“Já deu de pintura de escravo, quero ver rostos pretos sentados no trono”

Samuel D'Saboia

No dia 20 de outubro, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria sobre a exposição do artista recifense Samuel D’Saboia nos Estados Unidos. Sob a chamada “Aos 21, artista plástico recifense expõe violência do Brasil em Nova York”, o post da reportagem no Twitter teve mais de 800 respostas. A maioria, porém, não eram comentários sobre a arte de Sarmurr (como o artista é conhecido por seu usuário no Instagram). Muitos criticavam a aparência do garoto negro, dizendo que ele tinha “cara de trombadinha”, e faziam malabarismos ideológicos para ligarem sua obra ao PT. Os que de fato falavam das pinturas de Samuel criticavam os “rabiscos” e desenhos expostos na foto do artista, dizendo que aquilo não poderia ser considerado arte.

Os desenhos na foto, na verdade, nem ao menos eram as obras oficialmente expostas em Nova York — parte da série Belas Feridas, inspirada pelo assassinato de cinco de seus amigos em sua cidade natal, Recife. Se tratavam de rascunhos do artista. Mas, mesmo que não fossem, Samuel não parece muito preocupado com os chavões da arte clássica. “Me diverti muito no Louvre, mas não é o meu barato”, fala em entrevista por e-mail o pintor que, após expôr em Nova York, também foi a Portugal e Paris.

Videos by VICE

A arte de Sarmurr é plural e diversa. Além dos quadros, ele já trabalhou com moda, vídeo e até mantinha um blog onde entrevistava outros jovens artistas que tratavam dos temas que lhe interessam: corpos negros, a identidade queer, a juventude contemporânea. Para a nossa Semana da Consciência Negra 2018, entrevistei Samuel sobre sua obra, os desafios que ele enfrenta para adentrar o mercado artístico tradicional (spoiler: ele não quer) e o conservadorismo que atinge a arte.

VICE: Quando você estava crescendo, o que te levou gostar de arte e, depois, a começar a pintar?
Sarmurr: Minha vida sempre foi rodeada por arte; eu a enxergava nas cenas diárias. Em minha mãe costurando, na forma como meus pais dançavam juntos, em como toda a energia da minha casa ia mudando enquanto eles colocavam meus irmãos pra dormir… Por muito tempo, vivi numa redoma. Uma tia muito próxima pintava e sempre me levava para vê-la pintando, ou dando comida pra os patos. Toda essa nostalgia foi alimentada e reinventada em arte. Hoje em dia, cada parte dessas memórias se alinha e alimenta o lado mais bucólico das minhas pinturas. O apego e afago me fazem criar, é minha primeira forma de falar, de criar e recriar momentos.

Quando você de fato começou a fazer sua arte, quem você tinha como inspiração? Quanto dessa inspiração tinha a ver com o lugar em que você cresceu, no Recife, que é um grande polo cultural do Brasil?
Comecei de fato aos 13 anos. Eu não tinha acesso a internet então muita das minhas inspirações vieram da [enciclopédia] Barsa, lembro de procurar as palavras que eu pensava enquanto pintava e ir achando o acervo de imagens que compactuavam com meus pensamentos. Recife foi um misto de prisão e castelo. Eu sempre soube que tinha um mundo fora dali, mas ao mesmo tempo nunca separei ou retirei o meu amor pela minha terra. Eu pintava outros mundos, mas sempre com rostos conhecidos: contei as histórias dos meus amigos, dos meus vizinhos, misturei com meus sonhos e um pouco de ácido… Eu amo o lugar de onde eu vim, não pelos motivos culturais, mas pelo privilégio do ritmo. Eu não seria o mesmo se tivesse crescido em outro lugar.

“O outro lá ganhou a eleição, mas a arte pertence à oposição. São locais de debate, criação, caos, desordem, harmonia, turbilhão de ideias fluidas, sem gênero, sem nomes e assinaturas. Essa galera tá azeda, foram alimentados com tanto ódio que se tornaram um foie-gras de ignorância.”

De que maneira você procura representar a subjetividade negra no seu trabalho?
Eu não procuro algo que sou. O corpo negro é político, minha arte deriva de uma pessoa negra e essa narrativa é completa em si. Eu não sou uma caixa representativa do “artista negro”, eu sou um artista brasileiro que é negro. Me chateia absurdamente a falta de senso e a permanência dos arquétipos construtivistas quando em relação à arte contemporânea feita por afrodescendentes, e penso que isso continua a cegar curadores e críticos quando se fala da representação na arte. Meu trabalho é uma corporização negra, e a maneira como eu represento isso é existindo.

Como surgiu a série “Belas Feridas”, que você expôs em Nova York e Paris? Como foi a experiência de expôr internacionalmente?
A série se baseia na minha trajetória de vida e na perda recente de vários amigos queridos. Fala sobre amor, violência, genocídio, afeto, segurança, estabilidade e loucura. Dentro de cada tela eu morri e renasci; foi como ter finalmente conseguido dizer adeus aos meus amigos, às minhas irmãs. Uma reverência a toda a potência destruída por esse sistema. Essa foi minha terceira exposição internacional, a segunda neste ano. Tem sido maravilhoso e me dá um pequeno vislumbre do quanto atingi, mas também de tudo que está para acontecer.

1542398109894-IMG_9699
Imagem via Ghost Gallery/Divulgação

A matéria sobre seu trabalho que foi publicada na Folha recebeu muitos comentários conservadores sobre seus desenhos. O que você acha desse apego à arte clássica e figurativa?
Foi muito bacana estourar a bolha. Observei de longe, pois passei três dias sem saber o que estava acontecendo, até que uma amiga me ligou de madrugada aqui em Paris e me avisou para olhar o Twitter. O interessante é que a discussão não era sobre arte, era sobre o meu cabelo, minhas roupas e se eu era ou não o flanelinha que riscou o carro de alguém. Não tenho nada contra a arte clássica e figurativa, mas não é o meu barato, pelo menos não agora. Na matéria, os desenhos que abrem a chamada foram feitos em Atlanta num jantar com o cantor Raury, nem sequer foram expostos em Nova York e estão bem felizes em Luxemburgo. Dias depois recebi mensagens de adultos, pais, mães, pessoas trabalhadoras pedindo desculpas pelo que falaram, disseram que embarcaram no delírio. Mas é isso, overdose de fake news deixa a galera ansiosa, neurótica.

Como esse conservadorismo no campo artístico dialoga com o momento político no Brasil, pra você?
Arte não é lugar pra conservadorismo, assim como cama não é lugar pra sexo ruim. Seria uma vergonha sequer comparar crítico de arte com gente desocupada no Twitter, quem entende do assunto não está lá. Querem instaurar o conservadorismo como a nova onda, mas o fascismo tá fora de moda faz tempo, bicho. O outro lá já ganhou a eleição, mas a arte e os ambientes artísticos pertencem à oposição. São locais de debate, criação, caos, desordem, harmonia, turbilhão de ideias fluidas, sem gênero, sem nomes e assinaturas. Essa galera tá azeda, foram alimentados com tanto ódio que se tornaram um foie-gras de ignorância. É triste, mas esses 53 milhões sempre estiveram por aí; a gente fala com vários todos os dias, tratamos muito deles com respeito, carinho, estão em todos os lugares. Mas o ambiente artístico está muito bem, obrigado. Precisa de mais gente, mais criadoras, curadoras, galerias, museus, menos editais, menos burocracia e mais gente com boas intenções. Ainda assim, a galera que tem é maravilhosa, está viva, ativa. Tem [gente] de 10, de 19, de 23 e de 90 anos. Estão passando seus ensinamentos e vamos com certeza vencer essa balbúrdia.

Você relata ter sofrido de depressão muito jovem. Sua arte já chegou a funcionar como terapia ou expurgo desses sentimentos? Como é trabalhar isso?
A arte tem um fator muito espiritual na minha vida, às vezes até dói. A sensação de cavar até achar a mais pura verdade e depois sair puxando de dentro mesmo que rasgue tudo, muitas vezes foi assim enquanto eu pintava. É raro eu permitir que me assistam pintando, apenas minha família e amigos mais próximos. Em Nova York, me tranquei no estúdio por dias; tomava banho, dormia, e ia pintar de novo. Fiquei sem comer mas não fiquei sem pintar. Posso dizer com convicção que é meu motor, é minha linguagem mais natural e alimenta meu dia-a-dia. Sinto a presença de Deus muito nítida na criação artística, é onde eu oro e restauro minha fé. Se isso não é terapia, eu não sei o que é.

“Não existiria Picasso nem Matisse sem a presença negra na arte.”

Você acha que as artes visuais podem ter uma importância na construção da identidade negra no Brasil?
Não existiria arte no Brasil sem a presença negra, não existiria arte no mundo sem a presença negra. Não existiria Picasso, não existiria Matisse. Temos passados por processos mais explanatórios, mas até pouco tempo atrás, a relação arte e pessoa negra no Brasil foi abusiva. Outras pessoas contando nossas histórias, se apropriando da nossa fruta sem querer o caroço. Essa importância sempre existiu porque a arte como fator cultural define a imagética e pensamentos coletivo de um povo, de uma nação, de uma tribo. O que necessita é a troca de palanque, ou um rodízio. Já deu de pintura de escravo, quero ver rostos pretos sentados no trono.

1542398187581-UNADJUSTEDNONRAW_thumb_a8b
Foto via Ghost Gallery/Divulgação

Como jovem negro, você acha que enfrentou (ou enfrenta ainda) resistência para entrar no mercado de arte tradicional?
Não me atinge pois não é meu público nem me enche os olhos. O que entendo como tradição quando falamos de arte são bienais e feiras comandadas por pessoas que entendem a arte e o artista, que buscam o novo e tomam riscos. Vejamos o stand do Kerry James Marshall na Frieze desse ano, Simone Leigh arrasando na Art Basel. O problema não é o assunto, é a fala sem propriedade. Acabei de fazer 21 anos e nenhuma dessas possibilidades soa impossível. Não é arrogância: é saber da própria capacidade — o mercado está aí, cheio de gente boa e cheia de gente ruim também. Sobrenomes não assustam, preços também não. No fim, muito do jogo é sobre contatos, vez ou outra talento e um pouco de sorte.

Sou um jovem, essa pergunta não existiria se eu fosse branco, o que já diz muito sobre o pensamento natural. Eu não faço parte da arte tradicional, eu não sou tradicional, nem quero ser. Eu sou do Totó, meu pirraia, já peguei bigu, já fui pra muito baile e já levei tapa de policial. Resistência eu aprendi a comer no café da manhã com cuscuz.

Esse ano, no MASP e Pinacoteca, rolaram exposições como ‘Histórias da Sexualidade’, ‘Histórias Afro-Atlânticas’, ‘Mulheres Radicais’, etc. Pra você, qual a importância de que temas contemporâneos como esse estejam presentes nesses espaços?
Aí é que tá. Bom, eu sou, negro, queer, apoiador das causas feministas, mas nenhuma dessas causas são contemporâneas. Eu fico é feliz e tenho que adicionar que demorou foi muito para o MASP, Pinacoteca, CCSP e quem mais faltar na roda se posicionarem. É fresh e lindo permitir que pessoas e pensamentos borbulhem, se animem. Tá todo mundo gritando nas ruas, tá faltando uma zoada braba dentro das galerias e museus. Tem que fazer arte pra quem empina o nariz e balança a cabeça, mas também vamos alimentar quem chora olhando para a tela (e quem sequer tem o dinheiro da condução para chegar lá).

Leia mais no Noisey, o canal de música da VICE.
Siga o Noisey no Facebook e Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.