Com slogans políticos se tornando propriedade de qualquer um que tenha conta no Twitter em questão de minutos, é fácil achar que partes desse discurso surgem do nada, mas claro que não é assim. Patrisse Cullors é a cofundadora do Black Lives Matter – tanto do movimento como da hashtag. Patrisse é de Los Angeles, mas está na linha de frente dos protestos em resposta à onda de mortes de negros nos EUA em custódia da polícia.
Conversei com Patrisse sobre como ela está divulgando o movimento Black Lives Matter em todo o mundo. Em meio à sua agenda lotada, essa conversa se deu na viagem de trem entre Brighton e Londres: ela está fazendo uma turnê de palestras no Reino Unido e na Irlanda, visitando comunidades, universidades e participando de reuniões do Parlamento.
Videos by VICE
Continua abaixo.
VICE: Fale um pouco sobre a origem do movimento Black Lives Matter.
Patrisse Cullors: Depois que George Zimmerman foi absolvido do assassinato de TrayvonMartin, em julho de 2013, eu e dois amigos pensamos na hashtag. Minha amiga Alicia tinha escrito uma carta de amor aos colegas, dizendo “Nossas Vidas Importam, Vidas Negras Importam”. Coloquei a hashtag na frente – dias depois, as pessoas estavam usando isso em todo o mundo. Estamos falando de vidas de negros, não apenas de homens negros morrendo nas mãos da polícia. Estamos falando de mulheres negras, pessoas transgênero negras, pessoas queer negras. Queríamos mostrar que o sistema atual de supremacia branca antinegros tem graves consequências. Dentro dos EUA, e no mundo todo, o racismo contra os negros tem consequências globais. O Black Lives Matter é um pedido de ação. É um mantra e um testemunho.
“Meu irmão foi preso em cadeias do condado de LA aos 19 anos e quase foi morto pelos xerifes. Eles o espancaram. Eles o torturaram e brutalizaram.”
Como você acabou no meio disso tudo?
Estou envolvida desde os 16 anos. Quando contei que era queer, fui expulsa de casa. Eu e outras mulheres jovens queer de cor cuidamos umas das outras. Tivemos de lidar com a pobreza, com [o fato de] ser negra e parda nos EUA. Tivemos de descobrir como sobreviver. Meu irmão foi preso em cadeias do condado de LA aos 19 anos e quase foi morto pelos xerifes. Eles o espancaram. Eles o torturaram e brutalizaram. Esse foi meu despertar: ver até que ponto o governo pode ir e como ele tratava nossas famílias.
O mais perturbador foi a falta de apoio e a negligência absoluta com que meu irmão e minha família foram tratados. Parte da minha criação foi esse sentimento de raiva, mas eu também sabia que podia fazer alguma coisa. Com meus mentores, de uma organização pelos direitos civis, aprendi meu ofício em 11 anos. Eu me foquei no duto “daescola à prisão” [onde os jovens passam diretamente da escola para o sistema de justiça criminal juvenil], em justiça ambiental e em violência policial.
Esse movimento surgiu da morte de Mike Brown? Foi aí que começamos a ouvir sobre isso aqui no Reino Unido.
Na verdade, acho que o que começou as manifestações foi o assassinato de Oscar Grant. Foi essa nossa politização.
Não ouvi falar muito desse caso aqui. Quem é ele?
Oscar Grant era um jovem negro que foi assassinado pela polícia de Bart em 1º de janeiro de 2010. Ele estava voltando para casa depois de uma festa de Ano Novo com a namorada e alguns amigos. Uma briga começou no trem, perto da estação Fruitvale. Estefilme foi inspirado na história – é muito poderoso. Ele foi algemado, os policiais tiraram três amigos dele do trem na estação. O policial gritava “Relaxa, relaxa!”, e ele respondia que estava relaxado. Logo depois, ele foi baleado pelas costas. Está tudo filmado. Foi um viral na época. Foi isso que acordou nossa geração.
As manifestações começaram em Oakland, LA: foram muitos protestos. Depois, tivemos o assassinato de Trayvon Martin – e, mesmo não saindo às ruas, acompanhamos o julgamento de George Zimmerman. Quando ele foi absolvido, saímos às ruas. Isso se tornou notícia global. E, então, vimos a visibilidade desses assassinatos, de garotos negros em particular. A mídia abordou isso: Renisha McBride, baleada na porta de uma casa enquanto pedia ajuda. Não foi apenas Mike Brown. Foram múltiplos assassinatos. Mike Brown foi a última gota. O movimento tomou impulso. As pessoas sempre foram assassinadas, mas agora parece que o mundo se importa.
Qual a situação atual nos EUA?
Ainda tem muita coisa acontecendo: pessoas indo às reuniões da prefeitura, aos salões do poder, e estamos fechando coisas. Na semana passada, houve uma briga entre a polícia e a comunidade numa reunião da prefeitura em St. Louis, Ferguson. As pessoas estão com muita raiva. Não acho que as mudanças de que precisamos já foram alcançadas. Não houve justiça para Mike Brown, não houve justiça para Eric Garner – pessoas ainda estão morrendo nas mãos do Estado. É importante continuar pressionando por esses diálogos, mesmo que a grande mídia tenha recuado. Proclamamos que 2015 será o ano da resistência, o ano da superação, e ainda estamos no começo.
Você acha que o clima mudou fora das comunidades negras dos EUA?
Temos visto uma conscientização significativa por todo o país, especialmente em comunidades de classe média. O interessante é que os negros de classe média, que antes não se identificavam com as comunidades negras pobres, tiveram sua própria revelação. Eles perceberam que ainda são negros e que ainda vivemos nos EUA. Conheci um casal, os dois formados em Harvard, que criavam os filhos para acreditarem que vivemos numa sociedade pós-racial. Eles matricularam as crianças numa escola particular, onde elas foram chamadas de crioulas. De repente, eles perceberam que aquilo ainda existia. Mesmo com todos esses recursos, ainda somos alvos dessa discriminação. O país está acordando. Cinco ou seis anos atrás, se você falasse com uma pessoa branca aleatória de um bairro de classe média, ela diria que a polícia trabalhava para ela. Se você perguntar agora, há críticas duras. Acho que isso tem muito a ver com as redes sociais e como moldamos a narrativa.
Muitas mulheres negras queer estão se destacando no movimento. Como isso funciona com a igreja, que ainda tem um papel importante em muitas comunidades negras?
Historicamente, houve um grande desligamento entre pessoas negras queer e trans e a igreja. Sabemos que muitos negros queer tiveram de se afastar do movimento pelos direitos civis – incluindo Bayard Rustin, que era a mente por trás da marcha em Washington. Mas, como ele era gay, pediram que ele não participasse. Ninguém aqui quer ser ele dessa vez. Temos pressionado a igreja para que ela veja que a crise afeta todos os negros, não apenas os homens negros cis heterossexuais. Isso dividiu um pouco a igreja, mas muitos pastores estão começando a ajudar as comunidades queer e trans.
Como tem sido sua visita ao Reino Unido e como a situação aqui se relaciona com o que acontece nos EUA?
Em teoria, o Reino Unido tem várias estruturas que permitem a prestação de contas, principalmente das forças da lei. Essa é a teoria. Nos EUA, não temos essas estruturas de prestação de contas. Não temos investigadores independentes: é muito raro que as forças da lei sejam processadas. Sendo assim, percebi que alguns sistemas daqui poderiam ser muito úteis nos EUA. Só que parece que esses sistemas não funcionam.
A Inglaterra fez um ótimo trabalho em se apresentar como um país humanitário, com os EUA sendo o torturador. Mas isso não é verdade.
Há similaridades. O modo como os negros são tratados é puro racismo. Veja Christopher Alder, que teve oataque filmado: os policiais o xingavam com gírias racistas. Ou [veja] os guardas do G4S, que mataram Jimmy Mubenga, trocando mensagens racistas pelo celular. Você tem o mesmo ódio, essas mesmas ideologias supremacistas brancas saindo dos dois países. E aqui também não tem havido justiça. Temos Mike Brown. Temos Eric Garner. Aqui, vocês veem a mesma coisa: Mark Duggan, Sean Rigg. A lista é grande.
Essas coisas foram discutidas nos EUA? Da mesma forma em que aqui, no Reino Unido, sabemos sobre o que está acontecendo em Ferguson?
É o seguinte: os negros norte-americanos não sabem o que está acontecendo no Reino Unido. Eu leio muito, estudei muito, mas cheguei aqui, fiquei sabendo dessas histórias e pensei: “Por que eu não sabia disso? Por que não ouvimos falar disso?”. Os EUA são um lugar muito insular. O Reino Unido tem uma imagem de ser uma sociedade humana melhor, onde não há o mesmo nível de racismo. Mas agora tenho uma perspectiva muito diferente do que vou falar quando voltar para lá. Como você disse, a Inglaterra tem feito um ótimo trabalho se pintando como um país humanitário e os EUA, como o torturador. Mas isso não é verdade.
Tivemos algumas ações solidárias aqui no Reino Unido. As pessoas fecharam ruas em Londres e o shopping Westfield. Qual é o impacto dessas coisas nos EUA? Vocês ficaram sabendo disso?
Sim, isso foi percebido. Temos visto o que as pessoas têm feito em outros países. Aqui, onde vocês fecharam o Westfield, na Espanha e no Brasil. Em Israel, refugiados africanos estão usando o mantra do Black Lives Matter para abordar a violência da polícia israelense. Vemos tudo isso e estamos impressionados. Queríamos mesmo, precisávamos que isso fosse algo global.
E para onde isso vai? O que vai acontecer agora?
Temos 23 ramos do Black Lives Matter no momento: nos EUA, no Canadá e em Gana. Precisamos elevar as lutas locais em todo o país, além de pressionar para que as forças da lei prestem contas por seus atos.
Queremos uma legislação que não invista tanto nas forças da lei e passe a investir nas comunidades pobres. Queremos criar um projeto nacional ligando famílias que foram impactadas pela violência do Estado com uma base de dados nacional para observar oficiais e agências da lei. Também queremos desenvolver um sistema de investigação independente. Queremos que as vítimas tenham direitos, assim como os policiais têm direitos. Até lá, vamos continuar protestando.
Siga o Mike no Twitter.
Tradução: Marina Schnoor