Geração GTA



Ainda me lembro da época em que andava no ciclo. Depois das aulas, o meu amigo Glenn costumava trazer a Playstation 2 até minha casa. Acho que era por eu ter TV no quarto, e ele não — como qualquer adolescente, queríamos privacidade para as nossas obsessões. Lembro-me de nunca perceber como é que se ligavam os fios ao monitor, e de como tentávamos de todas as maneiras possíveis e impossíveis até funcionar. As nossas tardes eram passadas à volta do Vice City, o segundo título que a Rockstar deu ao franchise do GTA. Nele assumimos o papel do Tommy Vercetti, um dealer de coca, daqueles mesmo sacanas, com cabelinho lambido, camisa havaiana e cheio de piadas fáceis. Certo dia, o Glenn tinha uma sniper apontada à cara de um taxista quando o meu pai entrou no quarto. O Glenn premiu o gatilho, fazendo da cabeça do taxista um repuxo de sangue. O meu pai não gostou, e acabaram-se as sessões de GTA no meu quarto.

Seis anos depois, estava a um mês de fazer 18 anos, ou seja, a um mês da permissão legal de comprar o Grand Theft Auto IV. Mas não aguentei a espera, por isso concebi um plano com o meu irmão. Fizemos uma pré-encomenda em nome do Alex, um amigo com 18 anos, amealhámos o nosso guito, e mandámo-lo à loja com 60 dólares (na altura, acreditem, era imenso dinheiro e foi ganho com muita dificuldade). Umas horas depois, foi-nos entregue uma cópia do GTA IV num saquinho de papel, como se fosse contrabando. Jogávamos por turnos, com os polegares prontos a carregar na pausa, não fosse algum dos nossos pais aparecer de repente. Nada nos ia impedir de experimentar o jogo mais importante da nossa geração.



Tanto quanto me lembro — e já lá vão muitos anos — este tem sido um dos jogos mais polémicos de sempre. Porquê? Porque é um jogo associado a cenas satânicas e violentas e que certos grupos (conservadores, claro) apontam como causa de tiroteios escolares e crianças descrentes. Jack Thompson, um ex-advogado da Florida, tem dedicado a sua carreira de activista à missão de destruir o GTA e os seus criadores (bem como o rap e o Howard Stern). Políticos de Nova Iorque criticaram o retrato que o GTA IV faz da sua cidade; as Mothers Against Drunk Driving odiaram o facto de se poder conduzir bêbado no jogo, e a Autoridade Rodoviária de Chicago recusou que se afixassem anúncios à série na sua propriedade. Provavelmente lembras-te das grandes histerias que o GTA já provocou — os crimes de que foi culpado, aquela retórica de “ninguém pensa nas criancinhas?” (Talvez te lembres também que algumas das mais importantes obras literárias do século XX – como o Ulysses e a Lolita – chegaram a ser completamente banidas, mas isso é outra história.)

Em 2005 uns modders descobriram o mini-simulador de sexo “Hot Coffee” escondido no código do Grand Theft Auto: San Andreas, e parecia que o GTA ia sofrer bastante com a descoberta. O San Andreas foi rotulado com a designação “Só para Adultos”, que é comercialmente restritiva, e a Comissão Federal de Negócios começou a investigar as práticas publicitárias da empresa-mãe, a Rockstar. Os jogos mudaram ligeiramente e a empresa comprometeu-se a “referir de forma clara e prominente nas embalagens do produto” quaisquer conteúdos impróprios. O resultado disto? Quando matei um taxista no GTA IV, não houve repuxo de sangue, só o coice da arma, uma solene mancha vermelha no pára-brisas, e um corpo inerte no banco do condutor. As ruas de Liberty City tornaram-se menos alegres e a violência mais humana. Havia histórias como o negócio de táxis de um primo da personagem a ser incendiado à frente dos nossos olhos, um assalto a um banco que falha tragicamente, e uma saga de vingança assente nas atrocidades da Guerra Bósnia.

Alguns afirmaram que a série tinha amadurecido, que tinha finalmente abandonado o tom adolescente dos jogos anteriores para passar envolver-se em assuntos mais “sérios”.

Mas, para mim, o GTA tem estado sempre na linha da frente. A quantidade enorme de jogos longos e focados na narrativa que temos hoje não existiria sem o GTA IV; também não existiriam jogos open-world sem o GTA III. A Rockstar tem estado constantemente na vanguarda da inovação, e a esta série emblemática está cá para superar limites.  

Se isto soa a fanatismo, eu sei. Mas talvez seja consequência de ter crescido com estes jogos — cada edição do GTA, desde os tempos do Vice City, foi um marco na minha adolescência. O que tenho como certo, é que quando comprar a minha cópia do GTA V, ainda vou sentir aquela pica de desobediência.  Será que esta edição vai ter um impacto tão forte como as anteriores? Não sei. É difícil manter, durante tanto tempo, a influência e inovação que o GTA sempre teve. O que sei é que o GTA V é o último grande jogo a sair exclusivamente para a geração actual de consolas.

Além disso, o GTA III foi pioneiro num campo onde jogos como The Last of Us, Bioshock:Infinite e Far Cry 3 se inspiraram para fazer coisas incríveis. As primeiras reviews não se fartam de falar do jogo como a grande cena, mas alguns também referem que ainda retêm a veia misógina que a série sempre teve, e da qual o público se tem apercebido.

Esta última série de GTA continua a sobreviver aos críticos — já quase ninguém acusa o GTA V de ser um monstro que corrompe criancinhas. Até a Fox News anda a publicar artigos onde fala do “desenvolvimento” da série. Só quem se quiser manter ignorante é que pensa que 1) Estes jogos são para crianças; 2) Ganhas pontos por sexo com prostitutas; ou 3) A enorme amplitude do mundo que podes explorar e o nível de detalhe do jogo são os únicos feitos de registo. mais importante que esta conversa toda é que já não vivo com os meus pais. Mundo, até daqui a umas semanas.