Os Pop Dell’Arte são uma banda de culto e, como mandam as regras, não se mostram muito. Não cansar nem expor demasiado faz parte da arte do enigma. Nos dias de hoje, onde toda gente quer é aparecer, convenhamos que há que dar mérito a esta transgressão fiel. Uma espécie de juramento sem bandeira em prol da arte, por parte de uma banda com três décadas de carreira.
Com um disco novo no horizonte – ainda sem data marcada – é certo que, mais uma vez, ressuscitarão por detrás de um qualquer écran gigante de vídeo. Mesmo se o amor for uma mentira, não há problema, eles fazem disso uma canção.
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Esta sexta-feira, 10 de Novembro, tocam no Porto, no bar Cave 45, um espaço alternativo que tem os dias contados e vai fechar. É assim uma das últimas oportunidades para ir àquele espaço, mas é também a possibilidade de ver uma das sempre raras prestações dos Pop Dell’Arte ao vivo. Pouco antes de um desses concertos, em finais de Agosto último, no festival leiriense Entremuralhas, a VICE falou com o frontman do colectivo lisboeta, João Peste.
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VICE: Com mais de 30 anos de carreira às costas, como olhas hoje para os Pop Dell’Arte?
João Peste: Pessoalmente, faço música porque não consigo deixar de o fazer, está-me no sangue. É uma carreira um pouco irregular, com poucos álbuns, mas sempre que fazemos algum, tem impacto. Neste momento estamos a preparar um disco novo, para sair talvez ainda este ano – esperemos que seja este ano -, mas tem havido tantos atrasos que é melhor deixar a data em aberto. O disco já está muito avançado, embora ainda não esteja terminado. Sobre a carreira em si, é um bocado difícil eu dizer qualquer coisa… sei lá, é a minha vida… “eh pá, fala aí sobre a tua vida”… é uma coisa um bocado complicada sobre a qual falar assim de repente.
O facto de não editarem regularmente não terá, em certa medida, contribuído precisamente para a longevidade da banda?
Se calhar sim. Se nos tivéssemos esforçado para editar um álbum todos os anos já teríamos uma discografia muito grande e, possivelmente, haveria outro cansaço. Mas não sei, é difícil imaginar como seria. As coisas foram acontecendo meio naturalmente. Acho que sim, há uma auto-crítica que podemos fazer: eventualmente poderíamos ter sido mais rápidos a fazer as coisas e isso ter-nos levado a produzir mais discos. Mas, por outro lado, acho que foi feito o que fazia mais sentido para nós e, no fundo, é isso que importa.
Saiu este ano (com a revista Blitz) a compilação, Ama Romanta 1986-90 – Uma História Divergente, que tem como génese a compilação Divergências, editada em 1986. Para a malta mais nova que possa não saber, tu fundaste uma editora, a Ama Romanta, onde na segunda metade dos anos 1980, foram editados projectos de cariz bastante alternativo e experimental, mas muito diferentes entre si. Fala-nos um pouco sobre isso.
A ideia do Divergências era editar projectos alternativos. Se eu escolhesse uma determinada onda estética não faria muito sentido, porque, então, estariam todos a convergir para o mesmo ponto e não a divergir. A ideia do Divergências, o disco inaugural da editora Ama Romanta, era precisamente apresentar coisas diferentes e que divergissem não só do mainstream, mas que divergissem também entre si. Não se estava à procura de formar uma editora com uma determinada estética, ou uma determinada linha musical ou ideológica, mas sim editar coisas que fossem alternativas ao “gosto dominante” (chamemos-lhe assim) e que também acabassem por ser alternativas entre si. Não apontámos um caminho, apontámos vários caminhos e, nesse aspecto acho que o nome, Divergências, fez todo o sentido.
Considerando o ambiente que se vivia na década de 80 e tendo em conta o panorama nacional da altura (só com dois canais de televisão, por exemplo), essa compilação, assim como outras edições, entre as quais as dos próprios Pop Dell’Arte, acrescentaram algo e souberam fazer as coisas de forma diferente. Foi, como diz aquele cliché, uma pedrada no charco?
Não serei a pessoa mais apropriada para falar nisso, deixo-o para os outros, mas, o que posso dizer, é que, hoje em dia, as coisas não estão assim tão melhores como isso. Realmente há mais canais de televisão, mas, se calhar, as televisões ainda estão a passar menos coisas alternativas do que na altura. É incrível. Hoje há mais coisas e cada vez levas mais com música uniformizada, pimba ou a metro e o resto é praticamente ignorado. Mais do que, provavelmente, nos anos 80, onde apesar de tudo ainda ia havendo algumas brechas por onde penetrar.
Neste momento acho que a situação não melhorou, embora na altura a situação também não fosse boa. E sim, em parte a ideia da Ama Romanta era uma reacção a essa estagnação. Fizemos o que podíamos fazer, mas obviamente que nunca tivemos a ilusão de que íamos ser nós a resolver os problemas, ou que a Ama Romanta ia acabar com os problemas e que a partir daí ia ser tudo melhor. As coisas estão tão mal ou pior do que estavam na altura em termos culturais, mas não quer dizer que não haja muita gente a fazer música boa e que não exista gente a escrever, a fazer teatro e cinema e a fazer coisas importantes. Todavia, da parte do mainstream, do sistema, as oportunidades são poucas e o que aparece às pessoas é cada vez mais reduzido em termos de qualidade. Se formos ver o que passa na televisão, concluímos que… nem sei, acho que o melhor é nem concluir nada.
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Os Pop Dell’Arte sempre usaram diversas referências, até de outras disciplinas artísticas. Hoje, ainda sentes que a banda é feita de “sonhos pop”, como diz uma canção vossa?
Continuamos a ser um grupo com influências diversas, não só musicais mas também de outras áreas artísticas diferenciadas, de facto. O sonho mantém-se, no sentido que continuamos a fazer a música que sabemos fazer, sem grande esforço. A música não é forçada para que saia assim, sai-nos naturalmente. Sentimos que temos uma obrigação e isso talvez seja a diferença. Cada vez sinto mais a obrigação de não fazer concessões estéticas, nem ideológicas nem culturais, porque o Mundo precisa cada vez mais de bandas que afirmem a sua diferença e acho que cada banda que existe deveria ser diferente de todas as outras. O normal seria isso, mas cada vez encontramos mais coisas estereotipadas, feitas em massa e é uma obrigação mantermos a música e a liberdade criativa vivas. Nós e uma série de outras bandas que também o fazem e ainda bem.
Estamos a viver tempos de massificação e de estupidificação tão intensas que acho que todas as pessoas que fazem música, cinema, etc., neste momento, têm uma obrigação muito forte de travar esse processo de quase anulação da inteligência e do espírito crítico que nos rodeia. Interessa-nos mais que as pessoas tenham espírito crítico, que percebam que há alternativas e que há outras coisas que podem ser feitas. E isto tudo independentemente de gostarem, ou não. Não é isso que me preocupa. Se as pessoas não gostarem, não me aborrece nada. Prefiro que não fiquem indiferentes. O Maiakovski, um poeta futurista russo, falava em “dar uma bofetada no gosto do público”. Acho que, neste momento, é preciso dar uma série de bofetadas – no gosto do público e se calhar não só -, porque há um crescendo de vulgarização, de homogeneização e, sendo assim, acho que devemos fazer algo com que possamos contribuir para combater esse estado de coisas.
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