Sabe aquele disco foda que pouca gente conhece? O Noisey decidiu fazer um garimpo e mostrar a história de algumas dessas raridades na coluna Disquecidos. Nesta edição destrinchamos o clássico Quem é Quem , do João Donato, que apesar dos créditos recebidos hoje, foi um disco pouco celebrado em seu lançamento.
O Quem é Quem, primeiro disco cantado do acreano João Donato, foi lançado há 45 anos, e hoje é uma figurinha repetida na lista dos álbuns mais representativos da música brasileira. O João de cabeça baixa, de braços cruzados com seu chapeuzinho pescador, em vinil, custa uma pequena fortuna nos sebos e lojas do ramos e alguns clássicos como “Cala Boca Menino”, “Terremoto”, “Chorou, Chorou” e a inconfundível “A Rã” nasceram ali. Graças à insistência de Marcos Valle e Agostinho dos Santos esta obra tem voz.
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Aos 84 anos, um dos pianistas mais fodas do Brasil tem o palco como aliado e recentemente lançou, ao lado do filho e também pianista Donatinho, o incrível Sintetizamor. Ele mantém os olhos atentos ao presente e ao futuro, bateu um papo com a gente sobre passado, mais precisamente sobre o seu disco de 1973.
Donato explica nas linhas abaixo que seu disco mais conhecido foi lançado, literalmente, por ele mesmo em frente a igreja da Glória, no Rio de Janeiro por um descaso de sua gravadora da época. “Levei uma caixa de discos de vinil e joguei tudo pro alto enquanto a TV Globo filmava. Eu lancei à minha moda”. Fala sobre a música assumida por Dorival Caymmi, o terremoto de verdade que inspirou a canção, entre outras histórias.
Noisey: Quem é Quem é seu 9º disco, né?
João Donato: Não sei, eu não contei direito.
Em quanto tempo ele foi feito?
Acho que foram uns dois meses.
Qual foi o processo para este disco? O que você ouvia na época, o que te inspirava a compor?
Eu ia gravar um disco instrumental e o Augustinho dos Santos me falou: “Você já gravou discos instrumentais, agora falta letra nas suas músicas”. Aí eu achei que realmente tava na hora de colocar letra nas músicas, então pedi aos parceiros e saiu o Quem é Quem, meu primeiro disco com letras.
Como foi o processo de cantar pela primeira vez?
Foi complicado, porque eu não sabia como fazer aquilo. Só se faz fazendo, então eu gravava, ficava ouvindo pra ver o que eu achava de mim mesmo. Foi um esforço, uma bela experiência.
No encarte fala da importância do Augustinho dos Santos e do Marcos Valle para esse disco.
A gente ensaiava na casa do Marcos e ele ajudou a produzir o disco.
Como ele virou assistente de produção na obra?
Porque eu liguei pra ele e disse: “Tô aqui no Brasil, acho que vou voltar pra América”. E ele me falou: “Não, vamos passar na Odeon [gravadora] primeiro, eu conheço o pessoal lá, gravo lá. Vamos ver se você grava um disco lá”. Aí o Milton Miranda, que era o diretor lá, concordou em gravar, mas disse que ele tinha que ajudar a produzir, e ele topou.
Como era sua vida na época deste disco? Como era o Brasil daquela época e o que mudou?
Eu não lembro bem. Lembro que estava recém chegado da América e tava me adaptando ao Brasil outra vez e ia gravar meu primeiro disco com letra e tudo isso mudava. Tive que arranjar vários parceiros para várias composições.Eeu não tinha experiência de gravar discos com letra. Eu dei a mesma música pra vários parceiros fazerem letra e ficou aquela salada de fruta, todo mundo fazendo letra pra mesma música. Meu irmão, Dorival Caymmi, Marcos Valle, Paulo Cesar Pinheiro.
E como você escolheu essas letras que chegaram?
Depois eu e o Marcos selecionamos. O próprio Caymmi, no caso de “Até Quem Sabe”, tirou a letra dele. Ele falou: “A letra desse menino aqui é a melhor” e ficou a letra do meu irmão. Ele ficou todo feliz por ter sido eleito com a melhor letra da música.
Eleito pelo Caymmi.
Exato. Pelo Caymmi que é um campeão.
No encarte está escrito que você foi convidado para o concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall e não foi. Por que você não foi a este show?
Porque me convidaram muito em cima da hora. Disseram “embarque no aeroporto, pegue o primeiro avião e venha para Nova York que tem o concerto do Carnegie Hall”. E eu disse “não é assim. Eu trabalho aqui em Los Angeles, tenho uma filha recém nascida, eu tenho o meu trabalho com orquestra e não posso ir assim da noite pro dia, deveria ter sido avisado antes”. Aí eu não fui.
Olhando para as orquestrações temos Maestro Gaya, Ian Guest, Laércio de Freitas, Dory Caymmi, e claro, você. Como você conseguiu montar esse time de camisas 10 nos arranjos e orquestrações?
O Marcos Valle teve muito a ver com esse disco. Ele ajudou a selecionar os arranjadores, a compor o conjunto que ia me acompanhar. Era ele, Hélio Delmiro, Bebeto, que era do Tamba Trio, Lula Nascimento na bateria, enfim. Eu tava recém chegado, não conhecia os músicos e ele arranjou tudo e dividimos as coisas com a ajuda do Marcos Valle.
Qual era o relacionamento com a Odeon na época? Eles te deram tudo o que você pediu e precisava?
Eu gravei. Eles deram tudo para a gravação sair, mas depois que ela saiu eles não deram importância ao disco. Disseram que não iam lançar, que não iam fazer festa, que não iam convidar a imprensa, não iam fazer um lançamento especial. Aí eu fui na igreja da Glória [no Rio de Janeiro], levei uma caixa de discos de vinil e joguei tudo pro alto enquanto a TV Globo filmava. Eu lancei à minha moda.
Você literalmente lançou o disco.
Literalmente. E o disco depois deste tempo todo foi considerado um dos 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos e foi um disco que nem lançamento oficial teve.
Vamos falar sobre as faixas? O disco abre com “Chorou, Chorou”, que tem um groove absurdamente classudo. Como surgiu essa parceria com o Paulo César Pinheiro?
Foi nessa leva de vários letristas. Ele foi sugerido pelo Marcos, que disse que ele era muito bom e o convidou. João Carlos Pádua também, a Nana Caymmi tava presente, deu palpites e foram surgindo os parceiros.
Ela tem alguma coisa a ver com ˜Meu Limão Meu Limoeiro˜? Ela me lembra instintivamente a outra música.
Agora que você falou acho que tem, mas eu não pensava assim. Tem uma certa semelhança. Tã tã tã rã, tã tã tã e a outra. Meu limão, meu limoeiro. Há uma lembrança.
A segunda música, também em parceria com o Paulo César Pinheiro, “Terremoto”, como nasceu? Vocês deram tema a ele, se encontraram ou deixou a melodia e falou fique à vontade?
A primeira parte já tava feita. “Hei, mamãe com pé na terra/Hei, meu pai, com o pé no chão”. Um dia eu tava tocando piano lá em Los Angeles e alguns minutos depois de eu começar o refrão da música várias vezes houve um grande terremoto, caiu hospital, segundo andar em cima do primeiro, foi um desastre, e eu coloquei o nome de “Terremoto”. O Paulo César conservou a primeira parte e fez a segunda. “Por onde andei sem direção, eu te verei com o pé no chão. Meu mestre rei foi Salomão que me ensinou com o pé no chão”. Aí volta o meu refrão.
Em que ano foi o terremoto?
Em 71, 72, porque eu voltei em 1972. [Nota do editor: Foi em 1971 mesmo em San Fernando]
Qual foi a inspiração para “Amazonas”? É uma dessas músicas instrumentais que ficam na cabeça. É uma homenagem ao Estado?
É uma homenagem à região, porque o Acre tá ali.
Com quantos anos você saiu do Acre?
Com 11. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, minha família foi transferida para o Rio. Meu pai era militar da Polícia Militar do Acre e a região passou de território a Estado e houve uma mudança e quem quisesse se mudar para outro Estado eles davam transporte. Nós nos mudamos para o Rio, porque meu pai já conhecia e tinha gostado. Ele foi o primeiro piloto acreano a tirar a licença no Rio. Quando apareceu a oportunidade ele decidiu se mudar, porque era a capital do Brasil e tinha melhores condições.
Hoje você se sente mais acreano, carioca ou americano? Você mora onde?
Eu moro muito no Rio. Sou acreoca. Americano eu não me sinto, me sinto acreoca. Agora mesmo eu vim de um tacacá e uma maniçoba em um restaurante aqui em São Paulo.
E como foi?
Tava fechado, porque não abre às sextas, mas quando a chef veio atender um entregador e nos viu, ela abriu, nos atendeu e ela foi muito simpática. O lugar se chama Casa Tucupi, que é um caldo que serve de base pro tacacá.
Como surgiu a letra de “Amazonas”?
Meu irmão colocou.
Mas no disco ainda é uma faixa instrumental.
Não tinha, né? Ele colocou só depois.
˜Fim de Sonho” é a única parceria no álbum com o poeta João Carlos Pádua. Como surgiu esse som? É uma canção triste, né? A melodia deixou ela assim, ou ela ganhou essa característica com a letra?
A melodia é simples e singela, nostálgica. Ela já induz a uma letra suave, terna.
Por que “A Rã” acabou se tornando uma das músicas mais requisitadas do seu repertório? Há uma identificação muito grande desta música na sua obra. Como você olha pra isso?
Eu não sei. Ela tem uma sedução, e música precisa ter sedução, tem que te deixar contente, satisfeito, feliz em ouvir. Música não pode deixar você triste. Ela é feita pra cadenciar a alma, o espírito da pessoa, deixar ela mais feliz, mais saudável.
Qual foi a piração para o processo de composição desse som?
Ela é feita com quatro notas só. Ré, Mi, Fá e Sol. Elas se repetem uma atrás da outra, se misturam e acabam ficando uma coisa meio hipnótica, cativante. Eu particularmente sou fã dela. Quando me perguntam qual das minhas músicas eu gosto mais, “A Rã” é uma delas.
O que significa “ Ahiê” ? Ela deixa uma coisa aberta.
Ela tinha essa frase “Ahiê lá lá lá lá lá ri didi”. Ele só fez completar e deixou o “Ahiê” como se fosse o que você quiser dizer.
E o que você sente que é o “Ahiê”? O que significava pra você?
Pra mim é a mesma coisa. É a nostalgia da música, da melodia.
E você termina ela dando um salve pros amigos. Pro Celso do Bar, que tá com pouca cerveja, pro Beto, pro Capitão, pro Carlinhos e por último pro Grapete. Quem são esses caras?
Eram moradores de Paracambi, uma cidade a 100 quilômetros do Rio de Janeiro aonde eu ia.
Tem inclusive uma foto no encarte, né?
Tem foto. Eu ia pra lá passar os finais de semana.
Era um refúgio seu?
Lá moravam alguns amigos meus. O Celso, o Silvio, o Capitão. Carlinhos.
O lado B abre com “Cala Boca Menino”, uma música do Dorival Caymmi. É a canção com mais raízes africanas do disco. Como ela surgiu?
Na verdade ela deve ser um folclore baiano. Eu tinha gravado uns compassos só de ritmos e ela se chamava “Vietnã e Coca-Cola”, mas a Nana (Caymmi) tava no estúdio e começou a cantar em cima da melodia. “Cala boca menino”. Aí perguntei. “Que música é essa?” e ela disse que era do pai dela. Eu liguei pro Dorival e perguntei se a música era dele. Ele me respondeu. “Minha não é, mas eu assumo”. Ou seja, é um folclore da Bahia. É como “Emoriô”, que é minha, mas é um folclore da Bahia.
Nos vocais tem Novelli e Naná, é o Naná Vasconcelos?
É. Ele fez percussão também. O Novelli fez contrabaixo.
Ela tem um ritmo que lembra muito o afrobeat. Qual foi a inspiração pra essa música? Você consegue fazer essa associação de semelhança hoje?
Eu não prestei atenção na semelhança do quê com o quê, eu simplesmente gravei um loop, uma cadência. Eu não observei se era parecido ou deixava de ser, mas acaba que é, né? São coisas que se assemelham mesmo você não tendo noção daquilo.
“Nãna das Águas’’ é uma homenagem a Nana Caymmi?
Eu acho que é uma homenagem sim. É uma letra do Geraldo Carneiro e ele é amigo dela. Ela ia nos estúdios em todas as gravações. Mas é como se fosse uma entidade religiosa do candomblé.
Ela se repete em “Me Deixa”, uma faixa instrumental, que tem uma onda bossa, mas umas experimentações musicais de fundo. Como rolou esse som?
Eu não usei a letra do Geraldo, porque achei ela um pouco pesada. Eu resolvi usar o nome original de antes dele colocar a letra de “Me Deixa”. A música dizia “Me deixa sangrando nos bares, nos becos, nas ruas desertas”. Eu falei. “Não, não vou cantar esse negócio não”. Era o meu primeiro disco cantando, eu não podia chegar cantando isso. Aí eu resolvi não usar a letra, tanto que hoje em dia eu chamo ela de “Rio Branco”, que é minha cidade natal, que é o nome original.
“Mentiras” tem a Nana Caymmi e toda a sua potência vocal. Como rolou essa canção?
Foi fluindo. Ela estava ali presente nas gravações e acabou cantando uma música e naturalmente cantou uma balada.
O disco acaba com “Cadê Jodel?”, uma música triste em homenagem à sua filha, A letra fala diretamente sobre sua distância. Como foi essa separação?
O Marcos Valle que escreveu. Eu contei pra ele a história, que a Jodel foi embora com a mãe aos seis anos. É uma letra descritiva.
É uma letra muito forte, né? Essa é a faixa mais triste.
Eu cantei pra Elis Regina e ela começou a chorar. Eu a conheci com o Paulo César Pinheiro e fui na casa dela apresentar umas músicas, quando cheguei em “Cadê Jodel?” ela começou a chorar.
É uma letra, apesar de triste, muito bonita.
É, coisa do Marcos Valle.
Ele é bom.
É bom.
Qual era o processo de criação do disco? Tem algumas faixas muito lisérgicas. Tinha alguma droga, alguma bebida específica?
Não, as músicas estavam feitas. As letras foram feitas por vários autores. O processo da gravação cada um usava o que gostava de usar. Tem um pouco de tudo no estúdio. Um pouco de uísque, um pouco de cannabis e por aí vai.
Qual a importância dele para a sua trajetória?
É o primeiro a ter voz, ter letras. Tem uma sonoridade bastante expressiva, que chama atenção.
Talvez seja isso que faça ele ainda ser tão atual 45 anos depois de seu lançamento?
Ele tem a sonoridade como se tivesse sido gravado hoje, apesar de toda a tecnologia que surgiu. Esse disco é muito bom, é um dos mais representativos da minha obra.
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