Este artigo foi originalmente publicado na edição de Outubro da VICE Magazine.
É fácil esquecermo-nos que as lendas são também pessoas. Acordam com mau hálito e remela, deixam cair o iPhone e partem o ecrã, esquecem-se de comprar natas no supermercado. Não quero com isto dizer que não pensamos nas lendas como humanos. Só não as imaginamos a enfrentarem as indignidades de se ser humano. Pensamos nelas como a publicidade pensava nas mulheres nos anos 50: nunca suam, nunca cagam.
Ainda assim, quando liguei à lenda no início de Setembro para uma entrevista, Kim Gordon, guitarrista, vocalista e co-fundadora dos Sonic Youth – uma das bandas mais icónicas e influentes dos últimos 30 anos (ou mais) – tinha em mãos um problema bastante mundano. O telefone do seu quarto de hotel estava avariado.
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Brrrr. Brrrr. Brrrr. O zumbido mudo do telemóvel da sua agente fez-me cócegas no ouvido e distraiu-me do frio que estava a sentir na barriga. Entrevistas por telefone é como estar num encontro às cegas de longa distância. Um clique, inspirei, sorri e preparei-me para falar directamente com uma das Mulheres Com Mais Pinta À Face da Terra. E, de repente, a linha ficou muda. A agente de Kim ligou-me outra vez. “Bem, o telefone dela está avariado”, disse-me. “A manutenção do hotel está a chegar. Volto a ligar-te daqui a uns 20 minutos?”.
Reconfortou-me saber que Gordon não tinha super poderes para evitar as chatices diárias que complicam as nossas vidas, no entanto, ainda havia um oceano entre nós. Literalmente. Tínhamos agendado uma entrevista por telefone pouco ideal, porque a artista de 63 anos estava na Austrália, para uma série de concertos, mas também palestras sobre “rock, rebelião e resistência”. Pode parecer um pouco simplista, mas esse é, também, um resumo bastante exacto da sua carreira.
Depois de, em 1981, fundar os Sonic Youth, com Thurston Moore, Gordon e a banda lançaram o primeiro disco de estúdio, Confusion Is Sex , dois anos mais tarde. Os Sonic Youth editaram 16 álbuns, antes de acabarem em 2011, mas este primeiro álbum é considerado, ainda hoje, um modelo para muitas bandas de rock alternativo (com Gordon rotulada em tempos, por exemplo, como a “madrinha do grunge”), talvez porque o grupo sempre preferiu o experimentalismo, os sons pouco convencionais e os instrumentos personalizados, a abraçar o sucesso mainstream.
Gordon abriu caminho para si própria, escrevendo para o Artforum, fazendo a curadoria de exposições e exibindo o seu próprio trabalho artístico, estreando-se como produtora, a pedido de Courtney Love, no aclamado primeiro disco de Hole, Pretty on the Inside, trabalhando numa colecção de moda, ou fazendo participações especiais em todo o tipo de coisas, desde um filme de Gus Van Sant, até a um episódio de Girls. Pelo caminho, tornou-se um ícone feminista, elogiada pelo seu impacto, mesmo que me tenha dito: “Às vezes [acho que a música] é só entretenimento, percebes? Não tem impacto num plano mais abrangente”.
Gordon resistiu aos estereótipos de ser a “miúda da banda” e, em 2015, subverteu a velha pergunta que tantas vezes ouviu e escreveu um livro de memórias – A Miúda da Banda. Dissolvidos os Sonic Youth e o seu casamento de décadas com Moore, Gordon faz agora música com Bill Nace como Body/Head. E, recentemente, fez outra estreia, ao lançar um single, “Murdered Out”, simplesmente como Kim Gordon.
Mas, por mais intimidada que uma pessoa se sinta pelo seu currículo, Gordon não quer que ninguém se sinta assim. Ela sua. Caga. Gosta de “Work”, de Rihanna. Ela não quer, realmente, destacar-se de uma forma endeusada e encolhe os ombros à mera menção de que é uma lenda.
“Não acho que sou influente, um ícone, ou blá blá blá”, disse-me. Faz uma pausa e continua abruptamente: “Ao fim e ao cabo, sinto-me mais confiante quando estou simplesmente a trabalhar. A ter ideias. É assim que me sinto mais confortável. Ou a actuar numa situação de grupo”, ri-se. “Sinto-me conectada comigo mesma, mas, na realidade não sei explicar o que é isso. Quer dizer, posso dizer-te quem é que a minha astróloga acha que eu sou!”.
Gordon nasceu em Rochester, Nova Iorque, mas quando tinha cinco anos, o seu pai aceitou um cargo na UCLA. A família meteu as malas no carro e mudou-se para Los Angeles. Uma família de académicos, em vez de artistas. Moravam num bairro de classe média normal, longe dos locais cheios de celebridades, o que significa que Gordon sonhava acordada. Tanto como uma qualquer criança do Kansas. Sonhava com as vidas cheias de glamour de músicos como Buffalo Springfield e Neil Young.
O pai, um sociólogo que identificou e baptizou pela primeira vez arquétipos de Liceu, como os jocks, freaks, preps e geeks, era o estereótipo perfeito do professor com a cabeça nas nuvens – uma vez terá metido Gordon na banheira ainda meio vestida – e a sua mãe, costureira e dona de casa, não gostava de nonsense e de demonstrar sentimentos, tal como muitas pessoas que passaram pela Grande Depressão. A influência dos pais, além da provocação impiedosa do irmão mais velho, fez com que Gordon reprimisse a sua rebeldia interior. Transformou-se numa adolescente que ouvia jazz e Joni Mitchell, fumava erva, pintava e tinha problemas em arranjar namorado. Talvez como qualquer um de nós.
“Acho que agora posso divertir-me mais. Já não ligo tanto. É muito libertador. Sinto que tudo o que fiz, de certa forma, trouxe-me até aqui” – Kim Gordon
“Às vezes acho que, a um certo nível, sabemos a pessoa que vamos ser na vida e, se prestarmos atenção, podemos identificar essa informação”, escreve Kim no seu livro. Para ela, esse processo foi fácil. Mesmo detestando o cliché, garante que, desde criança, sabia que seria uma artista. Acabou o Liceu aos 17, depois saltitou entre o Santa Monica College e a Universidade de York, em Toronto. Começou uma banda com amigos em jeito de projecto e percebeu que gostava de se apresentar em frente a um público. Depois, voltou para LA, frequentou o Otis Art Institute, até se mudar para Nova Iorque, onde conheceu Moore, fundou os Sonic Youth e se transformou numa lenda.
Recentemente, LA chamou-a e decidiu voltar às raízes. “Acho que sempre carreguei comigo um pouco de LA e da estética de LA”, conta-me. “Uma coisa que gosto em Los Angeles é de conduzir pela cidade e ver o contraste entre as casas. Cada uma pode ter uma estética completamente diferente. Por outro lado, a cidade pode ser assustadoramente existencial, porque não tens aquele pulso que sentes em Nova Iorque. Mesmo quando não estás a fazer nada em Nova Iorque, sentes-te como se estivesses, porque há muita actividade à tua volta. Em LA, tens, de certa forma, de criar a tua própria energia”.
Gordon nunca precisou de muito estímulo externo para criar, apesar de parecer ter sido isso, pelo menos em parte, que encontrou na sua cidade natal. Certo é que nunca foi buscar inspiração a fontes convencionais. “Não é que coisas convencionais não me atraiam, mas o que me sinto mais confortável em expressar, geralmente, é algo que não é uma versão muito direitinha, muito mainstream disso”, acrescenta, como se não fosse algo que a sua legião de fãs não soubesse já. “Tenho gostos pouco convencionais. E quero o que me atrai”.
O seu novo single, “Murdered Out” é uma música meio funk, inspirada nos lowriders, em que a sua voz é processada sobre uma bateria desgastada. A canção foi buscar inspiração à cultura dos carros de LA, numa ode aos tons escuros e à estética do preto matte que ela diz ser “a expressão definitiva” de “purgar a alma”.
Ri-se quando lhe pergunto como é que ela desenvolveu receptores tão incomuns. “Quando ando por aí, quando estou em digressão, ou quando sou exposta a muita música, seja num táxi, numa loja, ou restaurante, há sempre essa música que ninguém está mesmo a ouvir e que é, de certa maneira, ruído”, explica. Música noise “é quase como começar do zero. Quando estou a tocar, [há] algo na electricidade que acho que me acalma. Sinto-me cercada, como num banho de som, ou algo do género”.
Vai ser interessante ver como Los Angeles, com o seu céu azul aberto e entranhas negras, vai afectar e inspirar a arte que Gordon faz. “Murdered Out” mostra que ainda está a experimentar e LA parece dar-lhe a liberdade para isso mesmo.
“Gosto que não haja uma sensação de ambição sempre a bater à porta. Gosto da ideia de que te podes perder por aqui. As coisas não parecem estar num aquário. Talvez possam desenvolver-se mais excentricamente, ou algo assim”, analisa. “Julgo que, até certo ponto, agora posso divertir-me mais. Já não ligo tanto. É muito libertador. Sinto que tudo o que fiz, de certa forma, trouxe-me até aqui. E parece que, basicamente, tudo correu bem”. A filha de Gordon, Coco, uma pintora que acaba de se formar na Escola de Arte de Chicago, também se mudou recentemente para LA.
Gordon também gostava de fazer a transição e focar-se nas artes plásticas, mas é difícil. Muitas pessoas continuam a atrai-la para a música. Há uma razão para isso. “Depois de 30 anos a tocar numa banda, parece meio idiota dizer ‘não sou música’. Mas, em grande parte da minha vida, nunca me vi como uma”, escreve em A Miúda da Banda . Ainda assim, talvez seja exactamente isso que ela é: música. A miúda da banda.
“Passei grande parte da minha vida a evitar rótulos”, diz-me. “É que não quero realmente pensar em quem sou”.