“Electric Rainbow”: o trio eléctrico do arco-íris chegou à cidade

Oh não, mais um colectivo de DJs! Calma, que estes são diferentes. Oh não, a conversa do ser diferente e vai-se a ver, é mais do mesmo! Olhem que não, olhem que não. O colectivo internacional Electric Rainbow, tem o seu foco na electrificação da música tradicional por todo o Mundo e promete festa da rija.

Eduardo Morais, Jacco Gardner e María Pandiello unem e celebram estas misturas, segundo os próprios, “através de mixtapes e eventos ao vivo, dedicados à psicadelia latina com ecos de terras distantes, combinada com folclore, tribalismos e sintetizadores”.

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Depois de já terem lançado algumas mixtapes com DJs do México, Itália e Alemanha, a primeira festa acontece a 9 de Dezembro, no Musicbox, em Lisboa. O convidado especial é Cyril Yeterian, cabecilha da aclamada Bongo Joe Records, editora e loja sediada em Genebra, na Suíça. Falámos com os três mentores do colectivo sobre o que é isso da “electrificação” da música tradicional, territórios sagrados e sobre o panorama actual do clubbing.

VICE Portugal: A electrificação que se propõe fazer da música tradicional de todo o Mundo, surgiu em que contexto? E como é que se concretiza em concreto? Remisturam ao vivo, pré-produzem antes, como funciona?

Jacco Gardner: Com a electrificação da música tradicional de todo o Mundo, referimo-nos a uma época em que a electricidade transformou a maneira como as pessoas tocavam a música tradicional com que cresceram. Por vezes para se rebelarem, outras para se empoderarem e por vezes até por ambas.

Uma coisa que nos parece claro é que o espalhar destas tecnologias globalmente, criou um factor unificador. Não algo puramente feito de colonização de culturas, pois as guitarras podem ser tocadas de várias formas. O aspecto belo é a mistura de culturas e expressões que formam uma poderosa identidade completamente nova e que é entendida das mais variadas maneiras. Não só a guitarra eléctrica faz parte disto, mas também o impacto da rádio e das tecnologias de gravação. O nascimento de novas identidades é o que nos inspira.

María P.: Por um lado, o que nos interessa artisticamente no Electric Rainbow é observar as relações entre a música autóctone e a electrificação. Um exemplo para ilustrar poderia ser o Zamrock, que teve origem na Zâmbia, nos anos 70. Não é rock and roll, nem música electrónica, nem o que se conhece sob a questionável definição de “world music”. É tudo isso junto, misturado de tal forma que é uma nova coisa. Por outro lado está o labor como DJs, nesse sentido, sim a ideia é remisturar ao vivo. Estamos a trabalhar para isso com distintas experiências.

Para além de unir e celebrar, que é de valor, não será arriscado mexer em território “sagrado”, digamos assim?

Eduardo Morais: O facto de o Electric Rainbow albergar malta de todo o Mundo faz com que, por si só, não existam exactamente esses territórios sagrados para nós. Queremos não só celebrar, como dar a conhecer e divulgar outras latitudes na pista de dança, que é o campo para onde a maioria destas músicas foram concebidas. É música de baile, no verdadeiro sentido da palavra. Nos últimos anos, tem realmente surgido algum burburinho sobre a exploração financeira no universo das reedições de discos, que é dominada por um par de editoras. O Ocidente torce o nariz aos editores que vão a países e cidades menos favorecidas, contactam com os músicos locais, descobrem como é que esse mesmo desfavorecimento foi transposto para a vibração das guitarras, adquirem os seus discos e os seus direitos e compilam tudo em objectos gratificantes.

Na grande maioria das vezes, os músicos locais são realmente bem pagos pela transação e são homenageados no melhor sentido. É um pouco como o sampling no hip-hop, é a pura homenagem e não há nada de errado com isso. No fundo, tudo tem a ver um pouco com o aumento do teu léxico sonoro. É natural quereres ouvir melodias afastadas das tuas origens. É enriquecedor. No meu caso, como nunca tive dinheiro para viajar, faço-o através de um meio mais barato, a música.

Decididamente, não estão a embarcar no panorama clássico actual da malta “gira-disquista”. Estavam fartos do panorama clubbing actual? Parece que hoje em dia toda a gente é DJ

María P.: Eu tenho um amigo DJ que uma vez me disse “para ser DJ há que ser um obcecado”. E é verdade. Começar a ser DJ não é difícil (também não tenho nada contra isso), mas manter-se como DJ e crescer artisticamente… isso já é mais complicado. É nesse ponto em que pessoalmente vejo quem é um bom DJ, alguém preocupado com a pesquisa, sensível aos formatos, que saiba aproveitar a materialidade dos discos, que progrida tecnicamente e consiga ir para além de passar um disco seguido de outro.

Pessoalmente os DJs selectors e colectors já não me motivam tanto, interessa-me muito mais alguém que olhe para os seus discos e saiba dar-lhes uma voz própria. Para mim, isso é um DJ, alguém obcecado até chegar a esse ponto. E há de facto alguns DJs em Portugal que admiro bastante, um deles é o Edu.

Eduardo Morais: O panorama clubbing actual está em plena forma, pelo menos, por cá. Consegues com frequência ser banhado com bons sets de Disco, de Soul, de Techno, de Rock na noite de Lisboa, que é por onde nos movemos. Pessoalmente, não tenho nada contra a malta toda querer ser DJ, agora convém é teres no mínimo algo a dizer e não levar a coisa simplesmente como um estatuto social. No nosso caso, a vertente do “escavador de pérolas dançantes” sempre esteve muito presente nos nossos DJ sets. Não que sejamos uns detentores elitistas de determinados temas, mas, se o Electric Rainbow fizer com que o público venha ouvir um conjunto de músicas que só se misturam na nossa festa, o objectivo foi seguramente cumprido.

A música feita nos dias de hoje, ainda vos diz algo, ou preferem resgatar coisas do baú, sacudir-lhes o pó e, como se pode ver, meter tudo a arejar?

Jacco Gardner: Não quero soar como um velho amargo, mas noto que a música feita antes da Internet é muito menos consciente, principalmente na perspectiva de indústria. Muitos artistas independentes de hoje sabem tudo o que é necessário para se promover e o processo comercial de self-branding é audível nos seus temas, mesmo que só em alguns detalhes. As limitações tecnológicas, ou até a lacuna no acesso a qualquer possibilidade de gravação, criava mais música pelo amor de a tocar e tem uma energia impossível de recriar. É por isso que, por exemplo, a música oriunda de um lugar remoto de África soa bastante diferente e, por vezes, menos artificial que a música produzida num estúdio chique, com equipamento caro e todo o tempo do mundo para gravar e editar.

É sempre complexo falar de vós próprios, mas podem apresentar-se ao Mundo? Parecem-me três pessoas diferentes que se complementam… é isso?

María P.: Somos três amigos que temos chegado a um interesse comum, atravessando distintos caminhos. O meu nome como DJ é María P. Também sou investigadora de Doutoramento em cultura visual. Comecei na rádio há muitos anos (15?), desde então nunca parei de passar música e acumular discos. Sou a fundadora do Electric Rainbow e o meu acréscimo musical neste colectivo está mais focado na música latina feita nos Estados Unidos e o seu cruzamento com o Funk ou a Psicodelia. Fascinam-me os sons, as estéticas, os gangs, a música como arma de empoderamento. No Electric Rainbow programo, levo as mixtapes, escrevo e passo música.

O Eduardo Morais precisa de pouca apresentação em Portugal. Foi aquela pessoa que preencheu lacunas documentais em torno da música portuguesa. Um grande documentarista e magnífico DJ na minha opinião. Creio que o Edu sempre esteve interessado no impacto das novas tecnologias na música portuguesa e isso vê-se muito claramente no tramado sociológico, político e económico português. Edu é uma peça essencial no Electric Rainbow. Eu diria que não teria sido possível sem ele. No Electric Rainbow, Edu programa, leva a parte da imprensa, escreve e passa música.

https://www.youtube.com/watch?v=Y4NUOFZHvGg

O Jacco Gardner é músico e produtor, lançou dois discos em nome próprio e está a preparar o terceiro. Tem outro projecto chamado Bruxas, que assinou pela Dekmantel, um projecto mais virado para a dança. Muito recentemente acompanhou os W.I.T.C.H como baixista numa tour europeia e antes disso esteve com a banda na Zâmbia a absorver o Zamrock dos 70s. O Zamrock foi um movimento musical oriundo daquele país, que integrou o rock and roll com a música tradicional local. Ele, como o Edu é parte do núcleo central do Electric Rainbow e trabalha principalmente o grafismo e a programação.

Lançaram algumas mixtapes com DJs do México, Itália e Alemanha. Como é que funciona esse networking tão global? Pode dizer-se que já há um movimento Electric Rainbow por esse Mundo fora?

María P.: Desde o início, o Electric Rainbow funcionou assim. É uma parte intrínseca à sua identidade. Algumas das pessoas envolvidas são amigas, outras são pessoas com quem temos trabalhado num momento pontual, outras são desconhecidas, mas gostamos do trabalho delas e por isso as convidámos… O que fazemos é juntar os nossos “favoritos”, é como criar uma “equipa” ideal de indivíduos que admiramos e com quem queremos aprender. A verdade é que, em pouco tempo, tem sido muito enriquecedor. No fundo, não vemos diferenças entre o “aqui” e o “mundo lá fora”. Estamos unidos pela música e isso é um movimento em si, mas pode ser chamado de muitas formas.

O vosso primeiro convidado, Cyril Yeterian, da Bongo Joe Records, vem da Suíça. O Cyryl traduz o vosso modo de estar neste arco-íris eléctrico?

Jacco Gardner: Não me parece que o Cyril tenha uma única sincera preferência cultural e parece-me ser bastante eclético como coleccionador. O aspecto da electrificação da música tradicional e a mistura incomum de culturas parecem estar bastante presentes nas suas selecções e, definitivamente, encaixa no conceito do Electric Rainbow.

Esperam no futuro trazer mais nomes? Com que regularidade?

María P.: Sim, temos uma residência bimensal no Musicbox e já estamos a fechar outros nomes. Mas, não posso dizer! Para seguintes edições estamos também a considerar bandas.

A primeira festa será no dia 9 de Dezembro, no Musicbox, em Lisboa. Como estão esses níveis de ansiedade? A logística será simples, ou há uma componente visual?

Eduardo Morais: No meu caso em particular, as turbinas da ansiedade estão sempre ligadas, mas tudo desaparece quando subo à cabine. Tratando-se de um DJ set, a logística é bastante simples. Tratando-se da apresentação do colectivo, receberemos a malta com um pequeno vídeo alusivo à estética do Electric Rainbow. A nível sonoro, para além da dificuldade em equalizar coerentemente todas as decisões dos produtores de todos os discos que levamos na mala, teremos um par de efeitos analógicos para disfarçar a nossa má técnica gira-disquista e levaremos um par de temas que nós próprios individualmente editámos e compusemos a partir de samples de discos de que gostamos.

Dado o carácter internacional dos intervenientes, de futuro essas festas são também para sair de Lisboa e espalhar cor e alegria por outras cidades portuguesas e planetárias?

Jacco Gardner: Para já, os eventos têm lugar em Lisboa, pois é onde estamos sediados e, por si só, é uma cidade historicamente rica em várias culturas e misturas, portanto, faz sentido começar algo tão inclusivo como o Electric Rainbow aqui. Por outro lado, o aspecto unificador do colectivo não está aqui para beneficiar algum lugar ou país especifico e adorávamos ver este arco-íris expandir-se, pois somos curiosos por natureza.


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