Logo mais será impossível tratar gonorreia
Crédito: Maria Taglienti/Getty Images

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Logo mais será impossível tratar gonorreia

Dois terços dos países já relatam casos de gonorreia resistentes a todos os antibióticos conhecidos.

A primeira vez que Mark King teve gonorreia ele era um adolescente de Lousiana, nos EUA, nos anos 70. Ele tinha os sintomas clássicos: queimação e desconforto quando urinava, e um corrimento grosso que manchava suas cuecas.

King então foi até uma clínica e deu um nome e um número de telefone falsos. Ele foi tratado rapidamente com antibióticos e mandado de volta para casa. Alguns anos depois, os mesmos sintomas reapareceram. Naquela época, o homem de então 22 anos morava em West Hollywood e esperava começar sua carreira como ator.

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Quando King se assumiu gay para os pais, ser homossexual era muito diferente na Louisiana e em Los Angeles. A homossexualidade foi ilegal na Louisiana até 2003, e a Califórnia legalizou ser gay em 1979. Em Los Angeles havia uma próspera cena gay onde King, pela primeira vez, pode abraçar livremente sua sexualidade. Ele frequentava saunas e conhecia homens em clubes e nas ruas movimentadas da cidade. O sexo estava por toda parte.

Erin Aniker para Mosaic.

“Não haver uma cultura inteiramente formada em torno desses espaços foi o que nos juntou como pessoas. Sexo era a única expressão que podíamos reclamar para nós como pessoas LGBT”, diz King.

Quando entrou na clínica a alguns quarteirões do coração da vida noturna gay em Santa Monica, King, com seu cabelo loiro grosso com toques de ruivo, olhou em volta. A sala estava cheia de outros homens gays.

“O que você faz quando tem 22 anos e é gay? Você flerta. Lembro de estar sentado na sala de espera flertando com outros homens”, lembra King, rindo. “Meu Verão do Amor foi em 1982. Era um parque de diversões. Eu era jovem e estava sempre caçando.”

Como poucos anos antes, o médico entregou a ele um punhado de antibióticos para tomar por alguns dias. Não era um problema. Na verdade, como King descreve, era “simplesmente parte da rotina”.

“Era o preço por transar, e não era muito caro.” Mas era só a calma antes da tempestade, de várias maneiras. Quando pegou gonorreia de novo nos anos 90, ele ficou aliviado ao saber que o tratamento então era só uma dose. Penicilina não era mais eficaz, mas ciprofloxacina era o tratamento recomendado e só era preciso tomar uma dose. Aos olhos de King, pegar gonorreia era um problema ainda menor na época.

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Mas esse é um sintoma de regimes de tratamento começando o falhar. A bactéria Neisseria gonorrheae estava desenvolvendo resistência a quase toda droga usada para tratá-la.

Quando recebeu o prêmio Nobel de Medicina por descobrir a penicilina em 1945, Alexander Fleming terminou seu discurso com um aviso: “Há o risco que o homem ignorante use uma dose demasiada em si e, expondo esses micróbios a quantidades não-letais da droga, os torne resistentes”, disse.

Em outras palavras, conhecemos a capacidade das bactérias de desenvolver resistência a drogas desde os primórdios da era dos antibióticos. O Dr. Manica Balasegaram é diretor da Global Antibiotic Research and Development Partnership (GARDP), de Genebra. Essa é uma iniciativa conjunta entre a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Drugs for Neglected Diseases Initiative (DNDi), e visa desenvolver ou melhorar tratamentos para infecções bacterianas.

“Todos os antibióticos têm data de validade – é a evolução”, ele diz. “É uma questão de quão rápido elas vão vencer.” Resistência a antibióticos é uma das maiores ameaças à saúde, segurança alimentar e desenvolvimento globais. Infecções comuns, como pneumonia e tuberculose, estão cada vez mais difíceis de tratar. Mas a GARDP escolheu focar na gonorreia como uma de suas prioridades.

A infecção transmitida sexualmente chamou a atenção de Balasegaram por várias razões. Por exemplo, muitos dos antibióticos usados atualmente contra gonorreia são usados amplamente para outras infecções, e a N. gonorrheae tem a habilidade de adquirir resistência de outras bactérias incrivelmente rápido.

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Segundo, infecções de gonorreia sem tratamento trazem com elas uma variedade de complicações de saúde que podem ter consequências devastadoras. “Gonorreia é a infecção transmitida sexualmente mais importante; é a infecção com que mais nos preocupamos”, diz Balasegaram.

Todo ano, cerca de 78 milhões de pessoas são infectadas com gonorreia, a bactéria sexualmente transmissível mais comum depois da clamídia, segundo a OMS. A gonorreia pode infectar os genitais, o reto e a garganta. Os sintomas incluem corrimento do pênis e vagina e uma queimação durante o xixi causada por uma inflamação na uretra. Mas muitas pessoas infectadas não apresentam nenhum sintoma, o que significa que a pessoa acaba não diagnosticada e acaba sem tratamento.

As complicações da gonorreia sem tratamento podem ser severas e atingem desproporcionalmente as mulheres, que têm mais chances de não apresentar sintomas. Gonorreia, quando não tratada, não só aumenta o risco de contrair HIV, mas está ligada a um risco maior de doenças inflamatórias pélvicas, que podem causar gravidez ectópica e infertilidade. A mulher grávida também pode passar a infecção para o bebê, o que pode causar cegueira.

Lidar com a ameaça da gonorreia resistente não será fácil – os desafios para desenvolver um novo antibiótico não podem ser subestimados. Há dinheiro para pesquisa e desenvolvimento disponível? Quem terá acesso a esse antibiótico? E mais importante, como controlar o uso para estender a vida útil do medicamento?

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O que torna a pesquisa para um novo antibiótico para gonorreia particularmente desafiador é a frequência de infecções assintomáticas, além da habilidade da gonorreia de se adaptar ao sistema imunológico do hospedeiro e desenvolver resistência a antibióticos. Uma grande preocupação é que a N. gonorrheae pode viver na garganta sem render sintomas, a bactéria pode adquirir resistência de outras bactérias que também vivem ali, e que podem já ter sido expostas a antibióticos no passado. E com evidências de que sexo oral está se tornando cada vez mais comum em algumas partes do mundo, isso é particularmente problemático.

“O sexo oral está alimentando a resistência. É uma rede de pessoas que fazem muito sexo oral. É a nova norma”, diz a Dra. Teodora Wi, médica do Departamento de Saúde e Pesquisa Reprodutiva da OMS em Genebra, falando especialmente sobre a Ásia. Esses desafios e preocupações atraíram Balasegaram, mas ele está mais determinado que nunca a trazer uma nova droga ao mercado.

“As pessoas estão morrendo de infecções resistentes a drogas. Isso, sem dúvida, porque essa área não tinha prioridade no passado, porque outras áreas da pesquisa e desenvolvimento são mais lucrativas”, ele diz. “Antibióticos são um bem público global. Acho que não é fácil colocar um valor financeiro nisso.”

Dados coletados recentemente pela OMS examinaram tendências de gonorreia resistente em 77 países – países que são parte da agência de saúde Gonococcal Antimicrobial Surveillance Program (GASP), uma rede global de laboratórios regionais que rastreia o surgimento e propagação da resistência. E os resultados não são bons.

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Mais de 80% dos países relataram que a azitromicina, um antibiótico prescrito amplamente para tratar várias infecções comuns, incluindo as transmitidas sexualmente (DSTs), encontrou resistência.

Mais preocupante ainda é que 66% dos países pesquisados têm casos que resistem a antibióticos de último recurso chamados cefalosporina de espectro estendido (ESCs).

E como Wi aponta, a imagem no mundo real só pode ser pior, porque a vigilância global sobre gonorreia resistente é falha e feita com mais frequência em comunidades de alta renda, que têm mais recursos. Por exemplo, dos 77 países pesquisados, poucos são da África Subsaariana, uma região com altas taxas de gonorreia.

Erin Aniker para Mosaic.

“Estamos vendo apenas metade da imagem total. Precisamos nos preparar para um futuro onde não vai haver cura”, diz Wi. E em mais um sinal de que estamos ficando sem tempo, em março deste ano os piores medos dos especialistas em saúde foram confirmados: um caso de supergonorreia, apelidado de o “pior caso da história”, foi encontrado num homem que se consultou numa clínica de saúde local.

Ele disse ter tido contato sexual com uma mulher do Sudeste Asiático. Oficiais de saúde disseram que foi a primeira vez que essa cepa não pode ser curada com nenhum dos antibióticos usados normalmente para tratar a doença. Apesar de desde então o paciente ter respondido a outro antibiótico, os médicos o descreveram como “muito sortudo”. Isso é uma indicação de uma crise maior – uma crise que não conhece fronteiras.

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A Tailândia está na linha de frente da luta contra a gonorreia resistente a antibióticos. O país é um destino chave da indústria de turismo sexual, onde DSTs como a gonorreia podem se espalhar facilmente pelas fronteiras e além.

E como muitos outros países da região, há uma cultura de acesso sem prescrição a antibióticos, o que significam que os pacientes se arriscam a usar as drogas erradas – ou pior.

Estou num distrito perto da capital da Tailândia, Bangkok, para me encontrar com Boontham, um farmacêutico. Nos encontramos no estoque da empresa de medicina tradicional que ele também comanda – um negócio muito mais lucrativo que sua farmácia. A sala está cheia até o teto com caixas de comprimidos de ervas estranhas de que nunca ouvi falar.

O custo de se consultar com um médico e o estigma que cerca as DSTs significam que muitos tailandeses confiam em farmacêuticos como Boontham para curar sua gonorreia. Mas ele pode estar fazendo mais mal que bem.

Apesar de Boontham ter diploma de farmacêutica e atuar na área há mais de 30 anos, ele não tem ideia de quais são as diretrizes da Tailândia para gonorreia. Na verdade, ele está mais de uma década atrasado. E ele, claro, não pode diagnosticar os pacientes com precisão, particularmente porque a gonorreia tem sintomas similares aos da clamídia.

“Quando faz isso há muito tempo, você faz o que tem que fazer, e isso é só um palpite.

“Agora uso ciprofloxacina para tratar gonorreia”, ele diz. “Se isso não funciona, meu palpite é que é clamídia.”

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Digo a ele que a gonorreia na Tailândia, como em muitos outros países, mostrou ampla resistência à ciprofloxacina – e que o país na verdade parou de recomendar a droga há mais de dez anos. “Não é resistente, os médicos usam”, ele diz. “Prescrevo isso porque é barato. Em hospitais eles prescrevem antibióticos novos que são mais eficientes, mas são mais caros.”

Em países onde antibióticos são vendidos sem prescrição, pesquisas mostram que as pessoas têm mais chances de procurar um farmacêutico que um médico. Mas mesmo que especialistas concordem que restringir a venda de antibióticos – particularmente em áreas rurais ou remotas onde há poucos médicos – não é a resposta, isso ainda apresenta um grande problema na luta contra as infecções resistentes a drogas.

“O problema é que quando você procura um farmacêutico e toma antibióticos, talvez seus sintomas desapareçam, mas você ainda tem a infecção. O que significa que você pode transmiti-la e causar uma resistência ainda maior”, diz Wi

Pergunto a Boontham se ele se preocupa com resistência – se ele tem medo que as pessoas que ele trata por gonorreia não estejam realmente curadas. “Resistência a medicamentos é trabalho para um médico, não um farmacêutico”, ele diz.

Mas a compra casual de antibióticos sem prescrição não está confinada a Tailândia. Essa é uma grande preocupação em várias partes do mundo, sem uma visão clara de como lidar com o problema crescente.

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Dar antibióticos que provavelmente não funcionam mais para pessoas com gonorreia também acontece em países mais ricos – países onde você esperaria diretrizes de tratamento mais severas.

Na verdade, um estudo no BMJ de 2015 descobriu que muitos clínicos gerais na Inglaterra estão prescrevendo ciprofloxacina, mesmo que o medicamento não seja recomendado para tratar gonorreia desde 2005. Em 2007, a ciprofloxacina ainda correspondia a quase metade das prescrições para gonorreia. Mesmo em 2011, clínicos gerais prescreviam o remédio em 20% dos casos.

Numa tarde amena na movimentada Bangkok, visitei a Silom Community Clinic @ TropMed, uma clínica de DSTs no centro da cidade dedicada a homens que fazem sexo com homens e mulheres transgênero que fazem sexo com homens.

Localizada no 12º andar do Hospital de Doenças Tropicais, a clínica é impecavelmente limpa, com paredes roxas, bandeiras do arco-íris e um cartaz que imediatamente chama minha atenção: “Chupe, Transe, Faça os Exames, Repita”. No corredor principal fica um laboratório de microbiologia que está fazendo um trabalho fundamental e urgente na luta contra a gonorreia resistente a antibióticos. Na verdade, o laboratório pode ser a melhor chance da Tailândia para se proteger dessa ameaça crescente.

A Dr. Eileen Dunne é uma epidemiologista e chefe da seção de pesquisa comportamental e clínica do programa de HIV/DST lá, que funciona como parte de uma colaboração entre o Ministério de Saúde Pública da Tailândia (MOPH) e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC). Ela e sua equipe tailandesa são a melhor linha de defesa do país no bloqueio da gonorreia resistente.

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Erin Aniker para Mosaic.

Em 2015, reconhecendo o perigo mundial de infecções de gonorreia cada vez mais difíceis de tratar – e a ameaça específica que isso impõe a Tailândia – o CDC, a OMS e o MOPH juntaram forças para lançar um programa para rastrear e limitar a propagação da gonorreia resistente a antibióticos.

O programa é uma versão local melhorada do GASP da OMS e é o primeiro do tipo no mundo. Ele se chama EGASP e funciona assim: se um paciente homem chega em uma das duas clínicas com sintomas de gonorreia, eles coletam uma amostra para análise e pedem que ele responda um questionário, que contém perguntas como “Você tomou antibióticos nas últimas duas semanas?” Para criar um ambiente aberto, as clínicas atendem anonimamente e os questionários são feitos em particular num computador.

Os homens são o público-alvo no programa, explica Dunne, porque o rendimento para isolar N. gonorrheae é muito mais alto entre homens que têm infecção de uretra comparado com mulheres que são assintomáticas. Homens que fazem sexo com homens são uma população importante, ela acrescenta, porque pesquisas mostram que eles têm mais chance de desenvolver resistência mais cedo do que a população geral, por razões ainda desconhecidas.

Ela e sua equipe me levaram para ver amostras de cultura coletadas dos pacientes. Dentro da incubadora, as amostras são mantidas em placas de petri a 36º C e com 5% de dióxido de carbono para promover o crescimento da bactéria.

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O cheiro de ágar-ágar, um meio gelatinoso marrom que fornece os nutrientes e um ambiente estável para o crescimento das bactérias, é forte. Uma placa de petri contém um punhado de pontos brancos, sinalizando que o paciente tem mesmo gonorreia. O próximo exame é o de susceptibilidade a antibióticos num laboratório no andar de cima. A amostra será testada para resistência a cinco antibióticos, incluindo ciprofloxacina e as drogas de último recurso cefixima e ceftriaxona. É a resistência a essas duas últimas que mais preocupa.

Do começo do EGASP até 20 de outubro de 2017, de 845 diagnósticos confirmados de gonorreia que passaram por testes de resistência, quase todos os isolados tinham resistência a ciprofloxacina, como em muitos outros países. Mas de maneira encorajadora, nenhum mostrou resistência a drogas de último recurso. É um alívio para a Tailândia, mas não indica que a atividade de Dunne e sua equipe deve diminuir. “As pessoas ficam surpresas e perguntam 'Ah, por que fazer isso se não há amostras de resistência?'”, diz Dunne.

“Na verdade é bom fazer essa vigilância e não ter detectado resistência ainda. Isso significa que temos tempo para nos preparar… e para ter um plano de resposta.

“Ter uma vigilância forte numa região onde isso tem boas chances de emergir é importante para podermos detectar resistência logo cedo.”

Os vizinhos da Tailândia, especificamente Myanmar, Índia, Indonésia e China, registraram uma porcentagem significativamente maior de gonorreia resistente a tratamentos de último recurso que a Tailândia. Com o aumento do movimento de pessoas pelo mundo e a popularidade da Tailândia em turismo sexual, posso ver quão rapidamente essa ameaça pode ter amplas consequências.

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“Acho muito importante detectar isso cedo, mesmo que um caso, porque pode ser um prenúncio para futuros desenvolvimentos de resistência. Essa bactéria é transmitida rapidamente entre as pessoas. Poder encontrar aquele caso mais cedo significa que passos especiais podem ser tomados para controlar a transmissão”, diz Dunne.

Pergunto se o foco em homens que fazem sexo com homens significa que outros grupos podem estar passando despercebidos. E quanto a mulheres, que têm mais chances de não apresentar sintomas de gonorreia? Ou trabalhadores sexuais itinerantes de Myanmar e do Camboja? Fico imaginando se, entre esses grupos de risco, o EGASP está deixando algumas das pessoas mais vulneráveis da Tailândia de lado.

Erin Aniker para Mosaic.

Pergunto se há a possibilidade do programa ser estendido para incluir essas pessoas e seus parceiros.

Dunne concorda que é uma boa ideia. “Essa abordagem principalmente de homens com sintomas é intencional, mas não pode generalizar a população inteira. Essa é só a ponta do icebergue.” Mas o programa ainda está no começo, e ela e sua equipe precisam começar de algum lugar. “Precisamos de mais tempo”, ela diz.

Mas ninguém tem certeza de quanto tempo a Tailândia – e o resto do mundo – tem.

O número de pessoas infectadas com gonorreia vem aumentando rapidamente nos últimos anos. A Austrália viu um aumento de 63% no número de casos relatados desde 2012, com o maior aumento entre jovens heterossexuais urbanos. Na Inglaterra, casos de gonorreia subiram 53% entre 2012 e 2015, liderados por jovens, homens gays e outros homens que fazem sexo com homens. Enquanto isso, nos EUA os casos subiram quase 50% entre 2009 e 2016.

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Segundo alguns especialistas, uma das grandes conquistas da ciência na luta contra o HIV pode ser um fator.

Como muitos, a atitude despreocupada de Mark King com o sexo parou bruscamente quando a epidemia de HIV atingiu a comunidade gay nos EUA. A gonorreia não era mais vista simplesmente como um pequeno preço a pagar por uma noite de sexo.

“Metade da diversão de ser gay era que você não precisava se preocupar com anticoncepcionais. Camisinha era considerada um anticoncepcional, não um controle de DSTs”, diz King.

“Mas quando descobrimos como o HIV era transmitido nos anos 90, pegar gonorreia se tornou uma vergonha porque significava que você estava se arriscando a contrair HIV. De repente, a gonorreia se tornou essa coisa vergonhosa, porque significava que você não estava fazendo a coisa certa.”

Hoje, o HIV não é mais a sentença de morte que já foi. Um movimento civil forte chamou a atenção da política – e da ciência – para a doença. O desenvolvimento de drogas que podiam salvar vidas significou que pessoas com HIV podem viver mais e de maneira saudável.

Mas com a melhora no tratamento e prevenção de HIV, a percepção das pessoas dos riscos pode estar mudando. Profilaxia pré-exposição (prep) é um comprimido diário para pessoas que não têm HIV, mas estão sob risco de contrair. É uma ferramenta poderosa na luta contra o HIV, sem dúvida. Quando tomado todo dia, o medicamento tem 92% de eficácia em prevenir infecção.

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Mas com seu desenvolvimento e aceitação vieram preocupações, com alguns alertando que a taxa de DSTs poderia aumentar entre pessoas usando prep. Alguns estudos pequenos parecem indicar que isso está mesmo acontecendo.

Mas nem todos os especialistas concordam. Os dados desses estudos são ambíguos e não podem ser generalizados. E alguns dizem que os regimes de exames regulares associados à prescrição de prep podem evitar a propagação de DSTs. No entanto, assim como com antibióticos, há pessoas tomando prep sem passar por meios oficiais de saúde. Uma pesquisa, realizada recentemente pelo grupo de ativismo de HIV/AIDS da Europa AIDES, descobriu que cerca de 70% dos usuários informais de prep não estão sendo monitorados por médicos.

King é um entre muitos para quais preocupações com DSTs num contexto mais amplo de ter a capacidade incrível de evitar a infecção com HIV parecem absurdas. “Prep abre as portas para as pessoas fazerem sexo sem medo do HIV. A reação é: sim, mas e quanto as outras DSTs? Meu deus, gonorreia e sífilis”, diz King, sarcasticamente.

“As pessoas me perguntam, como alguém ainda pega HIV e gonorreia hoje em dia? Bom, vamos ver: porque a pessoa está com tesão, disse sim quando deveria ter dito não, bebeu demais, se apaixonou ou confiou na pessoa errada.”

Erin Aniker para Mosaic.

Muita gente no mundo pode se identificar com as palavras de King. Mas OMS está focada em aumentar o uso de camisinha. Wi se preocupa particularmente com a proliferação e popularidade de aplicativos de encontro entre jovens, o que ela acredita que está tornando o sexo sem laços mais comum.

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“Todo mundo precisa ser forte sobre o uso de camisinha. Precisamos de campanhas fortes pelo uso de camisinha”, diz Wi.

Olhando à frente, em que ponto será mais comum ter uma infecção de gonorreia que pode ser tratada com antibióticos do que uma que não pode? É difícil prever, mas é uma realidade bem possível.

“Estamos numa situação agora onde estamos usando antibióticos de último recurso para muitas infecções ou até vemos resistência a esses antibióticos”, diz Balasegaram.

Mas enquanto o GARDP trabalha para trazer novos antibióticos ao mercado, alguns países estão ficando desesperados com a resistência aos tratamentos disponíveis.

A Austrália, que vem registrando resistência a azitromicina, está considerando voltar para um medicamento antigo chamado espectinomicina. A espectinomicina envolve uma dolorosa injeção muscular e foi ligada a toxidade e vários efeitos colaterais. Outra preocupação é a pouca disponibilidade, já que o medicamento é raramente usado no mundo hoje.

Para esse fim, a pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos é urgente. Mas o desenvolvimento de antibióticos é caro e pouco atraente para a indústria farmacêutica – ainda mais quando se trata de uma DST.

Em resposta, o GARDP fez uma parceria com a Entasis Therapeutics, uma empresa de biotecnologia americana, para acelerar o desenvolvimento de um novo antibiótico que será produzido especificamente para abordar gonorreia resistente.

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O zoliflodacin é um antibiótico oral de primeira classe – em outras palavras, um mecanismo único para tratar gonorreia – e é um dos três novos antibióticos atualmente passando por testes. Ele já foi colocado em testes clínicos antes em 2015, mas a falta de investimento impediu a droga de progredir.

Este ano, o GARDP e a Entasis vão lançar a fase final de testes com o zoliflodacin, envolvendo 650 pessoas da Tailândia, África do Sul, EUA e partes da Europa. Se a droga for aprovada pelas agências de regulamentação, a Entasis vai permitir que o GARDP a introduza em 168 países de baixa e média renda. Espera-se que a droga seja registrada em 2021 e esteja disponível no mercado até 2023.

Uma grande força da parceria entre GARDP e Entasis é que isso vai poder limitar para que infecções o zoliflodacin será usado. “Vamos tentar focar essa droga especificamente em DSTs – não em outras infecções onde antibióticos são mais usados”, diz Balasegaram. “O objetivo é não ir além porque é assim que a resistência começa.”

Para esse fim, inicialmente a droga será licenciada apenas para uso contra infecções de gonorreia. Se ela se mostrar eficiente contra clamídia e Mycoplasma genitalium (outra DST bacteriana), a parceria entre GARDP e a Entasis pode licenciá-la para essas duas infecções também, dependendo dos testes clínicos.

“Vamos apoiar testes e registros clínicos, e assim podemos ter um papel importante na introdução e uso responsável do medicamento. Isso nos dá mais controle em como a droga e introduzida e vendida nos países onde trabalhamos”, diz Balasegaram.

Dunne está feliz que a Tailândia seja parte dos testes. “Estamos na base das infecções. Isso não ganha a atenção que merece e por isso estamos empolgados”, ela diz. Mas há muita coisa no caminho do sucesso da droga. O zoliflodacin vai conseguir se manter eficiente pelo maior tempo possível? Ou vai encarar o mesmo destino que os outros antibióticos?

Além disso, a pesquisa é arriscada – não há garantia que os testes clínicos serão um sucesso. “Ainda não sabemos se esse projeto dará realmente certo”, diz Balasegaram. “Mas consideramos isso extremamente importante e estamos comprometidos.”

O desenvolvimento de novos antibióticos levanta várias questões: Como podemos garantir que eles serão usados de maneria apropriada para preservar sua eficiência? E como garantir que aqueles que realmente precisam da droga a consigam?

Uma maneira seria com um exame rápido para diagnóstico – de maneira ideal um que pudesse prever que antibióticos vão funcionar numa infecção em particular e que possa ser usado em diferentes locais do mundo.

Balasegaram diz que eles estão procurando por uma ferramenta simples de diagnóstico desse tipo, mas que ainda não encontraram. Fora as ferramentas de diagnóstico, o uso responsável dos novos antibióticos também depende de diretrizes robustas de tratamento internacionais e nacionais, e regulamentação forte das autoridades para guiar e monitorar o uso de antibióticos.

“Se desenvolvemos um antibiótico para uso restrito, temos que pensar em como vender a droga. Não queremos enviar grandes quantidades para o mundo todo. Mas também queremos que quem precise disso tenha acesso”, ele diz.

É aí que programas de vigilância, como o da Tailândia, são importantes. Mas é inevitável que bactérias desenvolva resistência aos próximos antibióticos. Então Balasegaram quer mais investimento em pesquisa e desenvolvimento focando não só em novos antibióticos, mas também em maneiras alternativas para tratar infecções bacterianas.

“Temos que continuar pesquisando maneiras terapêuticas de tratar essas infecções de maneiras diferentes”, ele diz.

“Isso pode incluir abordagens novas e não convencionais. Acho que esse é um trabalho que pode levar décadas.”

Como seriam essas abordagens é algo complexo. Isso pode incluir criar anticorpos que visam especificamente bactérias ou usar bacteriófagos – vírus que infectam bactérias – como um substituto dos antibióticos. De qualquer maneira, muitos sentem que o fim da era dos antibióticos está próximo, e que a transição dos antibióticos para tratamentos não tradicionais representa grandes desafios.

“É importante ter em mente que bactérias podem evoluir para todas as diferentes abordagens que desenvolvermos”, diz Balasegaram. “Não acho que vamos ver uma solução mágica tão cedo para resolver de vez a questão.”

E esse é um pensamento assustador.

Esta matéria é uma versão editada da publicada pela Wellcome na Mosaic , e foi republicada sob licença Creative Commons. Assine nossa newsletter .

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