A sociedade moderna gosta de gabar-se do bom que é viver na actualidade, onde aliados à tecnologia e à ciência há vários sinais de evolução das mentalidades.
Irremediavelmente, quando aparecem escândalos como o mais recente em Hollywood, ou os conhecidos casos de pedofilia na Igreja Católica, há necessidade de dar dois passos atrás para, de seguida, dar três ou mais à frente.
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Hollywood, a nova (!?) “casa de horrores”
Por aquilo que tem corrido nos media americano e inglês, Harvey Weinstein, reputado produtor de cinema, tem sido acusado por inúmeras mulheres (jornalistas, staff das suas empresas, ou actrizes – entre as quais, Ashley Judd, Mira Sorvino, ou Rose Mcgowan), de as convidar para uma “reunião de trabalho” num quarto de hotel, em que as recebia de robe e pedia, posteriormente, para que lhe fizessem uma massagem, para o ver tomar duche, que se masturbassem à sua frente, ou lhe fizessem uma “mamada”.
Tudo com a promessa de ajudar, aqui ou acolá, as suas carreiras. Algumas conseguiram evitar os seus avanços (como Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow) e, pela informação disponível, o visado já fez diversos acordos monetários para silenciar as vítimas que sofreram abusos sexuais. Diz-se que foram três décadas com esta conduta desviante.
Nos últimos dias, o produtor de filmes como Pulp Fiction, O Artista, ou A Paixão de Shakespeare, tem sido imensamente criticado por estrelas femininas (Meryl Streep, Lena Dunham, ou Kate Winslet), mas do lado masculino houve um certo comedimento inicial. Chega a ser constrangedor que figuras como Quentin Tarantino, Michael Moore, ou Leonardo DiCaprio, se tenham escusado a comentar o sucedido – pelo menos até à data desta publicação, 11 de Outubro.
Neste rol de acontecimentos, Matt Damon nega que tenha pressionado uma repórter a não noticiar uma estória sobre o produtor. Sabes como é que é. Quando o “clube dos rapazes” é atacado, muitos fecham-se em copas. Por não se sentirem bem pelos empurrões dados por Weinstein ao seu percurso glorioso, ou por cumplicidade relativamente aos actos perpetrados?
De uma coisa temos a certeza. Depois dos conhecidos casos de alegada pedofilia – com o envolvimento de Woody Allen, ou Roman Polanski -, ou dos esquemas sonolentos de Bill Cosby, mais esqueletos poderão surgir a partir de agora. Claramente, Hollywood tem tudo para ser a nova “casa de horrores” – essencialmente para o comum dos mortais, pois acreditamos que os que andam por lá há muito suspeitavam ou foram coniventes (vê o vídeo abaixo, em que Seth Macfarlane faz uma private joke sobre Harvey Weinstein, na apresentação dos nomeados aos Óscares em 2013 – avançar até ao minuto 3.20). Era um open secret, digamos.
Obviamente, neste domínio, não parece que os tweets de Trump apareçam em catadupa. Entretanto, a esposa de Weinstein anunciou o fim do casamento e ele – entre o pedido de “sinceras desculpas” pelo comportamento e a cura via terapia (lateiro!!!) – foi demitido da sua própria empresa da qual era co-presidente com o irmão e, escreve a Forbes, isso pode ser uma bênção para o negócio da mesma (wtf!).
O destrutivo lema “posso, quero e mando”
Os centros de decisão na política, economia, no entretenimento, ou no campo religioso, sofrem de vários males, sendo a impunidade o maior deles. Pelo poder inerente a cargos de relevo, o “posso, quero e mando” é uma filosofia estúpida e real dos que se julgam intocáveis. Gente que ainda pensa como se estivesse na Idade Média, onde tudo era possível… Literalmente.
A juntar a essa prepotência de merda, há o lado das que se subjugam com o intuito de melhorarem a sua vida, de conquistarem um pedaço de conforto e (no caso de algumas vítimas de crápulas como Weinstein) por desejarem os holofotes da fama. Ao sujeitarem-se a cumprir o “favor sexual”, é disparada a ideia no seu cérebro de que se trata de um mal necessário para que os cifrões cheguem, naturalmente, nos meses seguintes.
Vê também: “A Cidade do México instalou uma ‘cadeira pénis’ no metro para combater o assédio sexual“
Mesmo aquelas que se arrependem, ou aquelas que evitam entrar nesse labirinto nojento, têm medo de se queixarem aos seus pares e, ou, às entidades da justiça e segurança. Seja por não quererem ser ostracizadas (pelo circuito onde se movem), ou porque será sempre a sua palavra contra alguém com um poder e tentáculos incomensuráveis.
Com o smartphone no bolso, ou na sacola, o aconselhável é passarem a gravar entrevistas de trabalho e encontros manhosos (ouve aqui um dos desses meetings entre Weinstein e uma modelo filipino-italiana e aspirante a actriz).
E não sejamos ingénuos e pensemos que são só elas a sofrerem este tipo de assédio e abuso. Ainda no contexto “hollywoodesco“, Corey Feldman, que atingiu o estrelato nos anos 80, revelou que houve um big fish que o convenceu de que era “perfeitamente normal” os homens mais velhos no meio terem relações sexuais com os mais novos. Para Feldman, a pedofilia é “o grande segredo” da indústria cinematográfica mais mediática do Mundo. Elijah Wood, o Frodo Baggins do Senhor dos Anéis, sublinhou também a dimensão desse problema. Esta cultura vigente onde os mais frágeis sofrem nas mãos dos “dominadores”- principalmente, actores e actrizes em início de carreira – , está cada vez mais exposta. Hallelujah.
A sociedade que menoriza as mulheres e o panorama português
É um facto que a maior percentagem dos assédios sexuais é sofrida por elas. Apesar dos esforços de milhentas organizações para que haja igualdade e respeito entre géneros, raças e credos, infelizmente, a maior parte das pessoas neste planeta ainda menoriza o papel das mulheres. É uma forma de pensar tão difícil de mudar que podemos dizer que será equivalente ao tempo que leva um plástico, ou um vidro, a decompor-se na Natureza.
Basta ver a posição que elas ocupam na hierarquia da sociedade. Das empresas à igreja, às tarefas domésticas, passando pelos salários desiguais – mesmo desempenhando a mesma profissão -, muito há a melhorar. E se pensas que a condição das “señoritas” (em comparação à deles) é equilibrada em ambientes ditos modernos e progressivos, como o de Silicon Valley, estás muito enganado. Os “monstros” são novos, os hábitos velhos.
Até nos aspectos mais mundanos, things are hard to change. Se numa semana um homem faz sexo com várias parceiras, é visto como um playboy e herói; se for ela, é uma cabra, puta deslavada. Esta misoginia é fodida e torna-se ainda mais dolorosa quando tem a concordância de mulheres pertencentes a todas as classes sociais. Por estas razões, quem faz habitualmente a coacção julga que a soma do seu poder com a procura incessante de subir na vida de quem precisa – e por esse mesmo indivíduo ter vagina -, é meio caminho andado para exercer os seus dark wishes (repetidamente), sem esperar que essa atitude maléfica um dia lhe “arrebente” na cara, ou entre as pernas.
E por cá? Será que há casos de assédio envolvendo patrões mediáticos (com tiques de tarado)? Numa notícia publicada este Verão pelo jornal Público, é chocante o que lemos: “Todos os dias são abertos dois inquéritos por assédio sexual em Portugal“. Em contraponto, é com algum optimismo que vemos a existência de uma futura lista negra com as empresas que pactuem com este tipo de comportamento reprovável, segundo informação avançada pelo semanário Sol.
Ao falar de política na última segunda-feira à noite, na RTP3, José Pacheco Pereira disse que por “haver muita fome e poucas oportunidades” temos o País que temos, onde “somos todos bons e ninguém se critica”. Se contextualizarmos esta afirmação no âmbito do abuso de poder que possa existir em muitos locais de trabalho, não seria surpresa que haja uma grande quantidade de pessoas que se sujeitam (com a complacência de colegas) a muita treta e, em alguns casos, sejam pressionadas para dar o corpo ao manifesto. Seja como for, a gravidade de alguns assédios é uma questão de polícia. Que haja coragem para denunciar às autoridades condutas e actos intoleráveis e, caso for provado, que os culpados sejam exemplarmente punidos.
Caso sofras ou conheças vítimas de qualquer tipo de violência liga, ou diz-lhes para ligar, para a linha de Apoio à Vítima (APAV), 116 006. A chamada é gratuita e funciona entre as 9 e as 19 horas. Consulta o site aqui. Em situações graves e fora desse horário, aconselhamos que contactes os agentes da autoridade da tua localidade.
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