Laylah Arruda tá na linha de frente

Conteúdo para campanha AVON Femme, conhecendo mulheres e suas essências.

O acaso talvez seja um dos grandes professores, mestres e descobridores da história da humanidade. Ele fica ali na encolha, bem de canto, e quando você menos espera ele PUM, aparece desvendando talentos. Ele apareceu na vida de Laylah Arruda há duas décadas, quando ela tinha apenas 12 anos. Um coral do Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo com a Federação Israelita, batizado posteriormente como Coral Vozes da Paz, juntou cerca de 300 crianças de 5 a 15 anos, de etnias variadas, com a proposta de trabalhar a conscientização sobre a discriminação racial e religiosa. Para formar um repertório, o maestro Carlos Slivskin sugeria uma música e quem soubesse era escalado ali na hora pra cantar. Ela explica a experiência. “A primeira música que o cara propôs era “Somewhere Over the Rainbow“. E eu conhecia essa bagaça, porque eu tinha uma amiguinha japonesa na escola que tocava piano. Eu ia na casa dela e ficava cantando, mas eu não me ligava que eu cantava bonitinho.” Taí, o acaso trabalhando mais uma vez. Deste coral participou por um par de anos e tinha um solo cantando “Coração de Estudante“, do Milton Nascimento.

Criada na zona sul de São Paulo, na ponte entre a Vila Guarani e o Jardim Miriam, já na divisa com Diadema, aos 15 conheceu outro rolê, bem menos formal: o rap. “Eu comecei a gravar umas coisas no rap. Não me pergunte nome, eram uns maninhos, uns bródinhos que eu arrumei ali e eu ia gravar. Foi o primeiro contato com estúdio. Era tudo caseiro, microfone mais ou menos, aquela coisa. Mas foi a primeira experiência de se ouvir no fone, reconhecer a própria voz.” Ela ainda dá a letra sobre outro papo muito combatido pelo hip-hop: o racismo. “Eu sou miscigenada, porque minha mãe é branca, mas as rebarbas do racismo recaem sobre mim, por causa das minhas características. Dependendo do tom da sua pele, a coisa piora ou é menos pior. Eu sei que uma mina que é mais preta sofre mais com as coisas.”

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Você, se for jovem demais, talvez não lembre de uma febre que rolou neste país no início dos anos 2000, o forreggae. Ele juntava uns caras com bermuda e camiseta de surf, tênis de skate, algumas pochetes e minas de sandália rasteirinha, saia indiana. Este fenômeno, que unia, obviamente, o reggae ao forró, apresentou ao mundo fenômenos como Circuladô de Fulô e Rastapé. Se você estiver cantarolando “Me Namora“, do Edu Ribeiro, sabe do que estou falando. “Tava nessa época, fazer o quê? Era essa fase, não vamos cuspir pra cima”, comenta Laylah rindo. Pois bem, na época do Ensino Médio Laylah entrou nesse rolê e montou uma banda com a molecada da escola. A aventura não durou muito, ainda bem se pá, mas abriu portas.

“Existia um site, que deve existir até hoje, que se chama Surforreggae. Lá tinha um catálogo de banda procurando cantor, músico e músicos e cantores procurando bandas. Entrei lá e tinha uma banda chamada Tribo Arawak, um bando de moleques de 18 anos. Passei no teste e virei backing vocal”, ela conta. O grupo gravou um disco, que talvez você ainda encontre na Johnny B. Good, da Galeria 24 de Maio, e deixou uma pulga atrás da orelha da cantora. “Aí começaram os meus questionamentos sobre o papel da mulher como ser pensante na música e como ela é vista artisticamente. Foi aí o começo, não é que a ideia estivesse pronta, mas foi o começo de um olhar mais crítico.” Ela detalha o machismo no rolê do reggae. “Eu entrei na banda e o vocalista cantava muito bem, mas eu também cantava muito bem. Qual era a do reggae de banda aqui? A mina tem que ser gata, gostosa. Cantar bem? Tomara, vai que ela canta bem. Era um papel secundário, era isso.” Ela ainda conclui. “Eu tinha dois sons no show, depois de algum tempo de banda, que eram o ápice do show, não vou fazer a falsa modesta. Por que eu não posso dividir com o cara o protagonismo?”

Ela foi procurar o espaço das minas e viu o primeiro lampejo de destaque no Susi in Dub, balada de música jamaicana que rolava no início dos anos 2000 no Susi in Transe. Quem tava lá em cima era a Marietta, MC de sound system e backing vocal do Guilherme Arantes. “Opa, tem uma mina cantando. Ela não é a backing vocal do bagulho, ela tá cantando junto com o cara. Ela tem uma certa insegurança, ela não tá dominando o bagulho, mas ela tá lá, ela tá fazendo e tá fazendo legal.”

Pouco tempo depois, ela já tava febrona dos sounds e pouco tempo depois tava com seu sistema de som na rua, o Quilombo Hi Fi, que nasceu em 2005, mas se consolidou no rolê em 2007. Ela dá sua impressão das festas jamaicanas em São Paulo. “Eu já tinha alguns questionamentos, mas eles são mais sólidos e maduros hoje. Eu era integrante de um sistema de som, o sistema de som também era meu, coloquei dinheiro ali. Eu limpava o sistema de som, pintava o sistema de som, fazia manutenção do sistema de som, carregava o sistema de som, mas eu era a mulher do cara do sistema de som”, ela conta. Outro momento difícil de ser mina no rolê era na hora de pegar o microfone. “Ia um cara no microfone e a galera continuava bebendo, de boa. Ia outro cara, a mesma coisa. Quando ia uma mina todo mundo parava e ficava olhando com aquele olhar de ‘ih, será que ela vai dar conta? Será que ela vai saber? Será que não vai ser ideinha, menininha?’ Isso fez muitas meninas desistirem. É difícil segurar esse olhar.”

Ela saiu do sound system em 2013, junto com o fim do casamento. “Assim que eu saí fui esquecida, porque o poder do macho dominante valia mais do que eu.” Ela ficou um ano fora da cena e quando assumiu o microfone novamente sentiu que o jogo tinha mudado. “Público? Ninguém fazia ideia de quem era eu na fila do pão. Filha, você acha que cê tá aí bombando? Tem aí sete, oito anos de bagulho? Vai ter que começar tudo de novo, bem.” E foi o que ela fez. Três anos depois ela acabou de lançar seu disco solo, Amalgama, e vai lançar um EP com seu outro grupo, Laylah & Santa Groove. “Ele tem esse nome, porque a gente queria que ficasse com uma cara de Sharon Jones & The Dap Kings, James Brown & The JB’s. É a base da nossa influência.”

Laylah ainda se aventura atrás das picapes. Começou com a Ferro na Boneca e atualmente conduz, ao lado de Rafa Jazz e Laura Mercy, a Veraneio. “A Veraneio tem só mulheres, mas não tem esse mote feminista, mas está intrínseco. A partir do momento que somos mulheres e estamos tocando já estamos fazendo um discurso da expressão feminina. A Ferro na Boneca era mais discursiva”.

E tem ainda o sistema de som cabuloso das minas, o Feminine Hi-Fi, criado por ela em parceria com Renata Aguiar, Andrea Soriano e Daniella Pimenta. “A princípio era uma festa especial no Dia das Mulheres. Fizemos uma festinha num terreno do CDHU da Voith [zona oeste] e de repente deu quase mil pessoas. Com o boom decidimos seguir, estamos maturando as ideias, mas a ideia é sempre abraçar as minas.” Dia 18 de setembro, elas lançaram o selo do Feminine e estão, com um facão na mão, buscando o protagonismo feminino no rolê. “A ideia é promover os dubplates, muito característicos na história do sistema de som, mas vamos fazer o tune mesmo. Se a mina quiser fazer o disco a gente dá o suporte, arruma suporte pra ela, faz link com produtor, acha estúdio, faz a produção mesmo.”

A MC, cantora, professora de canto e geógrafa especialista em legislação ambiental relaciona essa caminhada com a alma feminina. “A essência da mulher tá no modo como fazemos: sem precisar atravessar o caminho de ninguém. A gente tem uma capacidade de mãe, de fêmea mesmo. A gente tá ali loba: forte, firme, desbravando a mata, mas não vamos atravessar o de ninguém A gente faz isso agregando.” O papo tá dado no refrão de seu mais novo dubplate, o primeiro lançado pelo selo do Feminine Hi-Fi. “Loba, leoa, o rugido ecoa. Feminine é missão.”

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