A mãe de santo que colocou os programas de auditório na mira da ditadura

No final dos anos 60, um adesivo marcava forte presença nas ruas do Rio de Janeiro. Sobrepostos a um círculo vermelho de contornos negros, o número 7 e a inscrição “Rei da Lira” apareciam fixados nos vidros dos carros, sinalizando a devoção de seus motoristas a um exu pouco ortodoxo.

Aos finais de semana, esses veículos percorriam um vasto e tortuoso caminho rumo a Santíssimo, bairro periférico da zona oeste carioca. Ali, em meio ao mato cerrado, às vias de terra batida e a algumas poucas casas habitadas por trabalhadores de baixa renda, ocorria um dos espetáculos noturnos mais comentados da cidade – um híbrido de procissão religiosa com baile de carnaval promovido pela mãe de santo Cacilda de Assis.

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Cacilda despejando marafo sobre os fiéis. Imagem: reprodução ‘O Cruzeiro’

Para centenas de milhares de brasileiros, Cacilda representava um arquétipo quase felliniano de androginia e hedonismo. Era, afinal de contas, uma mulher de meia-idade que aparecia em público baforando charutos, bebendo cachaça e vestindo espalhafatosas roupas masculinas – fraque, cartola, botas e uma capa rubro-negra de sete quilos, além de joias e penduricalhos diversos. Os paramentos, na verdade, pertenciam a Seu Sete da Lira, o exu que a médium incorporava nas noites de sábado.

Cacilda era uma mulher de meia-idade que aparecia em público baforando charutos, bebendo cachaça e vestindo espalhafatosas roupas masculinas

Bonachão, boêmio e devoto de Santo Antônio, Seu Sete aparecia diante dos fiéis às 21 horas em ponto. Suas sessões, que atravessavam a madrugada e se estendiam até o início da tarde de domingo, eram as mais disputadas da Tenda Espírita Filhos de Cabocla Jurema, o terreiro de umbanda que Cacilda construíra em 1958 com o dinheiro obtido num prêmio de loteria. Álcool, fumo, música e folia eram suas principais ferramentas de trabalho.

Samba e Paganini

Nas sessões de Seu Sete, o acompanhamento musical não se restringia aos tradicionais atabaques. Cordas, metais, bateria e um coral executavam canções dos mais variados ritmos: música popular, erudita, sacra, profana, tangos, valsas, choros, maxixes, boleros, hits radiofônicos e velhos sucessos carnavalescos. O exu regia a orquestra, comandando um repertório que emparelhava Carlos Gardel e Roberto Leal, Chiquinha Gonzaga e Nelson Gonçalves, Moacyr Franco e Carmen Miranda.

Adesivo que fazia sucesso com os motoristas cariocas. Imagem: acervo pessoal (Adão Lamenza Salama)

Uma das grandes inspirações da entidade era Niccolò Paganini, o violinista italiano do século 19 cujo virtuosismo e aparência cadavérica renderam-lhe boatos de envolvimento com o Diabo e a excomunhão do Vaticano. Nos ecumênicos set lists de Santíssimo, sua obra dividia espaço com “Ave Maria”, de Bach e Gounod, “Jesus Cristo”, de Roberto e Erasmo Carlos, “Hava Nagila”, célebre canção festiva do folclore judaico, e também com o hino do Flamengo, time de coração de Seu Sete.

Mas era o samba que ditava a tônica das cerimônias: Ataulfo Alves, Aracy de Almeida, Adoniran Barbosa, Jamelão e Agepê estavam no rol das forças invocadas pela orquestra nos rituais de cura. Os pontos que Cacilda concebia no terreiro foram reunidos em disco pela EMI-Odeon, e composições de sua autoria ganharam intérpretes como Noite Ilustrada, Emilinha Borba, Odete Amaral, Edith Veiga, os Demônios da Garoa e Jackson do Pandeiro – este último, um seguidor confesso do exu.

Doentes terminais e solteironas em busca de casamento fundiam-se numa única massa compacta

A música, acreditava-se, polarizava boas vibrações, agindo como combustível sonoro de uma gigantesca corrente que atingia seu auge à meia-noite, no chamado Pino da Hora Grande. Os fiéis, então, meditavam com os braços entrelaçados, num silêncio rompido apenas pelos gritos daqueles que caíssem em transe. Sobre a multidão devota, Cacilda soprava fumaça e cuspia marafo. Industriais e operários, hippies e engravatados, jovens e idosos, doentes terminais e solteironas em busca de casamento fundiam-se numa única massa compacta.

O Maracanã da Fé

No início da década de 70, as sessões de sábado à noite chegavam a reunir até 20 mil pessoas. Além dos peregrinos, as ruas de Santíssimo também vinham fisgando repórteres.

Notas sobre Cacilda já eram publicadas pela imprensa diária, mas coube sobretudo à revista O Cruzeiro a tarefa de transformá-la em objeto de matérias extensas. O fotógrafo e jornalista Jorge Audi, ex-diretor do semanário carioca, se lembra da grande frequência com que o espiritismo e os cultos afrobrasileiros davam as caras por lá: “A revista era altamente popular e o assunto estava muito em moda”. A abordagem, garante, transcendia o oportunismo editorial: “Alguns dos nossos colegas eram bastante espiritualizados”.

No início da década de 80, o terreiro ainda era visitado por algumas celebridades. Entre elas, Gretchen, a rainha do rebolado. Imagem: acervo pessoal (Adão Lamenza Salama)

Entre esses colegas, ele destaca Ubiratan de Lemos, falecido jornalista amazonense que ingressou na revista em 1951 e quatro anos depois venceria a primeira edição do Prêmio Esso com uma reportagem sobre o êxodo rural e as agruras do pau-de-arara. “Ubiratan era muito prestigiado na redação e pelo público em geral”, diz Audi. “Sempre foi um espiritualista ferrenho. Frequentava centros, integrava grupos de parapsicologia e investigava o fenômeno da materialização”.

Os dotes do exu passaram a ser requisitados por todo tipo de celebridade – Pelé, Gretchen, Capitão Aza, o empresário Rubem Medina, a poetisa modernista Adalgisa Nery

Ao longo do segundo semestre de 1971, Ubiratan esteve na liderança da equipe que registrou nas páginas de O Cruzeiro o crescente alvoroço em Santíssimo. A empreitada se desdobrou em quatro longas reportagens, todas num estilo bem caro ao semanário: manchetes garrafais, textos superlativos e fotografias em profusão. O terreiro ganhou a alcunha de “Maracanã da Fé” e Seu Sete converteu-se em ícone pop, com direito inclusive a pôsteres encartados no miolo da revista, cujas tiragens chegavam a 720 mil exemplares.

Os dotes do exu passaram a ser requisitados por todo tipo de celebridade – Pelé, Gretchen, Capitão Aza, o empresário Rubem Medina, a poetisa modernista Adalgisa Nery – e logo caíram nos radares da televisão. Dali para os programas de auditório, foi um pulo.

Baixou o santo nas chacretes

Às 19 horas do dia 29 de agosto, Cacilda adentrou os estúdios da Rede Globo. Seu Sete era a principal atração da Buzina do Chacrinha, que disputava com o Programa Flávio Cavalcanti, da TV Tupi, a audiência das noites de domingo.

Enquanto Abelardo Barbosa saudava os telespectadores, a mãe de santo se acomodava no palco junto aos músicos e assistentes. Vestida a caráter e já incorporada, ela ingeria cachaça em doses cavalares, cuspindo jatos da bebida sobre o público. De posse do microfone, o exu tomou para si o controle da situação.

A batida dos atabaques servia como pano de fundo para testemunhos de curas e milagres: cegos que recuperaram a visão, infartados que voltaram do além, deficientes que se levantaram de suas cadeiras de rodas, gente que venceu o câncer e a hanseníase. Entre um depoimento e outro, Cacilda proferia frases de efeito e conduzia a orquestra na execução dos pontos de exu. “As curas de Seu Sete da Lira têm uma beleza rara / Porque Seu Sete começa onde a medicina para / É um fato consumado que ninguém mais ignora / Para Seu Sete da Lira, o câncer virou catapora”, cantarolavam os fiéis, antes de invadirem o palco num empurra-empurra alucinado.

Na plateia, pessoas começaram a desmaiar. Os câmeras e contrarregras passavam mal. As chacretes se contorciam e davam ruidosas gargalhadas, aparentemente incorporando pombas-giras.

Na plateia, pessoas começaram a desmaiar. Os câmeras e contrarregras passavam mal. As chacretes se contorciam e davam ruidosas gargalhadas, aparentemente incorporando pombas-giras. Mas, de repente, a balbúrdia foi engolida pelo silêncio. Seu Sete havia iniciado uma oração pelo filho de Chacrinha, Nanato Barbosa, que semanas antes ficara tetraplégico ao bater a cabeça no fundo de uma piscina. O apresentador desatou a chorar.

Seu Sete se apresenta no Programa Flávio Cavalcanti. Imagem: Reprodução (O Cruzeiro)

Duas horas depois, Cacilda foi conduzida pela equipe de Flávio Cavalcanti aos estúdios da Tupi. O cenário de histeria coletiva se repetiu. Um engarrafamento de quase dois quilômetros se formou nas proximidades da emissora e a polícia foi acionada para conter as milhares de pessoas que tentavam forçar a entrada no auditório.

Suicídio em São Gonçalo

Naquele domingo, o município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, havia sido palco de uma morte violenta.

À uma e meia da tarde, o jovem Everaldo Ferreira da Silva, de 31 anos, decidiu tirar a própria vida. Ele estava na casa de Eládio Rodrigues, seu vizinho, e acabou se matando ali mesmo, na presença de conhecidos. Segundo o boletim registrado no 73º DP da cidade, o suicídio se consumou com um “disparo de arma de fogo no ouvido direito”. No local da ocorrência, policiais encontraram um revólver Taurus, calibre 32.

Everaldo, obviamente, não havia assistido à Buzina do Chacrinha e tampouco ao Programa Flávio Cavalcanti. Durante as apresentações de Cacilda, o cadáver do rapaz permanecia no cemitério municipal de São Gonçalo, aguardando exame de necrópsia. Isso não impediu que, nos dias seguintes, imprensa e lideranças religiosas responsabilizassem a mãe de santo pela tragédia.

Periódicos católicos publicaram artigos raivosos contra a presença da umbanda na televisão

O tabloide paulistano Notícias Populares, em matéria publicada na quarta-feira, dia 1º de setembro, se referia a Eládio como um babalaô que reunira fiéis na sala de casa para ver televisão e direcionar energias a Cacilda. Fora de si, Everaldo teria se retirado do cômodo, sacado uma arma e atirado contra a própria cabeça. A reportagem também afirmava que, naquele exato momento, no Rio de Janeiro, dois vizinhos haviam se baleado enquanto discutiam se Seu Sete era um exu masculino ou feminino.

A Igreja não tardou a se envolver na celeuma. Na sexta-feira, 3 de setembro, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Ivo Lorscheiter, declarou a jornalistas que Seu Sete havia prejudicado a imagem do país no exterior. O cardeal Dom Eugênio Sales, em seu programa radiofônico A Voz do Pastor, alertou os ouvintes sobre o “perigo das sub-religiões”, e diversos periódicos católicos publicaram artigos raivosos contra a presença da umbanda na televisão.

Manchete de capa do semanário católico ‘A Cruz’. Imagem: Biblioteca Nacional

Em meio à polêmica, a Censura Federal solicitou a suspensão, por oito dias, dos programas de Chacrinha e Flávio Cavalcanti. A possibilidade de uma intervenção estatal mais severa levou Walter Clark, diretor-geral da Globo, e Almeida Castro, diretor artístico da Tupi, a se reunirem na tarde de quinta-feira, 2 de setembro. O resultado desse encontro foi a assinatura de um protocolo destinado a eliminar as atrações “de mau gosto” das grades de ambas as emissoras.

A censura, porém, havia se enrijecido, e a ameaça do governo pairava no horizonte. O cancelamento de concessões e uma possível proibição das transmissões ao vivo se tornariam assuntos recorrentes nas reuniões ministeriais. Os programas de auditório caíram na mira do regime militar e dela não sairiam tão cedo.

A possibilidade de uma intervenção estatal mais severa levou Walter Clark, diretor-geral da Globo, e Almeida Castro, diretor artístico da Tupi, a se reunirem

Em dezembro, o ministro das comunicações, Hygino Corsetti, se queixaria dos maiôs e rebolados tão caros às assistentes de palco. No ano seguinte, um veto impediria temporariamente que costureiros e figurinistas integrassem júris em shows de calouros – mero pretexto para que homossexuais assumidos, como Clodovil e Clovis Bornay, fossem afastados do vídeo. Em 1973, Flávio Cavalcanti amargaria dois meses de suspensão após entrevistar um homem impotente que perdera a esposa depois de emprestá-la ao vizinho. E até o final da década, entrevistas com celebridades de esquerda, como Jorge Amado e Geraldo Vandré, seriam interditadas com frequência.

Nostalgia

A controvérsia e a publicidade excessiva tornaram Cacilda arredia à imprensa. Nos jornais e revistas, as menções ao seu nome foram ficando cada vez mais raras, até cessarem por completo em meados dos anos 80.

O gradativo anonimato trouxe ao terreiro um aspecto de serenidade. Nas décadas posteriores, visitas de celebridades deixaram de ser rotina, curiosos perderam o interesse pelo trabalho ali desenvolvido e as multidões foram reduzidas a um pequeno, mas assíduo grupo de fiéis – entre eles, o consultor imobiliário Adão Lamenza Salama, dono de uma página sobre Seu Sete no Facebook.

Dona Cacilda e uma seguidora no final dos anos 90. Imagem: Acervo pessoal (Adão Lamenza Salama)

“Minha mãe começou a frequentar o terreiro em 1969. Praticamente nasci no templo e ainda pequeno acompanhava as sessões, bastante encantado com tudo o que presenciava”, conta Adão, que tinha apenas três anos quando a polêmica com Chacrinha e Flávio Cavalcanti ganhou o país. Na adolescência, ele se tornou assistente de Cacilda, com quem trabalharia até dezembro de 2000, quando a médium decidiu encerrar suas atividades.

Cacilda morreu aos 92 anos, de causas naturais, no dia 21 de abril de 2009. Seu terreiro foi transformado em condomínio residencial, e na atual paisagem de Santíssimo quase não restam vestígios dos tempos de outrora. O posto de gasolina Sete da Lira, no entanto, permanece ativo. Antigo ponto de encontro das caravanas que se dirigiam às sessões de sábado, o estabelecimento talvez seja o último remanescente de um período ainda vivo na memória dos fiéis: “Eu, particularmente, preferiria que Seu Sete não tivesse se exposto daquela maneira”, assume Adão. “Mas todos nós nos lembramos daquela época com grande nostalgia”.

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