Fomos a um Acampamento de Feminismo Militante no Quebec

Uma página do zine distribuído no evento. Fotos pela autora.

A federação de estudantes mais militante do Quebec não está de brincadeira.

No final de semana passado, o comitê de mulheres Association pour une solidarite syndicale etudiante (ASSE) reuniu pelo menos 100 pessoas de toda a cidade para um acampamento de treinamento feminista, cujas oficinas iam da teoria (“interseccionalidade”) ao conhecimento prático (introdução à defesa pessoal).

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“A luta vai ser feminista, ou não haverá luta”, prometia a descrição do evento.

Fui até a escola pré-universitária na cidade de Longueuil com algumas feministas de esquerda da Universidade Concórdia. Chegamos ao prédio austero de concreto cinza e seguimos os cartazes até a cafeteria, que tinha um clima industrial dos anos 90.

Sentadas às mesas de tons pastel estavam feministas de cabelo verde com cara de sono. Algumas estavam reunidas em torno dos (ostensivamente militantes) potes de Nutella e do molho de queijo, e nós rapidamente nos juntamos a elas.

Depois de um café da manhã de sanduíches, achocolatados e bate-papo anticapitalista, começamos a folhear os folhetos preparatórios que uma organizadora nos deu. Aparentemente, o comitê tinha sofrido para achar uma escola que o acolhesse.

“Nossa reputação está começando a nos proceder”, dizia o panfleto. “No último acampamento da ASSE, algumas participantes se portaram de maneira inaceitável (vandalismo da escola sede, vandalismo da associação de estudantes local, roubo de ativistas convidadas).” Putz.

A ASSE ficou famosa por ser uma das principais organizações a se mobilizar contra os aumentos das taxas de matrícula, em 2012, durante uma onda de protestos batizada de Primavera de Bordo. Elas podem ter ganhado uma certa notoriedade, mas as mulheres do movimentos estudantil do Quebec têm coisas maiores para se preocupar.

“Há muita misoginia insidiosa [na esfera militante]”, me falou a coordenadora da oficina antifeminista Marie-Soleil Chretien. “A divisão [de gênero] do trabalho é muito visível no meio ativista em geral, e também na ASSE. O sistema patriarcal pode ser visto mesmo na luta feminista.”

A frustração com o sempre presente patriarcado deu origem à irmandade Montreal Sisterhood. Esse grupo de feministas radicais das esferas punk e da contracultura se formou em 2010 depois que seus membros perceberam que, mesmo nos círculos de esquerda e antifascistas, estavam sujeitos a atitudes patriarcais opressivas. O grupo tem se focado na “educação popular” para mudar essas atitudes.

E a educação que elas oferecem é realmente popular: cerca de 40 pessoas vieram à oficina de defesa pessoal para mulheres organizada por elas.

Uma mulher tatuada e de cabelo laranja da irmandade pediu que todas se sentassem num círculo no segmento preliminar. Apesar de as organizadoras e muitas das participantes lembrarem o estereótipo de uma comuna hippie ou de alguém em um show de rock, a vibe era de acampamento de férias: rodamos o círculo nos apresentando e dizendo por que estávamos ali, rindo, de forma compreensiva, dos mais ridículos contos de assédio de rua.

Depois de uma discussão sobre a importância da autoconfiança (às vezes, os agressores só querem ver o medo nos nossos olhos, alertou uma coordenadora da oficina), nos separamos em grupos e esperamos nossa vez para praticar movimentos de kickboxing com membros da irmandade; para isso, usamos roupas de proteção quando fazíamos o papel dos agressores.

Uma adolescente, de cabelo pink fluorescente e espartilho vermelho de renda, esperava sua vez atrás de uma entusiasmada senhora de 51 anos, que tinha vindo ao acampamento com sua filha, usando um colar de pérolas e tudo mais.

Mas a convivência da variedade de participantes nem sempre foi tão tranquila. Uma oficina sobre feminismo lésbico continuou por quase duas horas além do agendado, com as participantes e coordenadoras discutindo o papel das mulheres trans no feminismo.

Quando a discussão se voltou ao congresso só de mulheres da ASSE e alguém perguntou se elas achavam que as mulheres trans deviam ter um lugar no evento, as coordenadoras respiraram fundo. Feminismo radical lésbico é baseado na abolição de gênero, as coordenadoras responderam. Segundo elas, homens que escolhe se tornar mulheres reforçam o sistema patriarcal de opressão.

Depois disso, o silêncio foi total. Várias pessoas do público ficaram visivelmente contrariadas, incluindo a estudante de Concórdia Madelaine Sommers, que apontou, num francês quebrado, que centenas de mulheres trans são mortas todo ano.

Fumando um cigarro pós-discussão, a coordenadora da oficina Stephanie Paradis elaborou melhor.

“Acho que políticas trans são usadas para evitar a organização feminista. Isso afasta da luta feminista. Eles cooptam espaços onde mulheres que nasceram mulheres poderiam se organizar”, ela me disse.

“Por exemplo, o Centro de Defesa de Gênero da Concórdia costumava ser exclusivo para mulheres. Agora, se tornou [para pessoas trans]. Então, isso contribuiu para a perda de um espaço que, antes, era das mulheres.”

Perguntei a Gabrielle Bouchard, diretora do Centro de Defesa de Gênero, o que ela achava da análise.

“[Feministas trans-excludentes] vão excluir mulheres trans, porque elas não foram ‘criadas como [uma] mulher’, e também excluem homens trans com base em que, agora, eles se identificam como homens”, ela apontou.

“Elas também assumem que todas as mulheres vivem a mesma intersecção de opressão da mesma maneira, e isso é um entendimento muito raso da opressão. Isso é muito século 20.”

Ironicamente, a oficina sobre feminismo lésbico aconteceu logo depois de uma conferência sobre o movimento LGBTQ no feminismo – uma justaposição tensa, já que o movimento queer enfatiza a inclusão de pessoas trans e de gênero não binário.

Outro tópico quente, de acordo com Gabriel Velasco, um delegado de fala mansa da ASSE, é a representação masculina excessiva em papéis de liderança.

Por exemplo, a ASSE tinha dois porta-vozes oficiais na Primavera do Bordo, mas só o homem, Gabriel Nadeau-Dubois, ficou conhecido. Hoje, ele é uma pequena celebridade, enquanto ninguém lembra o nome da porta-voz mulher (Jeanne Reynolds).

Várias participantes do acampamento me falaram que, logo depois de uma grande mobilização, as pessoas tendem a perceber que as mulheres são sub-representadas e que, assim, há um aumento na liderança feminina – no momento, sete dos oito cargos executivos da ASSE estão com mulheres.

“Quando se trata de algo muito politizado, em que você pode ganhar privilégios com o ativismo, muitos mais homens se envolvem”, me disse Jeanne Reynolds, a coordenadora de cabelo roxo da oficina “ABC do Feminismo”. Hábitos informais de exclusão são comuns mesmo dentro de comitês de gênero misto, como cafés da manhã só entre homens e pausas para se fumar em que a estratégia é discutida.

Ela não parecia exageradamente otimista sobre a possibilidade de se destruir o patriarcado interno, acrescentando que, mesmo que mulheres formem a maioria da liderança da ASSE daqui a alguns anos, ativistas podem perceber que as mesmas atitudes de opressão da sociedade como um todo se replicavam dentro do movimento.

Logo, o que aprendi no acampamento de feminismo militante? Que não há um “feminismo” singular, mas também que a imagem assustadora das feministas “radicais” é muito exagerada.

Elas são educadas, gostam de Nutella e só querem ganhar o mesmo que seus compatriotas portadores de pênis – o que dificilmente é uma exigência insensata.

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Tradução: Marina Schnoor