Em 23 de dezembro de 2012 Franklin Prado da Silva, 23 anos na ocasião, foi sequestrado por dois homens após atendê-los em sua casa. Segundo vizinhos, vestia uma camiseta preta com listras azuis, um short também azul, além de chinelos cinza quando foi levado. Foi a última vez em que o rapaz, que contava com uma passagem na polícia por tráfico de drogas, foi visto com vida. A história que dá indícios do motivo do seu desaparecimento foi registrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) , mais especificamente em uma ata de um julgamento realizado pela facção. A VICE teve acesso exclusivo aos documentos, que constam de inquérito da Polícia Civil de Guarulhos, na Grande São Paulo, que investiga a organização criminosa na Região dos Pimentas. Entre os registros, há documentos que esclarecem o funcionamento dos “Tribunais do Crime”.
A investigação da Civil, na qual também constam informações sobre o “Caderno Negro” — o assim chamado Livro da Morte —, conta com cerca de 2.600 páginas, distribuídas em 12 volumes. O trampo de inteligência policial rola há um ano, mais ou menos.
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A Polícia Civil encontrou mais de uma ata de julgamentos feitos pela facção, além dos registros das sentenças computados no Livro da Morte.
Cinco dias depois do desaparecimento de Franklin, um Boletim de Ocorrência dando a falta do rapaz foi registrado no sistema eletrônico da Polícia Civil por uma tia. Até a conclusão desta reportagem Franklin não havia sido localizado.
No mesmo dia em que o desaparecimento de Franklin foi registrado, policiais militares do 44º Batalhão de Guarulhos foram informados pelo serviço reservado da corporação que duas pessoas estariam sendo mantidas como reféns em uma casa no bairro Vila Any. Foram ao local. Em frente ao imóvel indicado pelos informantes estava Edivanildo Nestor da Silva, 35, que recepcionou e autorizou os policiais a entrarem em sua casa.
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Dentro da residência (constituída de cozinha, um banheiro, uma sala com varanda, além de um cômodo sem móveis, alugada por R$ 300), um caderno lilás, com adornos femininos, foi localizado. Em uma das páginas conferidas pela PM na ocasião constava a sentença de morte de Franklin, assinada pelo próprio. A polícia acabava de localizar uma ata do Tribunal do Crime.
O caso deixou de ser “isolado” em 2 de março deste ano, após a equipe de investigações do 4º DP de Guarulhos localizar os cadernos de contabilidade do PCC na residência de Leandro Maurício Gomes, 33, apontado como tesoureiro da facção na cidade.
Além dos documentos de “auditoria” das finanças do “Partido”, a Polícia Civil encontrou mais de uma ata de julgamentos feitos pela facção e registros das sentenças computadas no Livro da Morte. Entre os casos, está o de Franklin. “Poucos policiais tiveram acesso ao tipo de documento e informações [apresentados à VICE], contribuindo para entender melhor ainda como funciona a organização criminosa, a partir da visão dela mesma e não por uma visão de fora”, afirmou o delegado Fernando Santiago, responsável pelo caso.
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Entre os dados apreendidos pela polícia, estão informações sobre membros do Partido como nome, vulgo, dados da família, padrinhos que indicaram o batismo dos criminosos, históricos criminais, locais onde já cumpriram pena, endereços antigos e atuais, eventuais descumprimentos de regras, além de seus números de matrículas criminais. Um tesouro para quem investiga o mundo crime.
Um crime oficial e um vacilo mortal
Segundo registrado pela facção, Franklin e mais dois comparsas teriam assaltado e “esculachado” uma “cunhada” — como são chamadas as mulheres de membros do PCC — no final de novembro de 2012.
Ela trafegava com seu carro na Marginal Tietê e foi seguida até a Avenida Jacu Pêssego, onde os criminosos a abordaram. Franklin e outro suspeito, identificado somente como “Pivete”, entraram no carro dela. Foram acompanhados por um “cavalo”, o responsável por dirigir o veículo do bando e dar cobertura à ação criminosa. Este último cara foi identificado como “Neguinho”.
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Franklin e Pivete, ainda segundo registrado pelo PCC, teriam afirmado por escrito que acharam a vítima “gostosa”. O primeiro mano teria passado a mão nela — nos seios e região íntima.
Durante o abuso, a mulher os alertou que era uma cunhada do Partido. “Ele [suspeito] entende quando uma mulher fala isso. Ele ‘tocou o foda-se’ e passou a mão na mulher, além de dar uma coronhada nela também, o que acabou quebrando dois dentes da moça e, depois disso, jogou a mulher do carro em movimento. Ou seja, ele pediu para morrer”, disse o delegado do 4º DP.
Depois do esculacho da dupla, a vítima se queixou ao marido, que de sua parte ordenou que o trio fosse localizado e pego. “Isso [localizar] não é difícil. Pois bandido sabe quem é bandido, eles têm contato entre si. Aí sequestraram os moleques e os submeteram a um julgamento”, acrescentou Santiago. A polícia informou que o marido da vítima é um “disciplina”, uma pessoa responsável por controlar as ações do PCC na região de São Miguel.
Segundo registrado na ata do PCC sobre o caso, Franklin, que passou a mão na vítima, foi condenado à morte. O outro, Pivete, que estava na fita, mas somente testemunhou o abuso, sem interferir, foi condenado a ter os braços e/ou pernas quebrados, “levando um pau” e “tendo oportunidade de vida”. O terceiro mano, Neguinho, que conduzia o veículo em que os comparsas foram levados para realizar o assalto, foi “somente” espancado, pois não participou diretamente do roubo e do desrespeito à cunhada.
Na ata do julgamento, os suspeitos assinam as próprias sentenças.
As atas do PCC contam com um campo para dados dos acusados, para o relatório sobre o caso julgado e, por fim, a sentença.
Na ata do julgamento, os suspeitos assinam as próprias sentenças, endossando as decisões dos julgadores. Há uma similaridade simbólica, por parte da organização criminosa, com os julgamentos legítimos feitos pelo judiciário.
O “Livro de Batismo”, que também teve um exemplar aprendido pela polícia, contribui para que a facção tenha pleno controle sobre os dados de membros que eventualmente se envolvam com o que é considerado como crime dentro do crime. O livro mencionado controla o número de criminosos, eventuais falhas e os padrinhos que os indicaram para ingressar no Partido. Ocorrendo falhas consideradas graves pela facção, os nomes são também registrados no Caderno Negro.
Quando a decisão é pela morte, usam o termo ‘viagem’ ou algum destino turístico.
Segundo investigação do 4º DP, após o trio Franklin, Pivete e Neguinho assaltar e zoar a cunhada do PCC, o companheiro da vítima acionou Edivanildo Nestor da Silva (aquele que morava onde a ata do julgamento foi encontrada em 2012). Edivanildo é apontado como o disciplina da Vila Any de Guarulhos.
De acordo com a investigação, Edivanildo teria acionado 11 “soldados”, para que encontrassem os manos que esculacharam a cunhada. Cerca de um mês depois, dois membros da facção localizaram Franklin e o Pivete, que foram conduzidos à casa do disciplina da Vila Any.
No local, ambos foram informados sobre o que eram acusados (de roubar, ferir e molestar uma mulher de membro do Partido). Antes dos dois serem “caçados”, a vítima os reconheceu, após fotos de criminosos serem mostradas a ela — da mesma forma que a polícia costuma fazer nas delegacias.
A dupla foi conduzida ao endereço do júri em 23 de dezembro de 2012. No dia seguinte, véspera de Natal, foi dado o veredito. Cada voto foi também devidamente registrado por escrito.
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O delegado Fernando Santiago explicou que os julgadores, que compõem o corpo de jurados do tribunal do crime, geralmente são pessoas da alta cúpula do Partido. Eles informam suas decisões sobre as sentenças por telefone, pois em muitos casos estão presos. Quando a decisão é pela morte, usam o termo “viagem” ou algum destino turístico. Cada “corpo de jurados” é geralmente constituído de quatro a dez criminosos.
A equipe de investigações do 4º DP já identificou e prendeu seis julgadores que participaram do júri de Franklin. A participação deles foi confirmada por causa dos registros em ata feitos pela facção e o Livro de Batismo, que está nas mãos da polícia, ajudou a decifrar a identidade dos criminosos.
Não cabem recursos nos tribunais do crime.
De acordo com o que foi apurado pela VICE, três tipos de infração são julgados pelo PCC.
São eles:
1- Crimes sexuais;
2- Dívidas;
3- Constatação do “acusado” pertencer a uma facção rival.
Os tipos de punição também são três:
1- Morte;
2- Quebra de membros;
3- Espancamento.
Somente casos de dívida, ou se o acusado somente presenciou algum abuso realizado por comparsa, são punidos com agressões, ou ainda, com a imposição de prazo para ressarcimentos monetários.
Em caso de dívidas financeiras, antes de o devedor ir parar no Caderno Negro, lhe é oferecida uma chance, sendo o nome do mano colocado no “Livro do Prazo” (dando um tempo para que a dívida seja paga). Não honrando isso, os dados são transferidos para o temido caderno das condenações.
Diferentemente da Justiça do Estado, não cabem recursos nos tribunais do crime. A mãe de Franklin relatou que um amigo do filho tentou interceder pelo réu. Um carro foi oferecido em troca da vida do amigo, mas os julgadores negaram a oferta.
Foi encontrada uma carta ordenando a morte do inimigo.
A Polícia Militar evitou que um suposto membro do Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC) fosse executado por três homens do PCC. Ambas as organizações disputam pontos de venda de drogas e o comando interno de unidades prisionais. A PM abordou os carrascos na tarde do dia 20 de setembro de 2016, na Rodovia Ary Jorge Zeitune, no bairro Água Azul, em Guarulhos.
Segundo a 1ª Cia. do 31º Batalhão da PM da cidade, policiais faziam ronda pela região e avistaram um Peugeot preto trafegando em baixa velocidade perto de um matagal. Isso chamou a atenção dos agentes da lei.
O veículo suspeito foi abordado. Dentro dele havia os três acusados, além da vítima, que estava com a cabeça ensanguentada. O homem ferido acrescentou aos PMs que seria executado. “A vítima relatou que estava sequestrada há três dias, sendo agredida constantemente, e que o motivo seria o fato de pertencer a uma facção criminosa rival [ao PCC]”, diz trecho de nota da corporação.
O trio de suspeitos teria afirmado aos PMs que iria “dar uma surra” na vítima. Porém, após os policiais militares vistoriarem o veículo, foi encontrada uma carta, ordenando a morte do “inimigo”. “Havia também no carro fios usados em instalações elétricas, que a vítima afirmou que seriam [usados] para executá-la mediante asfixia”, ainda informou a PM.
Justiça paralela é mais rápida.
O jurista Luiz Flávio Gomes, presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do Portal Atualidades do Direito, afirmou que a justiça paralela exercida pelo crime organizado é mais rápida e “eficaz” do que a oferecida oficialmente ao cidadão. “O fato de as pessoas procurarem o crime para solucionar questões legais mostra a falência absoluta do sistema legal.”
Flávio disse ainda que o Estado não oferece funções básicas para a população, entre elas a segurança. Por causa disso, organizações criminosas ganham força e também conquistam mais “clientes” aos serviços paralelos oferecidos. “O PCC tende a crescer cada vez mais, pois a demanda por justiça é infinita e o Estado está falido. Isso é uma anomalia completa, significando um eventual fim futuro do Estado. A população está cada vez mais insegura e insatisfeita.”
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Pelo fato de os tribunais do crime serem rápidos na análise e sentenciamento dos réus, parentes de vítimas, ou elas próprias, optam pelos julgamentos oferecidos pela bandidagem. “A Justiça do Estado, é fato, ainda tem os Direitos Humanos como norte. Se não fosse assim, um policial com tendências [violentas] poderia sacar a arma e executar um suspeito na frente de todo mundo. Já o criminoso não tem regulação, não tem compromisso com regras, com leis e, menos ainda, com Direitos Humanos”, afirmou o delegado Fernando Santiago.
A sociedade que sabe da falta de respeito às regras, por parte do crime, e sobre a celeridade das sentenças paralelas, geralmente mortais, ou cumpridas com muita violência (quebra de membros), quando se vê revoltada com algo que aconteceu com um conhecido ou com a própria pessoa, prefere o crime à polícia. “Porque [por causa da revolta] a pessoa quer ver o cara [acusado] morto, quebrado, torturado e não preso”, acrescentou Santiago.
Veja só como eles são organizados.
O delegado Fernando Santiago pega dois volumes do inquérito e mostra à reportagem. Em um deles consta a relação de mortes confirmadas e, no outro, prováveis vítimas de assassinato. No primeiro caderno, há pelo menos dez óbitos “certos”.
O raciocínio feito pela equipe de investigação do 4º DP para confirmar as mortes são as atas de julgamento redigidas por membros do PCC, além de Boletins de Ocorrência em que o sentenciado consta como desaparecido. “Aqui a gente tem uma ata [mostra o papel à VICE]. Veja só como eles são organizados”, afirma o delegado mostrando o nome, idade, profissão, estado civil e número de filhos do réu.
O caso em questão é de um pastor evangélico acusado de pedofilia. A ata do julgamento fala sobre a denúncia de familiares, que indicaram o homem como abusador de uma menina de oito anos. O “réu” confirma no documento a prática do crime e, da mesma forma que na Justiça de verdade, assina a confissão do abuso — autorizando que membros da facção votem sobre o seu destino.
Na ata feita pelo crime, é afirmado que o acusado tinha a confiança da família da vítima, podendo levar a criança à escola. O documento, redigido em parte pelo réu, também narra que a garota foi obrigada a vê-lo se masturbando dentro do carro, quando o pastor a levava para a escola. O cara foi pego após tentar abusar da menina enquanto ela tomava banho em casa. “A criança gritou e, por isso, familiares flagraram o crime — e o PCC foi acionado”, disse Santiago.
O réu, segundo registrado pela facção, foi indagado sobre o que faria com um abusador caso descobrisse que uma filha sua fosse vítima de crime sexual. O pastor, de acordo com o documento, afirmou que desejaria a morte do molestador. Este foi o suposto destino dele também.
Os carrascos, responsáveis pela execução das penas, ficam junto do acusado durante os tribunais e um “escrevente” faz à mão a primeira versão da ata de julgamento, que posteriormente é digitalizada. Após isso, os julgadores declaram suas decisões por telefone e, após isso, os posicionamentos também são oficializados por escrito. Ao final de cada ata, os acusados costumam escrever “tudo isso está escrito por minha própria vontade”, autorizando as decisões dos julgadores.
O que tem que ser provado é o justiçamento.
O inquérito do 4º DP não é de homicídios, é sobre organização criminosa. A equipe de investigações da delegacia trabalha com a tese do justiçamento, não sendo necessário a constatação da morte dos sentenciados, ou a localização dos cadáveres deles, por exemplo. “Nós investigamos uma organização criminosa que trabalha fazendo justiça com as próprias mãos. Por isso, não é necessário provar se houve de fato a morte ou não. O que tem que ser provado é o justiçamento. Ou seja, preciso provar que uma organização criminosa exerce um poder paralelo, que exerce as funções de um ‘judiciário paralelo’. O inquérito do 4º DP é sobre isso. Embora, eventualmente, seja necessário investigar alguma morte”, acrescentou o delegado. Nenhum corpo havia sido localizado até a publicação desta reportagem.
Os casos de homicídio “confirmados” até o momento têm como base o nome do réu em atas do PCC, além de existirem Boletins de Ocorrência comunicando o desaparecimento dessas pessoas. Há outro caderno nas mãos da Polícia Civil em que constam os nomes de outros dez réus do Tribunal do Crime. No entanto, nenhum B.O. de desaparecimento havia sido computado em delegacias, fazendo com que o delegado Santiago e sua equipe descartem, por hora, a morte dos sentenciados.
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O 4º DP continua a investigação para identificar mais criminosos envolvidos em todos os julgamentos em que há registro em ata e também para localizar possíveis cadáveres de condenados pelo Tribunal do Crime.
Aguardem os próximos capítulos.