Filmes: O Mordomo


The Butler
2013
3/10


Depois de Precious, Lee Daniels reincide no tema da condição dos afro-americanos com The Butler (traduzido à letra para O Mordomo). Baseado na vida de Eugene Allen, mordomo da Casa Branca durante 34 anos, o segundo projecto de Daniels pretende, então, passar do microcosmos de Precious para uma linha do tempo à escala do país. Mas a viagem através do maiores marcos da luta pelos direitos da comunidade negra revela-se uma mera enumeração, uma sequência tão estudada e impessoal como um mordomo que dispõe talheres numa mesa de banquete.

“A sala deve parecer-te vazia, enquanto estiveres nela.” É esta a ética de trabalho pela qual se rege o mordomo titular do filme, Cecil Gaines, interpretado com demasiada abnegação por Forest Whitaker. E esta frase, repetida durante o filme, espelha também a posição na sociedade a que os americanos negros foram votados durante a segregação. Uma posição de subjugação, de auto-repressão consciente incutida pela estrutura jurídica e pelos costumes sociais activos. Cecil é-nos apresentado como uma criança nascida numa plantação de algodão, da qual foge por medo à própria vida. O jovem, tendo sido treinado para servir os senhores dentro de casa, não desenvolve muita resistência à segregação que encontra e acaba por se destacar na área da restauração de Washington até ser indicado para serviço na Casa Branca.

Passadas as brevíssimas exposições do ensemble de personagens, o filme começa numa cavalgada de cadência irregular, através de eventos como o motim em Little Rock, a violência do KKK ou a Million Man March de Martin Luther King. O realizador apoia-se na personagem do filho de Gaines (um jovem que repudia a atitude de subserviência do pai e que se torna activista pelos direitos civis), mas este binómio é muito mal aproveitado. Durante a quase totalidade do filme, as duas personagens encontram-se afastadas e sem contacto, sendo desperdiçada a oportunidade de uma exploração dos benefícios que cada um julga encontrar na sua posição. Louis atravessa a contestação desde a não-violência de Martin Luther King até ao extremismo dos Black Panthers, num forrest-gumpismo demasiado facilitista. Já Cecil tem direito a cenas com quase cada um dos presidentes americanos que serviu na Casa Branca, cenas estas que têm tão pouco de detalhe político que poderiam ser sketches com taxistas. Estes segmentos não são ajudados pelo casting — um John Cusack com cara de menino é hilariante como Nixon, e Alan Rickman enquanto Reagan é apenas bizarro.

Sim, é certo que este é um filme que se distribui por um elenco alargado — que inclui uma Oprah comedida e surpreendentemente convincente —, logo seria difícil conseguir o tempo de caracterização necessário para qualquer uma das personagens. Mas isso soa a uma desculpa demasiado fácil: quando tem lugar o reencontro final entre Cecil e o seu filho, sentimos que a única viagem pela qual aquelas personagens passaram foi pelo camarim de maquilhagem. Por fim, a estocada final na credibilidade do filme é dada no último compasso temporal. A eleição de Barack Obama em 2008 é apresentada como a vitória final dos afro-americanos. Que tiro no pé incrível! Não só é apenas uma engraxadela de todo o tamanho a uma administração que ainda está no poder, como também (e sobretudo) causa asco por lembrar as celebrações da “morte do racismo“ — quando bem se sabe que este ainda não está completamente removido do tecido social norte-americano.

O Mordomo pode ser resumido como uma página da Wikipedia em movimento. Não há grande investimento emocional e as nuances da luta pelo progressismo são perdidas em iconofilia. Mas, claro, este é já um dos grandes candidatos aos Óscares do ano que vem. A ver vamos.