O passageiro de um voo comercial sentado à janela pode viver uma experiência aliviante: sentir o comandante manobrar para longe de uma tempestade que se mostra no caminho da aeronave. Os pilotos do Seneca II da ModClima fazem justo o oposto. Enquanto sobrevoam uma região à até três mil metros de altitude, caçam nuvens com potencial de chuva. Quando acham, miram o pequeno bimotor em direção a eles e entram com tudo na turbulência.
Pode parecer uma loucura sem propósito, mas há um porquê no método. Fundada em 2007, a empresa usa uma tecnologia própria para fazer chover. A ideia nasceu após o engenheiro Takeshi Imai observar nuvens e monitorar o clima por mais de uma década. Antes disso, Takeshi trabalhara no desenvolvimento de equipamentos pulverizadores de agrotóxicos e motosserras.
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No entanto, em um momento de epifania, percebeu que era necessário contribuir com a natureza e agricultura de uma forma mais limpa, como explica seu filho Ricardo Imai, hoje à frente da empresa. O jeito como encontrou para atingir este objetivo foi levar água para regiões onde ela mais necessárias: lavouras e regiões que sofrem com secas, reservatórios de abastecimento que passam por crises hídricas.
É claro: a não ser que você seja São Pedro, fazer chover não é fácil. Já existiam métodos que utilizavam produtos químicos tóxicos, como iodeto de prata, mas isso estava longe de resolver o problema. “Ele ficava parada em Atibaia olhando as nuvens e pensando como resolver conseguir fazer isso”, conta Ricardo.
Uma hora, a solução veio. Takeshi supôs que caso fosse possível voar dentro das nuvens e soltar gotículas de tamanho controlado de água limpa elas seriam capturadas por correntes de ar ascendentes e se chocariam e juntariam com outras gotículas presentes nas nuvens. Conforme ganhassem peso, começaria a precipitação.
Segundo Ricardo, deu certo: desde 2007, a ModClima já foi contratada pela Sabesp nove vezes para fazer chover no Sistema Cantareira, usado na abastecimento de São Paulo. Além disso, também já prestou serviço para inúmeros produtores agrícolas de culturas como soja, abacaxi, batata, milho e sorgo, entre outros e já vou até no Gabão, na África.
Montanha russa
A ModClima se movimenta conforme necessário para atuar nas áreas alvo. Quando o objetivo é fazer chover na Cantareira, a base da empresa fica em Bragança Paulista, no Aeroporto Estadual Artur Siqueira. Dali, enquanto teco-tecos de treinamento decolam e pousam de maneira incessante, o Seneca II é preparado para voar.
Desenvolvido pela americana Piper Aircraft, e produzido sob licença no Brasil pela Embraer entre meados da década de 70 e fim dos anos 80, o Seneca II é um bimotor robusto e confiável. “É de fácil manutenção e não deixa você na mão”, diz Ricardo. “É como se fosse um golzinho quadrado.”
De fábrica, o modelo vem com seis assentos. No entanto, a ModClima usa uma versão adaptada. São duas cadeiras, uma para o piloto e outra para o co-piloto, e o restante da cabine é ocupada por um tanque com capacidade para 300 litros de água.
Muito menor que um avião de linhas comerciais, o Seneca samba assim que decola – uma sensação que os pilotos descrevem como ninar o passageiro. Ele balança para os lados de maneira gentil no céu azul, o que pode deixar um leve mareado na barriga dos mais frágeis. A coisa muda de figura, no entanto, quando se aproxima do seu alvo: as grandes nuvens que podem virar chuva.
As nuvens visadas pela ModClima são do tipo cumulus: de grande porte, com bases retas e cabeças elevadas no formato de uma couve-flor. Ricardo explica que há uma grande quantidade de água em cada uma dessas nuvens. No entanto, não necessariamente elas se tornaram chuvas. É aí que entra a tecnologia da empresa: quatro aspersores espelhados embaixo das asas do avião soltam as gotícula de tamanho controlados para induzir essa chuva – um processo chamado por eles de semear a nuvem.
Para isso, o Seneca precisa passar bem no meio dela. “A gente faz a coisa que a maioria dos pilotos evitam”, diz Rafael Oliveira Alves, piloto há mais de cinco anos da empresa. “Entra em uma formação que tem muita água, bastante turbulência.”
Num dia bom, esse processo pode ser quase indolor. O avião é jogado de maneira suave para cima e para baixo junto com um friozinho na barriga à altura daqueles elevadores que despencam em parques de diversão. Num dia agitado, a coisa muda de figura. A aeronave é chacoalhada de um lado para o outro, a cabeça dos pilotos bate no teto e há até a sensação de bater de frente em algo físico quando um tranco faz os cintos de segurança trabalharem.
Tudo isso dura poucos minutos, o tempo de entrar e sair da nuvem. No entanto, assim que isso ocorre, o avião faz uma curva em de até 45º – para efeito de comparação, vôos comerciais se limitam a 25º – e mergulha de novo na nuvem. Isso ocorre duas, três, quatro, quantas vezes forem necessárias até atingir o objetivo: notar a chuva começar a bater no para-brisa e ver o chão se molhar.
Chove chuva
Segundo dados da ModClima, a cada dez nuvens semeadas, sete são derrubadas – outro jargão que indica quando a chuva aconteceu. Um exemplo dessa taxa de sucesso de 70% é o último contrato com a Sabesp, de 2014 a 2016. No período, a empresa diz ter sido responsável pelo equivalente a 82.5 milhões de m³ de chuvas no Sistema Cantareira.
O número preciso é resultado do know-how adquirido pela empresa ao longo dos anos. A partir de informações da trajectografia do avião – que inclui a marcação precisa de local, velocidade e altura de cada vez em que entrou e saiu de um nuvem -, medições de radares, satélites e pluviômetros, eles estabelecem, medições meteorológicas feitas por radares e pluviômetros no solo e imagens de satélites, eles desenvolveram um código para calcular de forma certeira a quantidade de chuva que caiu dentro de determinada região que foi de responsabilidade da ModClima.
Na verdade, esse método já teve um desdobramento: a Cyan Agronalytics, uma startup de inteligência meteorológica para o agronegócio criada por Ricardo e Majory, sua irmã.
A ModClima, por sua vez, continua no ar. Para o carnaval de 2020, a empresa fez uma parceria com a Skol. Como sempre chove mesmo no carnaval de São Paulo, a ideia da marca de cerveja é dar um incentivo para que também chova onde é mais necessário: lá no Sistema Cantareira.
Por mais que o método receba críticas de alguns meteorologistas e cientistas que afirmam não haver provas científicas de sua eficiência, os donos garantem que se a chuva não é garantida, pelo menos tem uma chance alta de acontecer.
Tanto é que foi numa chuva derrubada por eles que Ricardo e Majory se despediram do pai, morto em 2013. O avião voou, fez chover e as cinzas de Takashi foram jogadas pela janela. Naquele dia, não houve turbulência.
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