Fotos da cena punk de Madri nos anos 80

Pablo Pérez-Mínguez, Camerinos Rock-ola, 1979-1985. Used with permission from the artist.

Nos anos 1980 na Espanha, renascimento cultural e liberdade de expressão brotaram depois de décadas de ditadura sob Francisco Franco. Essa energia exuberante e bruta foi cristalizada num movimento contracultural apelidado de La Movida, encarnado por frequentadores de show e boêmios. A exposição La Movida: A Chronicle Of Turmoil, 1978-1988 (que aconteceu em setembro de 2019 no festival de fotografia Rencontres d’Arles no sul da França) justapôs o trabalho de quatro fotógrafos espanhóis que retrataram essa força centrífuga, com base em Madri mas que também se espalhou por outras cidades. Uma espontaneidade emancipada e punk abasteceu uma nova geração apaixonada por música, moda, cinema (o jovem Pedro Almodóvar era uma figura-chave da La Movida) e todo tipo de cultura visual.

A edição de junho de 1985 da Rolling Stone incluía uma matéria intitulada “A Juventude Reina na Espanha” (Julian Lennon estava na capa, entre manchetes como “Prince Psicodélico” e “O Rock Cristão de Amy Grant”). O artigo examinava a força cultural da La Movida, com fotos de Mary Ellen Mark. Na era pós-Franco, jovens “declararam aberta a temporada de caça a todas as instituições espanholas: Deus, a igreja católica, o exército, sexo, a família e os velhos direitos”, declarava a matéria. E mais: “Os madrileños… não estão propositalmente tentando fazer uma declaração polícia. Em vez disso, eles estão contando as histórias de suas vidas, que foram moldadas numa arena política”.

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Os quatro artistas presentes na exposição – Alberto García-Alix (1956), Ouka Leele (1957), Pablo Pérez-Minguez (1946-2012) e Miguel Trillo (1953) – foram intrínsecos para o movimento não só como participantes, mas como cronistas com abordagens únicas. As imagens estilo foto de rua de Miguel Trillo documentavam uma geração rebelde e estilosa, enquanto ainda eram retratos sutilmente influenciados por gente como August Sander, Diane Arbus e Irving Penn. Trillo discutiu os prazeres das fotocópias, o peso da fadiga ideológica e como ele se manteve observador entre a turbulenta vida noturna da época.

Você improvisava suas fotos no local: nas ruas, clubes e shows… Você chegou a considerar ter um estúdio?

Os fundos nos locais eram improvisados, sim, mas também pensados. Às vezes eu escolhia a parede primeiro, depois esperava que alguém passasse na frente dela ou perto dela. Eu tinha a paciência de um pescador, esperando alguma coisa morder a isca.

Quão importante era estabelecer um relacionamento com os temas?

Nunca gostei de fotos roubadas. Eu falava com as pessoas e pedia para elas posarem naturalmente, mesmo as colocando de propósito contra a parede ou fazendo elas sentarem. Às vezes coisas inesperadas aconteciam. Tudo tinha que ser muito rápido: uma ou duas fotos no máximo. Eu tentava fazer as pessoas não sorrirem como em fotos de revista ou propagandas, onde os jovens sempre apareciam mostrando os dentes, sempre “felizes”.

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Miguel Trillo, Madrid, 1982. Foto usada com a permissão do artista.

Na exposição, você falou sobre a disparidade entre sua prática fotográfica e o jeito como fotografia de arte – e mesmo a imprensa – consideravam a fotografia durante essa era. Você pode falar um pouco mais sobre isso?

Na época na Europa, minha geração queria considerar a fotografia uma arte, não só uma profissão. Queríamos ser exibidos em galerias de arte contemporânea, em vez de em bares, ou até exclusivamente em galerias de fotografia. No começo dos anos 80, consegui exibir em duas galerias de arte contemporânea importantes de Madri. Eu não queria usar as tradicionais fotos em preto e branco atrás de um vidro, expostas como desenhos ou gravuras. Eu não gostava de fotos enquadradas. A única coisa “tradicional” que fiz foi assinar, numerar e limitar a edição das minhas imagens, para facilitar a venda e coleção, mesmo que algumas fossem fotocópias ou fotos coloridas. Eu projetava slides coloridos. E sim, eu não gostava como a fotografia era tratada na imprensa também, então decidi publicar minhas fotos em preto e branco em fanzines e livros artísticos que eu mesmo editava. Nos anos 90, a fotografia estava muito presente e “normalizada” nas feiras de arte contemporânea; e na virada do século, com a internet, muitos novos caminhos se abriram.

Essa experimentação em forma – projeção, fanzines, fotocópias – era uma linguagem visual renovada. Esse formato te fez reconsiderar seus temas? Ou seus expectadores?

Um projetor de slides, um fanzine ou fotocópias coloridas eram mais fáceis de se identificar para os expectadores. É uma questão de estilo.

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Miguel Trillo, Madrid, 1984. Foto usada com a permissão do artista.

Você tirou fotos no 100 Club em Londres que mostram um estilo e clima similares aos da cena de Madri. Pra você, o que ressoava entre as cenas de diferentes cidades internacionalmente – e o que era específico de Madri?

Madri era específica porque éramos a primeira onda: tudo era novo e misturado, éramos como uma vanguarda, como precursores. Em Londres já havia uma grande indústria de música, moda, clubes, festivais e revistas. A diferença era enorme, mas compartilhávamos o mesmo entusiasmo. Voltei para Madri das férias em Londres com fotos, além de com revistas como as primeiras interações da i-D e The Face. Em Madri, quase ninguém tingia o cabelo ou tinha tatuagens, mesmo assim já havia uma semelhança com Londres ou Nova York, com o estilo de vida descarado de sexo e drogas.

Você acha que algo pode ser dito sobre a geração e era específicas quando essas fotos foram tiradas? Se sim, o que as ancora numa janela histórica específica?

Quando uma cidade – um país – e uma geração jovem encontram liberdades que seus pais ou até irmãos mais velhos não tinham, isso produz uma energia nova. Isso era La Movida: uma época que, além de ter sido muito divertida, estimulou muita atividade artística.

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Miguel Trillo, Madrid, 1982. Foto usada com permissão do artista.

Os textos da exposição descrevem seu trabalho como um tipo de “mapa” das tribos (punks, mods, roqueiros, teddy boys, metaleiros etc.)… Você se vê como uma espécie de antropólogo social? Ou se vê mais como um fotógrafo de rua?

Sim, acho que me vejo como um fotógrafo de rua. Gosto das ruas, dos encontros por acaso; não há intenção de “estudar” ninguém nas minhas fotos. Em vez disso, é uma questão de se divertir e observar, ir para onde a cena acontece: shows, festivais, semanas de moda, ruas comerciais.

Hoje, estamos repensando muita coisa sobre normas de gênero. O estilo da época em que você estava fotografando mostra muita estética de gênero fluído. Como você descreveria a expressão de gênero na época?

Tinha várias figuras femininas fortes, e alguns homens gays que eram parte da La Movida, mas não havia “discurso” feminista ou de orgulho gay. Tudo estava no nível do visível; nada era organizado. Viemos de uma época de discurso político em excesso, de militância, de regras. Não havia interesse em decretos ou slogans depois disso.

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Alberto García-Alix, Gabriel, 1980. Foto usada com a permissão do artista.

As fotos de Alberto García-Alix na exposição trazem referências abertas a drogas e vício. Quanto desse aspecto da cena se infiltrava no que você cobria, mesmo que menos óbvio em seu retrato?

Em muitas fotos da La Movida, há traços de álcool, anfetaminas, haxixe, ácido, heroína… Nas minhas fotos você não vê essas coisas, mas supõe sua presença. Alguns temas morreram meses depois: de acidentes, AIDS, overdoses. Era tudo um resultado de querer experimentar risco, de sentir um frenesi. As substâncias tinham um prestígio intelectual. Num mundo de arte e música, não há controles de álcool ou drogas quando pessoas criativas estão no palco ou em seus estúdios.

Qual era sua relação com os outros três fotógrafos na exposição? Vocês eram amigos, competidores, nenhum dos dois? Havia um senso de comunidade?

Havia um senso de comunidade, porque havia um circuito reduzido de clubes e lojas de roupas. E nos domingos, nas primeiras horas do dia, todo mundo ia para o El Rastro. Não éramos amigos… Eu era o único dos três que não nasceu em Madri; eu estava na cidade fazendo faculdade. Nos conhecíamos de vista, mas tirávamos fotografias muito diferentes. Não estávamos competindo. Alberto García-Alix e Ouka Leele não iam para shows ou festas com suas câmeras. A maioria das fotos de Pérez Mínguez eram de estúdio. Eles queriam viver de fotografia profissionalmente. Eu trabalhava como professor de literatura numa escola pública. A fotografia era para o meu tempo livre, meus momentos de ficção.

Como é sua prática fotográfica hoje em dia?

Não mudei nada. A diferença é que agora, depois de 35 anos ensinando, me aposentei como professor de literatura. Sendo mais velho, tiro mais fotos de dia. O que mais me interessa são festivais de manga, semanas de moda, ruas comerciais. E ali que caço. Como eu disse: Tenho a paciência de um pescador, mas com uma câmera em vez de uma vara de pescar.

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Pablo Pérez-Mínguez, Alaska, Pedro y Fabio, 1979-1985. Collection Adolfo Autric. Foto usada com permissão do artista.
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Alberto García-Alix, Ana Curra esperando mis besos, 1984. Foto usada com permissão do artista.
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Pablo Pérez-Mínguez, Divina May, 1979-1985. Foto usada com permissão do artista.

Matéria originalmente publicada pela i-D EUA.

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