Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.
Antes de se tornar escritor, DBC Pierre já levava uma vida picaresca. Nascido na Austrália em 1961, filho de uma vencedora do Prêmio Nobel e um herói de guerra de Wellington que trabalhava com genética, ele cresceu no Sul do Pacífico, Inglaterra e EUA antes da família se assentar na Cidade do México. Ele acabou tendo que deixar o México aos 20 anos, depois de tentar contrabandear um carro esportivo de alta performance para o país.
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Aí ele passou uma década como viciado, acumulando dívidas enormes na Austrália antes de quase morrer. Depois disso ele se tornou ator, seu papel mais notavelmente sendo o taciturno Private Bluey na série de TV Anzacs, em que ele contracenava com Paul Hogan. Aí ele passou algum tempo na Espanha andando com uma comunidade de toureiros. Ele também trabalhou como artista, cartunista, fotógrafo e vigarista.
Durante os anos 90 ele escreveu seu primeiro romance, Vernon God Little, uma sátira de humor negro sobre um tiroteio numa escola do Texas, enquanto morava em Balham, South London. Em nenhum momento ele teve treinamento para escrever ou qualquer aconselhamento de outros autores. Ele diz que os primeiros escritores que conheceu estavam na Faber & Faber quando ele foi assinar o contrato de publicação do livro já terminado. Vernon God Little recebeu £50 mil do Man Booker Prize, que foram para pagar as dívidas que ele fez na juventude.
Seu título mais recente, Release the Bats: Writing Your Way Out of It, é um livro idiossincrático mais muito útil sobre como escrever romances, contendo conselhos que vão de como desenvolver personagens até quanta heroína tomar quando estiver escrevendo. Aqui, Pierre condensa alguns dos pontos principais de seu livro para iniciantes. Agora é só imprimir, colar na parede em cima do computador e partir para o abraço.
IGNORÂNCIA
Se você me dissesse, antes que eu começasse a escrever, que meu primeiro romance venceria o Booker Prize, me daria um emprego e mudaria minha vida — mas também me daria toda a merda que eu precisei passar por enquanto estava escrevendo — eu não teria começado. Mas felizmente não é assim que acontece. Escrever um romance é como nadar para longe da praia; depois que passou da página 50, você está longe demais para voltar atrás, então é melhor continuar. A literatura tem toda essa aura de ser um mundo de gente que acorda antes das 7 da manhã, escreve mil palavras antes do café, revisa antes do almoço e escreve mais duas mil palavras depois do almoço. E assim, seis semanas depois, a pessoa tem um romance. Nunca acreditei nessas bobagens da indústria editorial, que fazem escrever um livro parecer a construção da Ferrovia da Birmânia. Não é assim. Escrever é desconfortável de maneiras completamente imprevisíveis. Você precisa mergulhar no mar, se deixar levar e achar um jeito de sair. E depois de um tempo, você precisa continuar nadando porque isso se torna mais fácil que simplesmente voltar.
O VÃO
Acho que a literatura existe para preencher um vão entre como as coisas deveriam funcionar, e aquele sentimento que todo mundo tem de que elas não estão funcionando assim porra nenhuma. Na vida, muito do nosso tempo — principalmente um monte de tempo inconsciente — é gasto passando por cima e preenchendo alguns vãos tensos entre o que nos disseram que ia acontecer e o que realmente aconteceu. Isso mais o vão entre os que as pessoas acham que são e o que realmente são é a matéria da vida. Livros são escritos especificamente para preencher e explicar esses vãos.
COMEÇAR
Se você quer escrever um livro, escreva qualquer coisa. Escreva qualquer coisa e continue, porque eventualmente alguma dessas coisas vão valer a pena. Esse estágio da escrita é horrível. Eu odeio. Não sou um mestre da escrita e, no começo, odeio tudo que escrevo. Mas se continuo anotando tudo, alguma coisa pega embalo e aí você tem uma base. Você tem o vislumbre de uma ideia. E quanto mais revoltada é a ideia, maior é a chance de acabar com uma coisa que me surpreenda. Escreva alguma coisa e, ao primeiro sinal de algo inesperado, pare. E comece o livro por aí. Torne aquela ideia o começo.
DETALHES AUTOBIOGRÁFICOS
Algo vai te fazer pensar que você deveria escrever, e eu aposto que esse “algo” está dentro de você; uma coisa subconsciente. Ela vai te levar de volta para aquela vez em que você sofreu bullying na escola, apanhou dos seus pais ou sofreu uma traição. Tem coisas dentro de nós que não podemos contar a ninguém, e não é educado mencioná-las em público. Podemos nunca ter falado sobre isso em voz alta. Acredito que esses pensamentos — que todo mundo tem apenas por uma acumulação da vida — vão nos fazer sentar e contar uma história sem nem sabermos o porquê. Assim que você consegue escrever algumas páginas, as coisas dentro de você que precisam ser ditas vão começar a vir à tona. Os personagens que aparecem, as situações que acontecem, as dinâmicas criadas, já estão lá, quer você perceba ou não. Tenho essa sensação de que suas próprias histórias nem sempre são contáveis, mas elas pegam carona. Se você tem algo a dizer, esse algo vai dar as caras.
O ENREDO
Eu não tinha um enredo em mente para Vernon God Little antes de começar a escrever. O enredo foi desencadeado pelo processo. Comecei a escrever e gostei da voz [do protagonista], então continuei escrevendo apesar de ser um processo desconfortável. Depois de cinco semanas escrevendo febrilmente, eu tinha um romance de 300 páginas. Ou, sendo mais preciso, eu tinha o que achava que era um romance, mas sem uma história real dentro dele. Nada acontecia. Era só essa voz reclamando. Havia alguns personagens secundários, mas nenhum tiroteio numa escola. O primeiro rascunho era só Vernon reclamando sobre sua origem e sua família. Então peguei todas essas coisas de que ele reclamava e fiz acontecer algo com ele. E uma das coisas de que ele reclamava era sobre um tiroteio em sua escola. Isso deu ao segundo rascunho uma estrutura muito diferente do primeiro.
O JÚRI
Tenho um júri interno [que critica o que escrevo], e isso muda o tempo todo dependendo do problema da minha escrita. De modo geral, meu júri tende a ser um grupo de pais conservadores americanos dos anos 50, e tenho que lutar para expulsá-los. Estou começando a pensar que o júri é meu lado negro. É o júri que tenta me impedir de escrever coisas que precisam ser ditas. Meu lado negro é bastante conservador e preciso lutar para expulsar esse júri.
ÁLCOOL
Estamos contaminados pelas porcarias com que fomos criados. Tenho que colocar muita coisa minha de lado para poder ser livre e honesto quando escrevo, e um bom jeito de fazer isso é beber. Isso sempre esteve na nossa cultura; e é verdade no final das contas. Então acho que o arquétipo [do escritor que bebe muito] é correto. Quando eu tinha 15 anos, meus pais me ofereceram um pequeno copo de cerveja, o que foi um caso especial, mas claro que nessa época eu já enchia a cara em segredo há três anos. Cresci numa família em que as coisas eram realmente fechadas, e beber e usar drogas sempre foi um jeito de escapar disso. Winston Churchill tinha que beber. E com isso não estou criticando as culturas sem álcool, mas aqui, todos os heróis da nação tomavam alguma coisa antes de fazer seus grandes discursos e expressar o que precisavam expressar.
MACONHA
Maconha é a melhor droga para escrever. Pelo menos é o que acho. A ponta de um beck, nem o suficiente para chapar, já desconecta a mente. Se você sentar num lugar tranquilo, a maconha leva sua mente para um lugar único e calmo. A maconha faz as coisas crescerem muito rápido. Não é bom para editar, mas é bom para reler o primeiro rascunho.
COCAÍNA
Num primeiro rascunho, se você está sob pressão, a cocaína provavelmente funciona, mas você precisa de algo constante para não ficar sem suprimento… e essa é uma droga cara. Além disso, cocaína pode te fazer ter crises de pânico, e eu já tive algumas experiências ruins com ela na juventude. Sabe, aquela sensação de que você precisa de cocaína para fazer certas coisas.
ESTRUTURA
O cenário, o conflito, a resolução… Não há uma boa razão no mundo para não abandonar a estrutura tradicional de três partes de uma história, mas essa é uma decisão arriscada. Usar ou não uma estrutura padrão depende de quão louco são os outros aspectos do seu trabalho, e esse tipo de estrutura é uma admissão de que queremos que outras pessoas entendam a história. Passamos 2 mil anos usando a estrutura de três partes, e tenho certeza que nossos cérebros se adaptaram a ela. Essa estrutura evita que a mente tenha que pensar demais, e provavelmente é como uma ferrovia para o cérebro seguir. Então, se você vai escrever uma história muito louca e desafiadora de outras maneiras, como na linguagem, ideias ou temas, talvez seja melhor ter pelo menos uma estrutura convencional. Mas acredito fortemente que temos que nos distanciar da estrutura de três partes, e acho que vamos, mas temos que saber por onde começar.
PROCRASTINAÇÃO
Procrastinação é o grande demônio da escrita. Mesmo sem redes sociais, nossos cérebros vão nos derrotar completamente. Acho que foi Louis de Bernières que disse que a escrita começa quando nosso medo de não fazer nada supera nosso medo de fazer errado. Tudo que posso dizer é que se você tem medo de fazer errado, na noite anterior a começar a escrever, antes de dormir, visualize as coisas saindo direito. Sei que isso parece um pouco místico, mas se comprometa a fazer algo realmente bom antes de ir para a cama. É frustrante quando cedemos à procrastinação, mas essa frustração adiciona algo ao trabalho. Você finalmente termina de escrever uma maldita página porque levou quatro dias enrolando para fazê-lo.
PESQUISA
Pesquisa é a melhor forma de procrastinação. Você pode desperdiçar um tempo infinito sem escrever uma história, mas ainda assim aprendendo um monte de coisas. Felizmente, no século 21, podemos estar literalmente no meio de uma frase, parar e verificar o fato em 30 segundos, aí voltar a escrever. Se você tem um marco ou situação específicos, acho que você deve olhar na internet — mas a chave é escrever sobre o que você já sabe. Não comece a escrever sobre a China se você nunca esteve lá. É ridículo. Não vai ter o sabor necessário. Escreva sobre onde você está ou um lugar que você conhece bem. Aí você só precisa procurar os detalhes.
PRAZOS
Se pressão é o que você precisa para fazer seu trabalho, então conte para todo mundo que você conhece que está escrevendo um romance e quando pretende terminar. Aí você vai estar fodido. Você será jogado num caldeirão de onde não conseguirá escapar.
Release the Bats: Writing Your Way Out of It de DBC Pierre sai dia 7 de julho no Reino Unido pela Fiber.