“Esse tempo, felizmente, já passou” — juiz desautoriza prisão de manifestantes pela PM

Antes mesmo do início da quinta manifestação “Fora Temer”, que aconteceu neste domingo (4) e terminou com a PM bombardeando violentamente a dispersão do ato, pessoas foram presas no Centro Cultural São Paulo (CCSP), ao lado do Metrô Vergueiro. Por volta das 15h, uma hora e meia antes do início da marcha, alguns jovens foram surpreendidos por uma operação policial. “Quando a gente viu tinha polícia saindo dos arbustos atrás da gente, na frente da gente, de todos os lados e apontando a arma, gritando bastante”, relata a estudante Sofia Beçak, de 19 anos. Ela e mais 25 pessoas foram detidas no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).

Sofia Beçak e mais 25 pessoas foram detidas no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) no domingo (4). Foto: André Lucas/CHOC Documental

“Foram cerca de oito viaturas da tática e policiais com arma letal para abordar 20 pessoas. A gente se sentiu como se estivéssemos numa boca de fumo fazendo trilhões de crimes. Não era uma atitude cabível. Isso sem contar nas ofensas que ouvimos”, comenta Mateo Augusto, de 22 anos. “Do nada, apareceu a força tática, parou a gente, enquadrou a gente e começou a nos chamar de vagabundo, de terrorista”, acrescenta o jornalista Gariel Kunha, de 18 anos, que relata o momento em que a polícia supostamente teria plantado um flagrante. “Durante o enquadro, a gente estava sendo revistado e um dos policiais começou a me revistar. Aí ele virou pra mim e falou: ‘Você eu conheço’. Ele deu um soco na minha costela e na sequência eu me virei. Ele pegou uma barra de ferro azul entortada e falou: ‘Essa é sua’. Eu falei: ‘Cara, ela não é minha’. E ele continuou dizendo repetidamente que ela era minha, tanto que no boletim consta como se a barra fosse minha. Ele ficou dizendo que isso estava na minha mochila e eu nem tinha uma mochila pra começo de conversa.”

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Segundo relato do advogado Thiago Rocchetti, defensor da detida mais velha do grupo, de 38 anos e que não quis ter sua identidade revelada, a presença de sua cliente no Centro Cultural São Paulo aconteceu enquanto ela estava em busca de segurança. “A família pediu para que ela fosse com algum grupo com medo de ela estar sozinha na manifestação.” Ela ainda afirma que sua cliente temia a possível violência de alguns manifestantes. “Ela estava com medo de ir sozinha, inclusive chegou a entregar o cartão do banco pra mãe com medo de ser assaltada. [Ela] mora em Itapecerica da Serra e quis estar próxima a alguém por medo de assalto, de corre-corre.”

Em coletiva de imprensa, o coronel Dimitrios Fyskatoris, chefe do policiamento na cidade de São Paulo, que diz ter acompanhado em tempo real a abordagem, afirmou que ela “foi feita em via pública, as pessoas foram entrevistadas e declararam que iam praticar atos de desordem na cidade. Eram parte de várias células que atuavam na cidade”.

A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, por sua vez, publicou em nota um comunicado em que informava que o grupo estava “carregando máscaras, pedras, um celular roubado e diversos objetos utilizados em atos de vandalismo”. Nas imagens, uma garrafa de vinagre, itens de primeiros socorros, canetão, fones de ouvido, maço de cigarro, chaveiro do Pateta e um estilingue podem ser vistos.


Objetos encontrados com os manifestantes. Foto: Secretaria de Segurança Pública/Divulgação

A prisão do grupo ainda teria outros desdobramentos. Com oito menores de idade detidos e um relato de agressão a uma dessas adolescentes, o grupo chegou ao DEIC por volta das 17h do domingo (4). Os familiares e advogados prontamente foram ao local, mas, segundo relatos, só entraram para falar com os detidos no início da madrugada graças à influência política do ex-senador Eduardo Suplicy.

Do lado de dentro do DEIC, apreensão e medo. Fora, falta de informação. “Não deixaram um defensor público entrar”, conta Rosana Kunha, mãe de Gabriel. Os pais foram chamados um a um para ver seus filhos. Ela narra a cena: “Eu não consegui falar com ele. Entrei no DEIC, abracei e apenas olhei pra ele”. Pelo que explicaram, os pais eram proibidos de se comunicar com seus filhos, apenas atestar suas presenças. Visivelmente abatida, a mãe do jovem desabafa: “Eu não dormi até agora e eu quase não comi nada desde ontem”. A comunicação era, no mínimo, complicada.


Vigília pelos detidos em frente ao Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães, na Barra Funda. Foto: André Lucas/CHOC Documental

De acordo com Marcelo Feller, um dos advogados do grupo de detidos, o delegado do DEIC fez o que eles chamam de “depoimento informal” com os jovens detidos. “Ele falou com as pessoas sem apresentar os termos a elas e sem a presença de um advogado, isso é considerado ilegal.”

Uma das primeiras a chegar à delegacia na zona norte, a educadora Clarissa Reche, que não conseguiu falar com quem estava detido, narra a abordagem policial: “O policial foi terrível, começou a fazer umas piadas de tortura. Ele foi super machista, super misógino. O papel de tela nos computadores era mulher pelada”. Contou também outros lances da sua conversa com um dos agentes da lei: “Ele falou assim: ‘Eu vi um filme que era sobre um terrorista que tinha colocado cinco bombas atômicas pela cidade. Aí a polícia torturou ele para saber onde que estavam as bombas. Você acha isso certo?’ Eu fiquei quieta. E ele continuou: ‘Você acha certo a gente torturar os seus amigos pra saber o que eles queriam fazer’. Eu falei pra ele que com certeza meus amigos não tinham uma bomba atômica. E ele disse que eles não iriam sair de dentro do DEIC do mesmo jeito que entraram”, além disso, seguindo os preceitos teóricos do italiano Cesare Lombroso — aquele que definia se uma pessoa era assassina ou não por sua aparência física — disse que a educadora tinha cara de black bloc.


Jovens são soltos após determinação judicial. Foto: André Lucas/CHOC Documental

Na rampa do Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães, na Barra Funda, um grupo de familiares dos detidos, estudantes secundaristas e jornalistas esperavam por informações mais conclusivas já na segunda-feira (5). Às 16h, quatro viaturas da Força Tática e mais quatro motos da Rocam policiavam o lugar em companhia de mais 20 policiais militares, que faziam um cordão de isolamento em frente ao prédio. Passados 15 minutos, chegou ao local para exibir os detidos. Muitos cliques, gritos de ordem e rapidamente o veículo saiu do campo de visão.

Mais longas horas de espera. Até que, quase 19h, os jovens começaram a aparecer no saguão do Fórum Criminal. Choros e abraços eram sonorizados pelo já clássico “não tem arrego”. Vitorioso, Marcelo Feller, um dos advogados de defesa, esbravejou na imprensa: “O dia em que manifestações pacíficas forem criminalizadas, não estaremos mais discutindo que partido está no poder, estaremos discutindo se teremos algum representante democrático no poder”.


Marcelo Feller, advogado de defesa dos detidos: “O poder judiciário entendeu que essa prisão foi ilegal”. Foto: André Lucas/CHOC Documental

Feller também declarou a sentença das 26 pessoas detidas na tarde de domingo: “O poder judiciário entendeu que essa prisão foi ilegal e relaxou a prisão ao entender que não houve cometimento de crime nenhum por parte das pessoas que estavam aqui detidas hoje”.

Em sua sentença, o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo entendeu que a Polícia Militar não reuniu provas contra os manifestantes. “A prova do auto de prisão em flagrante é de que todos os detidos estavam pacificamente reunidos para participar de uma manifestação pública, nenhum objeto de porte proibido foi apreendido, sendo, assim, inviável sequer cogitar do crime de corrupção de menores.”

O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira “prisão para averiguação” sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou.” — juiz Rodrigo Tellini

Tellini ainda informou que “a prisão dos indiciados decorreu de um fortuito encontro com policiais militares que realizavam patrulhamento ostensivo preventivo e não de uma séria e prévia apuração”. Segundo o juiz: “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira “prisão para averiguação” sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou.”

Visivelmente satisfeito, o advogado ainda fez uma consultoria express aos familiares. “As famílias podem entrar [com um processo contra o Estado] e acho que devem. A gente deve nesse momento fincar o pé e dizer que abusos e absurdos não serão nunca admitidos.”


Gabriel, enfim, encontra sua mãe: “A gente não vai desistir.” Foto: André Lucas/CHOC Documental

Gabriel Kunha, agora em liberdade, desabafou: “A gente passou fome, a gente passou frio, a gente dormiu no chão, mas a luta tem disso, a gente não arrega. O Estado bate na nossa cara, a gente levanta ela de novo pra dizer: ‘Cara, eu não vou calar a boca’. Hoje eu estou aqui feliz pra caralho que a gente não vai desistir.”

Um novo ato em São Paulo está agendado para a próxima quarta, feriado de 7 de setembro, às 14h, na Praça da Sé.

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