Fomos Testemunhas de Jeová em Espanhol na Comunidade de Paraisópolis

Menos de 10 minutos na companhia das Testemunhas de Jeová, a Bíblia em castelhano me havia sido oferecida quatro vezes por quatro fiéis diferentes. É que o Matsukawa, o fotógrafo aqui desta matéria, e eu decidimos mudar um tiquinho o planejamento de um domingão outonal e colamos na congregação de Paraisópolis. A comunidade é mundão, você sabe. Ou, de repente, intui, já que agora tem até novela da Globo, I Love Paraisópolis. O Censo 2010 somou quase 43 mil pessoas vivendo no bairro, mas essa conta deve ter inflado um bocado. Boa parte desses novos moradores não é brasileira. Trata-se de pessoas nascidas em países vizinhos: paraguaios, colombianos, bolivianos, além de uruguaios, argentinos e chilenos. Tem um pouco de tudo na salada mista latina daquelas quebradas da Zona Sul. Daí que religiosos locais sacaram que tinha gente com saudade de ouvir a palavra de Deus, mas com certa dificuldade de entender o português.

Quando a gente chegou ali, na Rua Major José Marioto Ferreira, 101, o endereço onde os fiéis se reúnem, ainda faltavam uns 15 minutos para os estudos bíblicos começarem. É uma propriedade razoavelmente grande pintada de amarelo. “Não dá para errar”, disse por telefone a Francisca Rodrigues, da Agência Paraisópolis, quando agendei a visita. Realmente. Ela tinha razão. Lá no fundo do altar, deu para avistar um cara aparentando uns 30 e poucos anos, pele negra, cabelo raspado com máquina um e terno bege alguns números maiores do que o corpo. Ele testava os microfones quando nos avistou. Lá no altar, deu para ler uma placa com os dizeres: “Den gracias a Jehová, porque él es bueno. Salmo 106:1”. Vendo aqueles dois estranhos, ele largou tudo e veio mansamente em nossa direção, na porta de entrada da congregação.

– ¿Hola, que tal?

Desenrolei um espanhol para seguir na conversa, explicar o que a gente estava fazendo lá e tentar entender como funcionavam as coisas por ali. Ele ofereceu água, os folhetos La Atalaya, a versão latina do famoso Sentinela, publicação das Testemunhas de Jeová que é impressa em mais de 700 línguas mundo afora. A gente trocou uma ideia em espanhol, claro. Nem eu nem o Matsu havíamos chegado ao conceito de que aquele simpático era, na realidade, baiano.

– Você é brasileiro?
– Sí, brasileño. Nascí en Ilhéus.
– Ué, mas com esse sotaque? – perguntou, meio cabreiro, o Matsukawa.
– É que lá começou com os italianos! – respondeu num portunhol mascado.

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Fiquei sem entender a relação da Itália e o restante. O irmão ficou ali na frente um tempinho conosco, ajustou uns folhetos no balcão da entrada e foi resolver algum pepino que pintou. Nisso, veio a segunda oferta de Bíblia, também feita na língua de Almodóvar e Miguel de Cervantes. Aceitei, claro. Orgulhoso, um sujeito magro, com aparelho nos dentes, camisa branca e gravata cinza, me apresentou do seu smartphone o Jehova’s Witness, o portal mundial da religião. Só depois que eu falei que era brasileiro, ele interrompeu suas apresentações ensaiadas para os fiéis estrangeiros. “Aqui, ó. Já estamos em 726 idiomas! Dá para baixar as edições, tem também em linguagens de sinais e tudo mais.” De fato, a tecnologia está bombando por ali. Crianças, jovens e senhoras de idade estão mandando ver na versão digital. O papel já era.



Foi em cima da hora, já com alguns fiéis posicionados nas cadeiras, que surgiu o Daniel Amarante, 33, o irmão responsável por guiar os estudos bíblicos da comunidade latina naquela manhã. “Faz seis anos que começamos as reuniões em espanhol. Antes, funcionava também às sextas, mas agora [elas] acontecem aos domingos e terças”. O Daniel encanou um pouco com a ideia de aparecer aqui na VICE, mas conversou numa boa, sem problemas. Ele me contou que os encontros com os fiéis latinos juntam, em média, umas 30 pessoas, enquanto, quando o português estrala, o salão acaba ficando pequeno, reunindo mais de 100 religiosos. O tema da fala dele lá no altar foi “¿Logrará uested mantenerse alerta?” (Você conseguirá se manter alerta?). Irmãos, juro que tentei.

Fiz catecismo, frequentei a Igreja Católica quando moleque e lembrava bem que os apóstolos ficavam pro final do livro sagrado. Achei a didática do grupo Jeová de Paraisópolis bacaninha e menos engessada (Papa Francisco, melhor dar uma olhada nessa galera da Zona Sul aqui). O Daniel falava trechos curtos e convidava sempre os fiéis a falarem. Era meio jogral de escola primária, mas estava funcionando. Para cada resposta obtida, ele sinalizava com “Gracias, hermana” ou “Gracias, hermano”. “A gente faz a reunião assim tem bastante tempo já. A comunidade sempre participa”, ele me contou. É real. Das 33 pessoas que estavam na reunião naquela manhã, mais da metade respondeu aos chamados do irmão Daniel. Desse total, seis eram crianças. Uma mãe deixou os estudos de lado e precisou levar o bebê de colo embora antes do final. Mas de resto estava todo mundo boladão ali.

Os fiéis são muitos por aqui, só perdendo em números para os EUA, lugar onde tudo começou. Aqui, 794 mil pessoas professam sua fé em Jeová em 11 mil diferentes congregações. Em 2014, foram realizados 29.870 batismos brazucas. Ao redor do mundo, são 8,2 milhões de fiéis. Uma Testemunha de Jeová não comemora aniversários, nem o Natal, além de não crer num inferno malvadão, eterno e cheio de fogo. Por motivos religiosos, eles também não fazem transfusão de sangue. E não há divisão entre clérigos e leigos: todo mundo é irmão, certo? As pessoas que assumem responsabilidades na congregação, como o Daniel e o rapaz de aparelho dentário que me emprestou seu livro sagrado, não recebem títulos de pastores, não são remunerados e não estão num degrau acima que o restante.

Durante os mais de 90 minutos de estudos, precisei me virar para encontrar “Provérbios”, “Mateo”, “Juan” e “Hebreos” na Bíblia. O capítulo 25 do evangelista Mateus era sobre uma passagem em que Jesus contava uma parábola sobre dez virgens. Tava rolando bem para acompanhar. Só fiquei meio confuso porque, em algum momento, achei que Jesus tinha virado “novio” (namorado) das virgens. O trecho das Sagradas Escrituras também tinha alguma coisa a ver com “esclavos fiel e discretos” e “ovejas” (ovelhas). Aí comecei a boiar um pouco. O Matsu também parecia não estar sacando exatamente qual era a do sermão.

Para acompanhar a leitura, todos os fiéis ganham os livretos da Sentinela em versão gringa. Alguns preferem fazer download e levar o tablet para a reunião. Numa dessas, ganhei o livreto em “lenguaje sencillo” (linguagem simplificada). É que o cara de óculos que ficava levando o microfone de um lado a outro para os fiéis poderem falar com o Daniel percebeu que tinha dado ruim pra mim. Em outro momento, me enrolei para encontrar uma passagem do apóstolo “Juan”. Mas uma irmã que estava de passagem sacou e botou as coisas em ordem. Tinha uns versículos bem massa. Falavam dessa coisa de não se apegar aos prazeres terrenos e coisa e tal. “Cuanto tiempo paso viendo al tele?”, indagou um irmão, pedindo mais atenção ao Todo-Poderoso. Parece que Deus não curte muito a ideia de entretenimento.

Quando chegou a hora do cântico, uma simpática colombiana chamada Zuly Bonilla, 41, percebeu que eu tava na miúda e me ofereceu seu livro para que pudesse soltar minha voz. Olhei a capa e estava escrito Cantemos a Jehová. Edicion grande sin partitura. A arte do livro lembrava um pouco aqueles pôsteres soviéticos maneiros. Como era meio cedo, minha voz acabou saindo meio trovejada e gutural demais para se exaltar Jeová. Um verso que me chamou a atenção falava de um leopardo. Sem querer, acabei pensando em Jesus montado num bicho irado.

A Zuly chegou a Paraisópolis há dois anos e sete meses; desde então, frequenta os estudos bíblicos. Ela não é casada, não tem filhos e trabalha “em casa de família” no Morumbi, o poderoso bairro vizinho, como me disse em bom português. Ela já era Testemunha de Jeová na terra natal e parecia bastante contente, animada em falar comigo. “E como consigo ver a sua matéria? Pode anotar meu email?”, perguntou. “Mas é claro”, respondi. Nisso, chegou a Rubí Mosquera, 43; também colombiana, ela vive no bairro há três anos. Foi ela quem agilizou minha autorização para acompanhar a reunião. De bate-pronto, ela aceitou a ideia. Ela queria saber como estava me sentindo entre os irmãos. Aproveitei para agradecer imensamente por todo o cuidado que os fiéis estavam despejando ali, além de relevar minha inabilidade cristã e até minha vestimenta inadequada. Esqueci a gravata, e o ideal é chegar alinhado. Também não fizemos a barba nem calçamos sapatos. O Matsu ajeitou os cabelos, enquanto eu decidi colocar a camisa xadrez para dentro do jeans. Ele fez o mesmo, e seguimos em frente.

Após o culto, um irmão brasileiro insistiu no espanhol com o Matsu. Perguntou de onde ele era. “São Paulo mesmo”, respondeu ele. Mesmo assim, a conversa continuou bilíngue. A coisa só mudou quando outro irmão chegou falando em português. “E então, foi tudo bem?”, mandou ele. O Matsu respondeu que sim. Foi aí que todo mundo passou a falar o mesmo idioma. A gente estava se sentindo bem ali, sabe? Fomos acolhidos sem restrição alguma, e é ótimo ver uma porção de preconceitos escorrendo pelo ralo. Ninguém aparentava ter nem um terço do fanatismo que costumo jogar para fora num estádio de futebol. Também não houve nenhuma menção sequer a dízimo. Mas ó, se dá para dar uma dica, essa é: vá na fé.