Numa entrevista de 2011 para a BBC, perguntavam ao falecido crítico de arte John Berger, num tom intrigado mas ligeiramente incrédulo, sobre seu marxismo e se isso “ainda era útil hoje”.
“Se você olhar para o que está acontecendo no mundo e nas decisões tomadas todo dia”, respondeu Berger, “todas essas decisões tomadas em nome de uma prioridade, de sempre aumentar o lucro… nesses momentos, Marx não parece tão obsoleto, né?”.
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Uma figura cultural reverenciada, Berger era o tipo de marxista que o sistema até tolerava. Sim, ele tinha ideias bem radicais, mas tudo bem porque ele estava escrevendo livros e fazendo programas de televisão. Ele não conseguiria penetrar no coração do establishment; suas ideias continuariam marginais.
Entrevistas como essa eram comuns. Em 2002, o historiador marxista Eric Hobsbawm ouviu várias vezes a mesma pergunta de um suado Jeremy Paxman: se seu compromisso com o comunismo não era mal orientado. Mantendo a dignidade em meio à descrença de Paxman, Hobsbawn disse: “Meu compromisso com os pobres, com os oprimidos”.
Por décadas, a condescendência espumante era a posição padrão para lidar com o marxismo. Mas com o aniversário de 200 anos do nascimento de Marx amanhã, essa posição está se tornando cada vez mais absurda.
Karl Marx nasceu 200 anos atrás, em 5 de maio de 1818, em Trier, uma cidadezinha da Renânia perto da fronteira com a França. Apesar de na época de sua morte, em 1883, muito de sua obra ainda não ser publicada, sua influência foi crescendo e crescendo, e interpretações do seu trabalho proliferaram até o ponto onde, hoje, quando falamos de marxismo (sem mencionar o socialismo e o comunismo), estamos falando de várias ideologias, sistemas e teorias.
Aqui não é o lugar para esses debates. É suficiente dizer que Marx (além de seu escritor parceiro, Friedrich Engels) continua sendo o crítico mais notável do capitalismo, que ele via isso como um sistema que degrada e explora trabalhadores, um sistema cujos problemas recorrentes (falta de moradia, desigualdade, uma economia que decola e despenca, plutocracia, poluição, instabilidade) são inevitáveis e se acumulam, e que esses problemas seriam a ruína do sistema, com as classes trabalhadoras se levantando e se libertando da tirania.
As análises e previsões de Marx eram revolucionárias. Elas mostravam que o mundo sem capitalismo era uma possibilidade e que os seres humanos nunca serão realmente livres até que esse mundo surja. Talvez por isso nenhum outro pensador desde seu nascimento inspirou tanta admiração, paixão, raiva, incredulidade e condescendência como Marx.
O establishment tende a pensar nos marxistas como perigosos ou absurdos, como revolucionários sinistros ou idealistas ingênuos. Depois do final da Guerra Fria e do surgimento da política de Terceira Via nos anos 1990, por um tempo pareceu que o marxismo estava morto, que o capitalismo tinha triunfado, que o fim da história estava aqui e que, como Thatcher disse, “não havia alternativa”.
Hoje as coisas parecem um pouco diferentes. O marxismo, que nunca desapareceu, está de volta com força. O capitalismo, que por um tempo foi visto como tipo uma lei natural, algo permanente e imutável, agora está sendo discutido e criticado até mesmo por seus defensores.
Nos EUA, por exemplo, ublicações liberais como o New York Times estão dando matérias dizendo que Marx estava certo. Um menino chamado Sceneable tem milhões de visualizações no YouTube com vídeos sobre comunismo; Chapo Trap House é um podcast de esquerda com uma caralhada de inscrições; e pesquisas mostram que a maioria dos norte-americanos com menos de 30 anos rejeitam o capitalismo.
Novos livros, peças e filmes estão sendo feitos sobre Marx, focando recentemente em sua vida como um cara jovem que curtia beber e conversar a noite inteira, antes de virar uma dor de cabeça para o capitalismo.
No mundo ocidental, a influência de Marx está começando a ser sentida de novo no mainstream político. Nos EUA, Bernie Sanders – não um marxista, mas que também não odeia Marx – ganhou milhões de votos como um socialista democrático descarado, e isso num país cuja fé no capitalismo neoliberal e antipatia oficial pelo pensamento de esquerda sempre rende guerras aqui e ali.
No Reino Unido, o Partido Trabalhista está renovado sob outro socialista, Jeremy Corbin. No começo de março, o Financial Times publicou uma entrevista com chanceler e camarada de longa data de Corbyn John McDonnell, sob a manchete “A Grã-Bretanha está pronta para um chanceler socialista?” Corbyn, McDonnel e outra aliada deles, Diane Abbott, passaram décadas nas margens do Partido Trabalhista liderado por Tony Blair e seus sucessores. Agora, apesar de continuarem cercados por descrença e hostilidade, eles estão no cerne do partido.
O desabamento do capitalismo, sua metamorfose em algo ainda mais grotesco, como previsto por Marx, é responsável por grande parte desse ressurgimento. Nos países que deram à luz ao capitalismo (Europa, América do Norte, Japão), os salários estão estagnados há décadas. O trabalho é cada vez mais precário. Moradia acessível é cada vez mais escassa. Enquanto isso, aqueles no topo ficam cada dia mais ricos, com a Oxfam descobrindo que, em 2017, 82% da riqueza gerada ia para o 1% mais rico da população global.
Se você vem sentindo que estão te passando a perna, bom, você tem o Marx, mostrando que você sempre cria mais valor para seu empregador do que seu empregador te paga. “O Capital”, ele escreve, “é trabalho morto, que, como um vampiro, só vive sugando trabalho vivo, e vive mais quanto mais trabalho suga… Se o trabalhador consome seu tempo disponível consigo mesmo, ele rouba o capitalista”.
Se você ficou deslumbrado pelos últimos tênis saídos da linha de produção, bom, Marx tem uma teoria sobre fetiche da mercadoria.
Se você sente que não está no controle da sua vida, que é só uma engrenagem numa máquina, que o trabalho que você faz de nenhuma maneira te representa e que você está cada vez mais sobrecarregado pela competição, bom, Max também tem uma teoria sobre alienação.
“A relevância de Marx hoje está principalmente na análise da concentração de riqueza nas mãos das classes donas de propriedades, que o conceito materialista da história toma como ponto de largada, e nas implicações culturais e políticas que tal concentração deixa evidente”, me disse Gregory Claeys, autor do livro recentemente publicado Marx and Marxism. “A plutocracia está evidente em toda parte, e seu controle sobre os meios de propaganda [imprensa, TV, internet], além da capacidade do dinheiro corporativo de contornar processos políticos democráticos, é igualmente óbvio.”
Claeys, que se descreve como socialista, não marxista, identifica três fatores que levaram ao interesse renovado em alternativas de esquerda ao capitalismo neoliberal e para qual Marx “é claramente relevante”.
Esses fatores são “a persistência da crise financeira de 2008, com o alerta de que a instabilidade crônica ainda escora o capitalismo no geral; o crescimento chocante da desigualdade que marcou a última década, e avisos sobre perspectivas de desemprego em massa no final do século 21 enquanto a automação continua”.
Nesse último ponto, a ideia de um comunismo de luxo totalmente automatizado segue, com o ponto crucial de que a automação leva a uma decisão política – podemos acabar numa distopia hipercapitalista, onde as máquinas fazem a maior parte do trabalho mas o dinheiro e o tempo continuam nas mãos de poucos, ou podemos ver o dinheiro poupado pela automação colocado nas mãos das pessoas cujos trabalhos foram tirados pelas máquinas, assim nos libertando.
O marxismo, sugere o intelectual Terry Eagleton, “é sobre lazer, não trabalho. É um projeto que deveria ser apoiado por todos que não gostam de ter que trabalhar. Ele diz que as atividades mais preciosas são aquelas feitas por vontade, e a arte é, nesse sentido, o paradigma da atividade autenticamente humana”.
Vijay Prashad, escritor, jornalista e diretor do Tricontinental Institute for Social Research, me disse que, como marxista, ele entende que “o liberalismo e outras formas de pensamento político não são capazes de gerenciar a contradição entre seus ideais superiores e as políticas que produzem (ou seja, políticas que consolidam e propagam a propriedade privada sobre necessidades humanas)”.
O capitalismo, acredita Prashad, não pode resolver seus próprios problemas. “Temos um problema agudo de desemprego pelo planeta. Três bilhões de pessoas vão dormir com fome. Não há solução para nenhuma dessas coisas dentro do reino do pensamento e da política capitalista. Empreendedorismo? Isso não vai mudar a fome do mundo. Nem vouchers. Qual a alternativa disponível?”
Prashad oferece uma defesa robusta de uma crítica sempre feita contra Marx, a de que seu trabalho foi usado para fundar sociedades que se tornaram similares a ditaduras, que a morte de milhões de pessoas na União Soviética, China e outros lugares é uma prova de que o marxismo leva inevitavelmente à morte e destruição.
“O século 20 está cheio de experimentos para um futuro pós-capitalismo”, diz Prashad. “A maioria desses experimentos aconteceram em sociedades de plebe, onde o novo estado teve que lutar para juntar recursos para o socialismo. Esses experimentos nos ensinaram lições, nos mostraram um vislumbre de outro mundo – e mostraram as limitações de construir o socialismo sem recursos e sem uma capacidade genuinamente forte de ser democrático na ação.”
No final, Marx e seu trabalho representam essa ideia de uma alternativa ao que temos, à ideia de que outro mundo é possível. Apesar de já ter sido tratado assim, o marxismo não é uma religião. Nem tudo tem que ser aplicado. Mas um dos motivos para Marx ser tão temido e caluniado é por seu desvio do pensamento ortodoxo, por causa da ameaça à ordem estabelecida que seu trabalho carrega.
Há também, particularmente em seu trabalho inicial, uma grande defesa da humanidade. “Quanto menos você come, bebe e lê livros; quanto menos você vai ao teatro, ao baile, à discussão pública; quanto menos você pensa, ama, teoriza, canta, pinta, se exercita”, ele escreve em Manuscritos Econômicos e Filosóficos, “quanto mais você poupa – quanto maior se torna seu tesouro que nem traças nem a poeira podem devorar… Menos você é, mais você tem; quanto menos você expressa sua própria vida, maior é sua vida alienada – maior o estoque do seu ser alienado”.
Hoje, não há nem a garantia de que trocar a discussão pública e o baile pelo trabalho leva ao acúmulo de algum tesouro antimofo. Hoje, você pode ter que trabalhar só para sobreviver. Em Marx, pelo menos, temos alguém que entende isso.
Matéria originalmente publicada na VICE UK.