KL Jay não gosta muito do estúdio: “Fazer música é assim: quando você vê, já passaram quatro horas! Não tenho paciência”. De fato, ao longo dos últimos anos, o DJ e produtor do maior grupo do rap brasileiro, os Racionais, ficou mais focado em comandar pick-ups Brasil afora do que em criar batidas, seja para projetos solo ou para outros MCs. Este mês, contudo, ele retorna com produções originais em Na Batida Vol. 2, o segundo disco solo dele, que chega 17 anos depois do Vol. 3 (2001), lançado entre os dois maiores álbuns dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno (1997) e Nada Como Um Dia Após o Outro Dia (2002). De lá para cá, ele ainda produziu uma mixtape, Rotação 33 – Fita Mixada, gravada ao vivo em um take, em 2006, e que ganhou até um documentário registrando todo o processo.
O Vol. 2, também chamado No Quarto Sozinho, chega para o público em uma época de hiato dos Racionais, na qual os integrantes aproveitam o período para desenvolver suas carreiras solo. Mano Brown segue apresentando o show de Boogie Naipe, Edi Rock acaba de soltar o primeiro single de um novo álbum e Ice Blue já há algum tempo promete um disco focado no trap em parceria com Helião (do RZO). Em 2018, o quarteto tem apenas um compromisso junto: um show na casa paulistana Credicard Hall, no dia 24 de novembro.
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No Quarto Sozinho já vem sendo produzido há cerca de cinco anos e tem a mesma dinâmica do álbum antecessor: KL Jay convidando diversos MCs — e eventualmente até se aventurando no microfone — para rimar em bases desenvolvidas por ele. Entre os convidados estão Edi Rock, Rael, Rincon Sapiência, MC Guimê, Kamau e Lay, além do DJ Will, filho do DJ dos Racionais. A sonoridade, em geral, permeia e atualiza o hip hop dos anos 1990, com samples de Gil Scott-Heron, Donald Byrd e Curtis Mayfield, inserções de gravações jornalísticas e até uma experiência inédita de KL Jay no house.
KL Jay me recebeu em um estúdio no centro de São Paulo, em uma tarde de março, quando o Vol. 2 estava previsto para ser lançado. Ele tocou algumas músicas do disco Anti (2016), da Rihanna, para mostrar como queria que No Quarto Sozinho soasse, e contou como um erro na hora de descarregar as faixas fez com que ele praticamente recriasse o álbum inteiro. Também comentou a influência dos filhos na hora de descobrir novas músicas, o filme Pantera Negra, a ameaça do agora presidente eleito Jair Bolsonaro, o vegetarianismo, a ascensão da figura do beatmaker no rap, o estado atual do hip hop no Brasil e até revelou os DJs/produtores favoritos dele. Leia a íntegra da entrevista abaixo e ouça No Quarto Sozinho no player.
No próximo dia 29 de novembro, vai rolar uma audição do disco na cobertura da Galeria do Rock, em parceria com a ASICS Tiger. As vagas para participar do evento são limitadíssimas, então corre aqui para confirmar presença.
Noisey: Você lembra do processo de criação e gravação do primeiro Na Batida ?
KL Jay: Fumei maconha, fiz umas músicas louco lá. Foi bom. É um disco bom, um disco que marcou e muita gente gosta dele.
Tinha uma cacetada de participações interessantes…
É, eu estava mais novo. Tava naquela coisa de produtor. Ainda não tinha me descoberto 100% como DJ. Sabe quando você para pra falar “eu sou isso aqui”? Tava na viagem da produção.
Já tinha rolado o Sobrevivendo naquela época…
…Que não fui eu quem fez, fomos nós quatro.
Isso. É um disco antes de vocês terem MPC e tudo mais, né?
Sim. O Sobrevivendo a gente fez no estúdio. Levamos as ideias e fizemos no estúdio. O Nada Como Um Dia… já foi nesse esquema de fazer as pré-produções em casa e levar pro estúdio, descarregar, mixar e masterizar. Mas eu estava na viagem do produtor. Ego, né, mano? Embora seja um bom disco. Eu estava tipo: “Ah, tenho que mostrar que eu sou produtor também”, e tal. É legal poder falar isso depois de 15 anos (risos).
Você estava descobrindo esse lado, de certa forma.
Estava. Eu tenho um certo talento para produzir, mas o que eu coloco na frente é o DJ. Só que, com o talento que tenho, fiz essas músicas aí. Também chamei outros caras, porque é legal chamar outras pessoas, para o disco não ficar com uma cara só.
Você lembra como foram os bastidores da produção do Na Batida Vol. 3 , quanto demorou e tudo mais?
O Vol. 3 foi mais rápido. Demorou uns seis meses o processo inteiro, sabe? Porque eu ia todo dia, e já de manhã, então saía. Tinha agenda com os caras lá. Chegava de manhã e só saía 22h, 23h, à noite. Então, foi muito mais rápido. Eu também já tinha música pronta.
E em termos de equipamento, como era?
Os caras tinham tudo. Eu tinha a MPC.
Mas você levava os discos para samplear…
Não, não, levava só a MPC. Já descarregava lá, botava na mesa, o pessoal vinha e colocava voz… Devia ter filmado, né? Mosquei.
Tipo o Rotação 33 , que foi filmado.
Foi, ali é a mixtape. Queria mostrar que não tinha edição na sonoridade. O que foi editado ali foram só as imagens, tanto é que, no vídeo, tem partes que mostra como foi feito mesmo, cru mesmo.
É, ao vivaço. Você deve ter ensaiado pra cacete.
(Risos) Sim, sim, ensaiei pra cacete.
No documentário do Rotação , o Parteum fala de uma outra mixtape sua, dos anos 1990. Qual é a história dela?
Era fita cassete, de quando eu tocava lá na Soweto, na João Moura, anos 1990. Eu e o outro DJ, o Fresh, a gente gravava fita em casa pra vender no baile. Gravava 15 fitas caseiras e saía vendendo. Era meia hora cada um. Lembro que eu fazia a parte de R&B e, ele, de rap. A gente fazia uma fita matriz, mixada em casa, e reproduzia. Fazia a capa na mão — “Soweto, Fresh, KL Jay” — e vendia (risos). Isso é começo dos anos 1990, sei lá. 1995, 1996.
Isso era uma coisa comum aqui no Brasil, nessa época?
A gente fazia, já era uma mixtape. Eles lá (no exterior) faziam muito, mas nós não tínhamos experiência profissional, nem dinheiro para fazer várias cópias, e em CD. A gente só gravava as músicas do baile, as que mais pegavam na pista, e vendia, mano. Os caras compravam. Era legal.
Apesar dessas mixtapes e do disco, você nunca foi um cara muito “de estúdio”. Por quê?
Não mesmo, cara. Eu venho aqui no estúdio e durmo. Demora pra caralho. Fico no celular, querendo ir embora. Não tenho essa veia. Mas, por outro lado, eu preciso colaborar com o coletivo. Meu filho (O DJ Will) me deu uma bronca esses dias: “Ô pai, você produz umas músicas loucas, faz umas músicas aí, tem um monte de gente querendo música sua, tem que colaborar para a cultura também”. Porque teve uma época que eu desencanei: “Ah, vou fazer música para ninguém. Vou tocar e já era”. Aí ele falou isso aí pra mim um dia e eu falei: “Tá bom, vamos lá fazer música”. Demanda muito tempo. Puta, é foda, eu tenho vários filhos (são sete filhos), cuido de um monte de coisa, cuido do dinheiro de outras pessoas, cuido do meu, tem carro, tem mãe, tem filho… Puta, mano, é problema pra caralho! E fazer música é assim: quando você para pra ver, já passou quatro horas! Passa muito rápido! Estúdio é a mesma coisa, você entra no estúdio, começa a mixar e quando vê já deu cinco horas ali. Eu não tenho paciência, tenho que ser sincero. Agora, quando você o resultado pronto, aí é: “Caralho, as músicas, né meu?” DJ é mais simples. Só que, voltando, eu tenho que dar essa colaboração para a cultura. Tenho um nome aí, né? 30 anos… Os moleques novos me pedem pra fazer música pra eles. Eu falo: “Pô, tem um monte de produtor fudido aí, mano! (risos)”. Mas eles falam que tem alguma coisa da sua veia, que você coloca ali na música.
Isso é ter identidade. Um beat do KL Jay é um beat do KL Jay, não tem jeito.
É legal isso aí. Pra você ver, mano, a responsa.
Como é a relação entre você e o Will, ele te “ajuda”?
Sou estimulado de várias maneiras. Meu filho me ajudou falando para eu voltar a fazer música. Só que ele também é um puta produtor fudido. Então, pedi uma música pra ele. Ele veio aqui, eu paguei, a gente mixou e tudo mais. Ele acompanhou tudo. Meu outro filho, mais novo, Kalfani, fez o beat da música que o Xis canta, foda também. Além disso, me ajudam mostrando música pra mim. Não só os DJs, os outros também. Minha filha trampa com moda, e ela ama hip hop. Ela manda vários sons pra mim, de R&B e tudo mais.
O que eles ouvem e te mandam?
Puta, e agora como eu vou lembrar os nomes? (Risos) Minha filha gosta muito do Tyler, the Creator, por exemplo. Ela adora o Pharrell, então acompanha todas as produções dele, até as coisas mais obscuras, que ninguém conhece. Ela me manda uns beats produzidos por ele que são muito foda. Ela vasculha muito o underground, e tem muita coisa boa. Tem aquela menina japonesa, Jhené Aiko, que canta: “I don’t need you, I don’t need you, but I want you”. Ela gosta da SZA também, mas essa é outra, aquela que canta com o Drake… Sou ruim de nome. The Internet, por exemplo, eu conheci pela minha filha. Aquela “Dontcha”, primeiro sucesso deles, conheci por ela. Os nomes vão vindo…
Esse lance de caçar música e ir atrás do que tocar mudou muito nos últimos anos. O HD da sua cabeça tem muita coisa, mas, hoje em dia, como que você se atualiza?
Toda hora tem música nova, e eu tento ficar com a antena aberta. Sou um cara que ouve FM. As pessoas acham que lá é só música pop, mas não, tem muita coisa super desconhecida que é sensacional. Aí você toca na balada e vem DJs e pesquisadores de música super conceituados chegar em mim e perguntar: “E esse som aí?”. “Então, ouvi na Rádio Eldorado”. Sou um grande ouvinte de rádio, escuto muito. Saio andando na rua e ouço a música que toca no carro, o que o camelô está tocando. Aí também tem o YouTube, os meus filhos. Quando eu vou no baile e o DJ toca algo, eu já boto no Shazam. No cinema, chega uma trilha sonora louca, já coloco pra ver. Então, vem de um monte de lugar. Não gosto de ficar na internet pesquisando música no SoundCloud, porque não é tudo que é bom. Uns tempos atrás, fui baixar uns traps. Porra, eu ouvi 30 traps. Trinta! E tirei dali dois ou três dos 30 que eu ouvi. O YouTube é foda, meu, você ouve uma coisa e aí já aparece mais trocentas ali do lado, aí você clica e vem mais trocentos… Só que, quando tem muita coisa, não é tudo bom. Óbvio, para o meu ouvido. Tudo é questão de ouvido. E tem muita coisa que eu não gosto. A grande maioria eu não gosto, não me identifico. É isso, minha antena tá ligada pra tudo: YouTube, rádio, meus filhos… Com a minha filha é assim: ela manda, tipo, seis músicas. Eu gosto de duas e falo: “Caralho, essas aqui são foda”. E toco no baile.
Tocar na noite dá muito mais tesão?
Ah, sim. Ali quando eu estou tocando, sou eu quem mando. Me sinto um rei, uma pantera.
Você nunca abriria a mão da rotina de tocar na noite para ficar produzindo?
Não pretendo. Queria montar uma sala de masterização, o Vander (amigo, técnico de estúdio) falou assim: “Continua tocando, cara, não faz isso não. Vai gastar um puta dinheiro, vai dar um puta trabalho, você vai ter que ficar no estúdio, é uma responsabilidade do caralho. Ainda tem que entregar a master boa pro artista. Deixa isso pra lá! Mas eu queria uma sala de masterização, fiquei muito empolgado com esse lance.
Falando desse novo disco, como foi esse processo de “redescobrir o estúdio”, vamos dizer assim.
Pesa o nome, né, cara? KL Jay está há 15 anos sem lançar um disco, e aí lança um disco meia boca? Mas deixa eu contar uma história… Em Nova York, mixando o Cores & Valores (2014), eu e o DJ Cia. Estamos lá, mixando, de madrugada, o cara lá trabalhando, e eu mostrei para ele uma música desse meu disco. E eu todo empolgado: “Ouve aí, ouve aí”. Ele pôs o fone, frio igual um pinguim do Polo Norte, ficou ouvindo. “Hm, a música tá muito boa, mas tá ‘fechada’, tá mono. Ouve essa outra aqui”. Me mostrou um som gringo, eu ouvi e, puta, a música tava aberta, foda. Aí eu entendi: descarreguei o disco aqui em mono! Em vez de descarregar estéreo, eu descarreguei mono. Mandei um Whatsapp pro Vander lá de Nova York: “Vander, descarreguei o disco todo em mono, cara, vou ter que descarregar inteiro de novo. Se você não quiser mais trabalhar comigo, fala, mas eu não vou lançar meu disco assim!” Já tava mixado! Era para esse disco ter saído ali antes do Cores & Valores. Aí o Cia, que estava comigo, falou assim: “A música é boa, mas ela tá mono, né Kleber?”. Desse jeito! Filho da puta! Mas, graças a ele, a gente refez. Você ouve agora e é outra sonoridade mesmo. A música fica aberta.
Então dá pra dizer que o Na Batida Vol. 2
foi feito mais ou menos simultâneo ao Cores & Valores?
Mais ou menos. Ele ia sair na mesma época. Só que, com todo esse lance de descarregar de novo, acabei refazendo umas músicas do zero. Algumas eu perdi até o arquivo. E nisso surgiram outras músicas, você vai mudando a mente, né?
Como você encara a figura do beatmaker? Antigamente, não tinha exatamente essa pessoa, né? O DJ era o cara, fora os MCs.
Para mim, a figura do beatmaker veio para acrescentar. Antes era só o DJ, aí veio o produtor. E tinha quem fazia as duas coisas, que era foda. O cara tinha o privilégio de fazer show, ir no baile e tocar as músicas que ele mesmo produziu. Ainda acho que o DJ é a grande figura, o fundador de tudo. O beatmaker só é um beatmaker porque ele ouviu algum DJ. E, no fim, ele acaba sendo um DJ também, na questão de pesquisa de sons.
É interessante, porque hoje em dia existem figuras como o Metro Boomin, do trap, que é famosíssimo e meio que “trabalha em casa”, um beatmaker, com o estúdio dele, fazendo som para o Drake, Kanye West, Migos.
Sim. E hoje em dia o DJ também cresceu muito. Hoje, um DJ é uma personalidade, uma celebridade. As pessoas vão num baile não por causa do baile, mas para ver um DJ específico tocar. É atração, mano, tá ligado? E acho que não vai cair desse patamar tão cedo.
O beatmaker é mais um elemento nisso tudo.
O beatmaker vem para somar. E se ele tiver uma noção mais de DJ, de ouvir música velha e música nova e tudo mais, ele tem muito mais possibilidade de se superar, melhorar, evoluir. O DJ Premier está fazendo música até hoje, e músicas sensacionais. Essa com o A$AP Ferg é fodida, cara. É muito musical, te pega.
Quais são seus sons favoritos de DJs/produtores?
Olha, eu sou um grande fã do J Dilla e do Premier. O Dilla era MC também. Mas, pra mim, são esses caras: Dilla, Premier, Madlib, Dr. Dre, Marley Marl e o 9th Wonder. Esses caras são fodas. Tem vários outros bons. Just Blaze é foda. De trap eu gosto do RL Grime. Pete Rock também é bom. Esses caras são tipo mestres.
Você citou uns caras das antigas e eu lembrei que, quando entrevistei o Mano Brown, tinha acabado a série The Get Down , da Netflix. Ele disse que, em vez de giz, você marcava os discos com fita. Procede?
Era durex. Colocava o durex bem na pontinha da agulha e já caía no ponto. Comecei a tocar só mixando uma música na outra mesmo, e isso aí já é outro nível, para performance, fazer scratch. Porque é muito rápido e aí você já cai no ponto, rapidinho.
Na música do Kamau, ele fala sobre você sua experiência e, de fato, você tem uma caminhada longa no hip hop. Como você acha que fazer música agora, mais velho, influencia na sonoridade atual?
Acho que tem mais do KL Jay nas músicas. Mais da essência, mais da alma. É mais livre. Mais mente aberta, mais eu mesmo. O Vol. 3 é um bom disco, as músicas são boas e até hoje toca, mas é um disco mais fechado. É mais egoísta. Esse é um álbum mais maduro, mais aberto.
Como assim “mais egoísta”?
Ah, não chamei outros produtores, tem mais ou menos a mesma batida, os mesmos timbres, entende? Se você for ouvir, muda um, dois ou três timbres no máximo, mas é mais ou menos tudo igual. Esse não, é totalmente diferente. Mas, assim, continua tendo a minha essência, de ser uma coisa mais agressiva, pesada, de pegada e tal. E agora está mais aberto.
E tocar na noite estando mais experiente no ofício?
Puta, agora que tá bom (risos). Agora que eu me sinto um jovem. Quando fiz 40 anos, voltei a ter 20 de novo, só que com a experiência dos 40. É muito mais técnico, improviso muito mais, tudo livre, sem medo de tocar as músicas, de falar as coisas. Eu tinha medo de errar. Hoje, não tenho mais. Eu nem via meus vídeos tocando. Hoje eu vejo e falo: “Pô, isso aqui ficou bom, isso ficou foda”. Meu leque de música ampliou muito mais. Hoje toco drum’n’bass, rock, house, funk carioca e não tenho medo de crítica, nem do que vão falar, porque estou tocando as músicas que eu gosto. Tenho muito mais segurança quando subo nos toca-discos. Não tem problema se o som tá ruim, se quebrou alguma coisa — se der alguma treta, eu resolvo. O Serato ajudou muito, porque o leque de músicas está fácil pra você localizar. Procuro ser atual e antigo. Falo e converso com as pessoas. Antes eu não fazia nada disso. Tocava o rap só, calado. Agora vem música instrumental, música brasileira, rock, tudo.
Um dia desses eu fui numa discotecagem sua e você tocou umas quatro músicas seguidas do mesmo disco: o Anti , da Rihanna. Outro dia você falou: “Hoje vai ser só Michael Jackson”. E não era festa especial nem nada. Tem que ser um DJ com nome para fazer isso, não é todo mundo.
Acho que tem que ter coragem, antes de ter o nome. E você faz o nome com a coragem. As pessoas falam assim: “Se eu fizer isso aí que você faz, eu vou ser vaiado, as pessoas vão me expulsar”. Pô, eu já fui vaiado, já quiseram me expulsar, já fui brutalizado por outros DJs. Teve uma festa que eu fui tocar no Rio de Janeiro, eu terminei com uma música do Jorge Ben — Jorge Ben, cara! — e o DJ falou assim: “Ah você não vai tocar isso aí”. Eu lembro que fiquei: “Caralho, é mesmo?”. Peguei e tirei. Hoje, ninguém vai falar isso pra mim. É uma coragem que você cria e aí ninguém vai tirar isso de você. É uma energia que você põe. Você entra se impondo, entende? Não preciso tocar do começo, toco música do meio pra frente, aí se quiser volta, toca só o refrão, volta de novo pro começo… Você vai ficando sem limites! Eu vejo como um jogo de futebol: você vai tentando as jogadas. Passa, chuta pro gol, não consegue, aí você dá um olé, um corte, o cara te derruba. Depois você acerta um cruzamento, faz um puta golaço. E tudo tem que ter um fio condutor para você pegar as pessoas, não é simplesmente arriscar qualquer coisa. Tem que conectar, manter um ritmo, prender as pessoas. Isso não é fácil.
Como está a rotina atualmente? Você está tocando umas três noites por semana?
Agora que voltei com o Sintonia, são duas ou três. Geralmente três, às vezes duas.
Já teve épocas mais corridas?
Já fiz sete noites em uma semana, de segunda a segunda. Mas, de rotina, já fiz quatro noites por semana. Quatro ou cinco. Mas prefiro menos, porque quero ver meus filhos, sair com meus amigos. Não precisa ser workaholic, senão você fica doente. Adoro tocar, gosto de festa, de ir no baile, ver os outros DJs, o baile funcionando. Gosto disso. Estar no ambiente de música é importante, faz parte do meu trabalho.
E acontece de você trocar o dia pela noite? Quando você consegue dormir?
Eu durmo pouco, é verdade, mas sempre que dá pra dormir eu tento. Nem que seja 20 minutos ou meia hora, no sofá. É uma delícia dormir no sofá, ajuda muito. Quando estou em casa, à tarde, procuro dormir, porque sei que a madrugada vai ser foda. Às vezes você vai pro lugar, toca, volta pro hotel e vai embora de manhã. Aí chega aqui em São Paulo meio-dia, toma banho e já vai tocar em outro lugar à tarde. Tem muito disso. Tem que ter um preparo, se você não dormir, esquece.
E como você encaixa o resto das suas atividades aí? O que você anda fazendo além de Racionais, set de DJ, estúdio…
Eu vou no cinema, saio com os amigos pra tomar cachaça, saio na noite pra fazer “aquilo”, saio com os filhos, dou umas voltas de carro. Gosto de andar de metrô, de ônibus, de carro. Aí vou ver minha mãe, compro disco. Nada muito complicado, não. Gosto de cinema, apesar de não ter muito tempo.
O que você assistiu recentemente de bom?
Vi ontem o Pantera Negra. Achei bem legal o roteiro, a trama. É um filme honesto. Chapei na mistura que eles fizeram da tradição africana — da dança, das roupas — com a tecnologia. Nós nunca fomos vistos assim. Os pretos nunca foram relacionados à tecnologia. E no filme tem esse lance de alta tecnologia, super avançada que eles têm lá no país deles, em Wakanda. É honesto. Não achei caricato, não fez chacota, não nos colocou numa posição inferior. Honesto e muito bom. Vou levar meus filhos pra ver. É um filme de super-herói, mas com uma puta mensagem por trás. E tem a inspiração dos Panteras Negras, né?
Esse lance da tecnologia é bem interessante mesmo.
Pô, eu lembro de ouvir o Barack Obama falando em uma entrevista, assim, na cara dura: “Sabe por que nós somos os primeiros do mundo? Porque nós investimos em educação e tecnologia”. Ele falou, assim, na cara dura, no microfone, pro mundo inteiro ouvir. Tecnologia é um bagulho foda.
Sobre o cenário do rap atual, tem muita coisa acontecendo. Gente como o Emicida e Karol Conka tão marcando presença na Globo, o discurso do empoderamento está forte, o rap está circulando mais nos festivais. Muita gente vem com o papo de que parte disso acaba desvirtuando o hip hop, porque aparecem um monte de aproveitadores e tudo mais. Como você encara isso tudo?
Eu acho que a música tem que ir pro mundo. Só que tenho uma visão política sobre a maioria dos canais de TV. Eu, KL Jay. O Brown também tem. Tenho a minha visão a respeito disso e não posso questionar, porque cada um tem a sua vida, tem as próprias contas pra pagar. Acho que a música tem que ir pro mundo, nós temos que estar nas rádios, na TV, nos grandes festivais e sermos grandes artistas. Eu tenho a minha posição em relação à Rede Globo e às filiais dela. Agora, cada um vai onde quiser, faz o que quiser, entendeu? E que assuma sua responsabilidade também depois. Faz parte do game, faz parte da revolução.
Você acha que o hip hop foi, de alguma maneira, desvirtuado ao longo dos anos?
Não. Antes de qualquer coisa, o hip hop é estilo de vida de arte. Não é movimento. Movimento é político, é revolucionário e blá blá blá. Aí você fica engessado, fica preso. Eu penso assim. O rap mais político foi necessário dos anos 1990, que teve toda aquela ideia, resgatou muita gente. Isso tudo é a minha visão, certo? Não estou aqui representando. Não sou representante, é a minha opinião. Depois, o mundo foi ficando mais democrático, com a chegada da internet, redes sociais, Instagram, Twitter, Facebook, YouTube, a facilidade foi abrindo o leque. Isso não significa que o rap político vai morrer ou tenha que morrer. Ele só está no meio do leque agora. Antes, era praticamente só ele. Hoje, se fala de amor, de dinheiro, putaria, tráfico, tudo! E tem que ser livre, tem que ser assim.
Eu falo isso até porque na música mais biográfica do seu disco, o Kamau rima algo sobre “chegar com o garfo e pegar a marmita pronta”. É algo que está presente nas letras.
Sim, mas tudo que cresce muito, perde o controle mesmo. E aí vem os aproveitadores, os picaretas. Mas esses não duram muito. Passa um tempo e some. Em todo lugar vai ter gente querendo se aproveitar. A humanidade é essa bagunça e, com o hip hop, não ia ser diferente. Acho que nós, como artistas, devemos usar a nossa inteligência e tirar o melhor proveito possível — artisticamente, financeiramente, politicamente — e não ficar pra trás, levantando a bandeira da reclamação, entende? Muitos ainda fazem isso, muita gente que fica só reclamando e não faz nada. Enquanto isso, os outros estão fazendo. Bem ou mal, corrompidos ou não, estão fazendo. Tem um lado bom nisso também.
Nos anos 1990 e começo dos 2000, você imaginava que ia acontecer isso que está acontecendo? Digo, os pretos estarem ainda mais em evidência, estampando capa de revista, TV, desfile de moda e tudo mais?
Eu te digo que tudo, tudo ainda vai ficar muito melhor. Mas a mudança é gradativa, não acontece de uma hora pra outra. É igual o dia se tornar noite e vice-versa. É gradativo: a noite vai cedendo lugar ao dia, é devagar. Não é que nem fuso horário, que você tá no avião e de repente muda.
Você acha que isso vai rolar, por exemplo, com o vegetarianismo também?
Sim, sim. Eu tava lendo um artigo falando que, nos Estados Unidos, o veganismo aumentou coisa de 200% em três anos. Não lembro os números, mas era algo assim. Está mudando, porque as pessoas estão se conscientizando. Os veganos e vegetarianos são ativistas, estão sempre falando, postando e vai mudando.
Você também é ativista, ué.
É, sou. Só não pode ser ativista chato. Mas, sim, também sou.
Cara, você entendeu o que eu falei do rap? Tá todo mundo aí, cantando, trampando, fazendo as coisas. Cada um tem a sua visão. Ninguém precisa ter a mesma visão do Racionais — nem do KL Jay. O KL Jay escolheu ser quem ele é. Eu pago o preço por ser quem eu sou. Deixo de viajar, de tocar em vários países, várias baladas que outros caras tocam. Mas, assim, eu quero isso. Eu escolhi isso. Então, não tenho tempo para ficar reclamando. Tenho que fazer meu corre, ganhar meu dinheiro, apoiar e ajudar os que estão comigo, fazer meu som e continuar na minha posição. É isso.
Voltando às ”mudanças” no mundo, você acha que essa onda conservadora tem alguma relação às conquistas recentes das chamadas minorias? Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, exército no Rio de Janeiro, Brexit na Inglaterra… Você acha que é uma resposta, é cíclico?
Você mesmo já respondeu: é cíclico, em fases. Acredito muito na astrologia. Estamos na época em que Júpiter entrou em Escorpião. As máscaras vão cair, muita gente vai cair, vai sumir. Muitas verdades serão reveladas, muita tensão no mundo. Depois essa fase vai passar, cara. O Barack Obama fez uma boa administração durante oito anos. Simpático, deixou o mundo mais leve. Saiu e entrou o Trump, desse jeitão. Metade dos Estados Unidos apoiou ele. Então, é cíclico mesmo. Faz parte do equilíbrio do mundo, eu acho. Vão acontecer muitas aqui no Brasil ainda. Mas os fortes sobreviverão.
E o Lula? Ele é forte, você acha que vai “sobreviver”?
Ele é forte, mas infelizmente aconteceu tudo isso. Sobre o Lula eu só posso falar uma coisa: é lamentável. Lamento tudo. Ele fez do Brasil um lugar melhor, colocou o Brasil no mundo, mas se aliou aos caras que não podia.
Você acredita que a situação dele é injusta ou ele, de certa forma, está “colhendo o que plantou”?
Acho que são as duas coisas. É injusto, mas ele também achou que não ia pegar nada pra ele. Ele o partido dele, que nós ajudamos a colocar no poder, acharam que não ia acontecer nada. Que ia se aliar com quem se aliou, fazer o que fizeram e não ia pegar nada. Foi ingenuidade deles. Agora, se o Lula pegou 12 anos de cadeia, o Aécio tinha que estar preso, com 40 ou 50. José Sarney a mesma coisa.
Acha que o Bolsonaro é uma ameaça?
Quero que se fodam, todos. Sou anti-sistema, faço o meu próprio sistema. A igualdade tá longe de ser a coisa mais importante no país. Ainda temos a mentalidade de colônia, fomos o último país a libertar os escravos. Tá longe de ser um país igualitário, uma nação. Vi o Brown falar uma coisa num show que eu chapei, achei louco. Ele disse assim: “Sobrevivo a qualquer sistema. Se o Hitler tomar o poder, eu vou sobreviver”. É mais uma coisa individual, particular. Pode entrar qualquer um, para mim, foda-se. Vou continuar anti-sistema, pagando menos imposto possível e fazendo a minha parte. Perseguido eu sou toda hora. Nós vivemos outra coisa, nosso dia-a-dia é outra coisa. Nós, os pretos, vivemos outra coisa. É outra realidade. Pode entrar qualquer governo, continua sendo diferente pra nós. A vida é diferente. Tudo.
Pra fechar, como estão os Racionais?
O Racionais está de férias coletivas por tempo indeterminado. De show também, inclusive de shows. É muito peso. Racionais é uma carga muito forte, né? Se continuar fazendo show, a gente fica louco. Os quatro. Trabalhamos muito no ano passado. Tipo, muito mesmo. Isso tudo cansa, cansa espiritualmente. Reunimos e falamos: “Vamos cumprir aqui e depois descansar”. Cada um faz seu corre individual e tá tudo certo. O Racionais trabalhou demais. Fizemos um show memorável na Audio (em dezembro de 2017), um puta show, para mim foi o melhor. E agora estamos descansando.
Ainda existe a ideia de fazer uma continuação do Cores & Valores ?
Não sabemos de nada. O Racionais está de stand by, pausado.
E o disco de trap do Ice Blue com o Helião, a gente nunca vai ouvir?
Puta disco! O Blue mostrou quatro músicas pra nós e eu falei: “Porra, Blue, você não vai lançar esse disco?” Fudido. Ele, o Helião e o William Magalhães, fizeram uns arranjos, cantaram. Trap e R&B, tem tudo misturado.
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