que você diz a eles também. Se for só um bate-papo casual, provavelmente tudo bem. Não sei se apenas uma conversa seria um problema.

E questões legais sobre isso já foram levantadas no passado — Richard Nixon parece ter ajudado a mover as negociações de paz com o Vietnã antes de sua vitória em 1968, e a administração Reagan teria tido um diálogo oculto com os iranianos em 1980. A lei relevante — e me corrija se eu estiver errado —– é o Ato Logan, que proíbe cidadãos civis de mexer com relações diplomáticas no exterior. Mas nada saiu desses casos criminalmente no passado, certo?
Ninguém foi processado com sucesso sob o Ato Logan, que está aqui desde 1790. Isso surge o tempo todo, mas é difícil ver isso como um terreno viável para um processo.

Como os supostos contatos entre o pessoal de Trump e o governo russo poderiam passar de comuns para criminosos?
A conversa em si tem que violar algum outro estatuto. Como revelar informação secreta norte-americana. Nossos agentes da inteligência, acho, falam com agentes da inteligência estrangeiros o tempo todo, às vezes entregando deliberadamente informações falsas. Então se Michael Flynn estava falando com a inteligência russa, talvez isso fosse parte do trabalho dele — que estava tentando tirar alguma coisa deles. Cruzar a linha seria se ele revelasse informação secreta, o que violaria um estatuto independente que proíbe oficiais do governo de fazer isso.

E mesmo se estabelecermos que achamos que houve traição, partir para alegações criminais contra membros do governo, acho que é muito difícil ir da possibilidade teórica para maquinações dos aparatos federais entrarem em ação.
Exatamente, porque qualquer uma dessas coisas seria crime federal — não estariam sujeitos à jurisdição estadual. Então provavelmente o FBI teria que investigar, isso teria que ser entregue ao Departamento de Justiça para processo criminal, e então o Departamento da Justiça teria que decidir levar isso em frente, juntar um grande júri, concluir que os benefícios do processo superam os riscos (porque você pode ter que revelar informação sigilosa como parte do processo), e aí realmente conseguir uma condenação por unanimidade, provavelmente em DC, onde essas coisas acontecem.

E então você precisa se perguntar: um Departamento de Justiça liderado por Jeff Sessions quer investir nesses casos? Acho que ele não estaria muito entusiasmado para fazer isso.

Certo. Mas um promotor federal, independentemente do Procurador-Geral, pode decidir emitir uma acusação?
Para algo significante assim, acho que você tem que envolver o alto escalão. Você não ia querer que promotores normais dos EUA tivessem reinado livre para trazer esses casos à justiça. Quer dizer, uma coisa que Sessions pode fazer é apontar um promotor especial para remover essa preocupação de mácula, envolvimento político ou qualquer coisa assim. E não acho que ele vai fazer isso.

Só pelo que você sabe dele e seus registros?
Sim. Quer dizer, ele parece muito fiel a Trump. E não há nenhum benefício em fazer isso do ponto de vista dele, a menos que o calor político seja muito, muito forte. Isso pode chegar lá, mas no momento não. E ele também pode dizer “Ei, olha, esses comitês do congresso estão investigando isso, então talvez possamos montar no que eles descobrirem, mas até lá não farei nada”.

Um promotor especial só pode ser apontado pela promotoria geral?
Não temos mais os conselhos de lei independentes que tínhamos pós-Watergate, onde tínhamos Ken Starr [que investigou Bill Clinton] e tudo mais. O pessoal de Reagan odiava quando isso acontecia com eles, e Clinton odiou quando isso aconteceu com ele. Então eles ficaram felizes em se livrar deles.

Para a extensão onde haveria um promotor especial, isso seria simplesmente o promotor geral fazendo a indicação, e ele estaria livre para demitir o promotor especial. Essa pessoa seria um empregado do Departamento de Justiça, no final das contas trabalhando para a PG.

OK, considerando que a possibilidade de um processo é baixa, vamos falar mais sobre os possíveis crimes. Qual é a história de pessoas sendo acusadas de traição?
Houve alguns processos de traição depois da Segunda Guerra Mundial, no final dos anos 40. E houve um indiciamento [em 2006] de Adam Gadahn, um líder da Al-Qaeda nascido nos EUA. Acho que esse é o indiciamento mais recente de traição. Mas nunca pegaram ele, ele nunca foi julgado.

Mas, em teoria, traição é um crime capital que pode se aplicar aqui, certo?
Continua sendo tecnicamente um crime capital. Historicamente, todos os indiciados federais condenados foram perdoados. Nunca houve realmente uma execução por traição sob a Constituição dos EUA — por traição federal.

Em nível estadual, houve um punhado deles durante a Revolução Norte-Americana, e alguns [depois], acho que John Brown seria o exemplo mais famosos: depois da atacar Harper Ferry, ele foi julgado por traição contra o Estado da Virgínia.

Então não faz sentindo sequer falar em traição neste ponto — quanta relevância há nas leis contra traição no tipo de ofensa sobre a qual estamos aprendendo aqui?
Para ser traição, isso tem que beneficiar um inimigo dos EUA, e a Rússia não é um inimigo. Para ser um inimigo, tem que ser uma nação que está basicamente em guerra aberta com os EUA. E tecnicamente estamos em paz com a Rússia. Portanto, qualquer ajuda a Rússia não pode ser considerada ajuda a um inimigo.

Então, é impossível cometer um ato de traição em favor da Rússia, pelo menos por enquanto?
Impossível, exatamente. Você pode fazer coisas muito mais generosas para a Rússia do que foi alegado, e ainda não seria traição. Agora, poderia ser caso de impeachment, acho — seria deslealdade proativa e alto crime ou delito, mas não traição.

Em se tratando de traição e crimes relacionados envolvendo governos estrangeiros, quanto a intenção importa aqui? Parece ser mais um caso de gente que não sabia o que estava fazendo que realmente malícia.
Há algum caso de lei nesse ponto, mas não é consenso. Por um lado, você pode imaginar um exemplo óbvio onde alguém te diz “Entregue isso para aquela pessoa”, e acontece de você estar dando algo para um agente estrangeiro e [o pacote] ser um segredo de inteligência. Mas você não sabia disso – você não sabia o que estava entregando e quem era a pessoa. O ato aqui é idêntico, mas seu estado mental importa. Você não pretendia cometer o crime; você não sabia o que estava fazendo. Ainda assim, a intenção poderia se formar no local — não sei se você tinha que ter um plano de antemão.

A última coisa que quero discutir é sobre a proximidade com o presidente. Nenhum dos relatórios até agora implicou diretamente o presidente, só pessoas em sua órbita. Importa quão próxima uma pessoa é dele para que ele seja potencialmente implicado? Quão difícil é seguir a linha de responsabilidade até o Salão Oval?
É difícil. E exigirá um Departamento de Justiça que busque isso energicamente – provavelmente tentando derrubar pessoas. Pensando em Watergate, pessoas como John Dean mudaram de lado e confessaram tudo. Então você tem que ter alguém que estivesse realmente disposto a colocar pressão em Michael Flynn para, digamos, entregar Donald Trump. No momento não vejo o Departamento de Justiça fazendo isso. O que não quer dizer que é impossível, mas não vai acontecer organicamente, acho, a menos que haja um vazamento enorme de informação. E Nixon foi idiota o suficiente para se gravar cometendo um crime. Trump adora câmeras, mas acho que ele não está gravando tudo que diz.

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Tradução: Marina Schnoor

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