“Lei anticrime de Moro é um dos documentos mais simplórios a que já tive acesso”

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Na segunda-feira (4), o ministro da Justiça Sérgio Moro apresentou a governadores brasileiros o projeto de lei anticrime que propõe alterações em 14 leis no ordenamento jurídico do país. Desde a escolha do nome até as sugestões de novas alterações nas leis penais, o projeto foi alvo de críticas de ativistas e juristas que o classificaram de problemático a mal escrito.

Marcelo Semer, juiz de direito, escritor, mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, foi um dos maiores críticos do projeto na rede social. Em uma conversa com a VICE, Semer abordou alguns pontos mais preocupantes do projeto que representa a plataforma de segurança pública, um dos fatores mais importantes que levaram Jair Bolsonaro ao cargo da presidência.

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Para o juiz, o projeto é fraco e mal feito e muitas das propostas de mudança passam longe de ter um peso jurídico como de fato deveria. “É um dos documentos mais simplórios que já tive acesso, quando o assunto é mudança de leis”, disse. “Os títulos dos temas são publicitários, não jurídicos, não há indicação precisa das mudanças, comparativos com leis atuais, nem uma só justificativa. É um trabalho escolar e mal feito. Não chega a perto do nível de uma proposta de governo. Isso revelou um amadorismo de certa forma surpreendente. Mesmo assim, muitos estão aplaudindo. Sim, porque querem aplaudir antes mesmo de ler e, honestamente, como se passou com as tais 10 Medidas contra a Corrupção, a maioria expressiva que assinou embaixo nunca tinha lido o que estava escrito naquelas propostas, mais do que o slogan. Em uma palavra: populismo.”

Plea bargain

Considerando a admiração explícita de Moro pelo sistema jurídico norte-americano, era de se esperar que ele pegaria emprestado alguns instrumentos do Common Law. O plea bargain é um deles. Trata-se de um acordo entre o acusado de um crime, o Ministério Público e o juiz de direito em troca de algo que seja do interesse de todas as partes.

No caso do plea bargain, é negociada uma solução que envolve o acusado confessar o crime e isso seja o suficiente para chegar numa pena menor por conta desse acordo, sem passar por um processo. Porém, um dos preceitos constitucionais brasileiros é a presunção da inocência e a confissão de um crime não é imperativa para que se julgue um caso somente com base nela.

O plea bargain seria uma espécie de primo da delação premiada, instrumento jurídico que marcou a Operação Lava-Jato a qual deu fama e influência nacional a Moro. Ambos instrumentos geram acordos entre as partes envolvidas num processo criminal e exigem a confissão do acusado como principal “moeda de troca” para obter um benefício da justiça.

Entretanto, Semer avalia que o instrumento jurídico não é lá muito confiável até no seu próprio berço de nascença. “Não dá para dizer exatamente que a plea bargain foi um sucesso nos Estados Unidos, não é mesmo? Eles chegaram a um patamar de 2,5 milhão de presos, maior cárcere do mundo em termos absolutos e proporcionais, com 800 presos por 100.000 habitantes. Os Estados Unidos tem ótimos exemplos em muitas áreas, no sistema penal não tem e isso é internacionalmente reconhecido e nacionalmente também”, aponta Semer.

No documentário 13ª Emenda dirigido por Ava DuVernay para a Netflix, indicado por Semer, é possível entender como o plea bargain ajudou a inflar a população prisional e também é um instrumento usado pelo Judiciário de forma extremamente seletiva, prejudicando quase sempre a população negra e pobre do país. A seletividade da justiça no Brasil também não é uma novidade, então a inspiração do plea bargain pode piorar uma situação já sucateada.

“Parece que o ministro é incapaz de fazer um diagnóstico da realidade. Talvez por ter passado a vida inteira na Justiça Federal (que não tem nem 10% dos presos no país). Ele não tem a menor noção do impacto de cada proposta que faz e isso é claramente visível. O fato é que nossa estrutura legal e constitucional não é exatamente igual a deles (o que foi difícil de entender, por exemplo, no questão da prisão em segundo grau)”, diz Semer. “A única coisa que vai ‘melhorar’ é que juízes e promotores vão ter menos trabalho nos primeiros anos, com um índice maior de condenação e confissão (dado o receio de consequências mais severas).”

Para Semer, a principal consequência de reformatar o sistema judicial para a negociação é o fortalecimento do Ministério Público como a instituição mais poderosa do ambiente criminal. “O grau de discricionariedade e a limitação do controle (sobre a decisão judicial não faltam recursos, mas não existem contra o MP), vai alterar enormemente o polo de poder no sistema e, em decorrência disso, também impulsionar o encarceramento. O cientista social Jonathan Simon chamou esse sistema de “Governo através do Crime” (a questão criminal se situa no centro do poder) narrando as péssimas consequências para a democracia americana. O cidadão deixa de ser o epicentro das políticas públicas, que passam a ser dirigidas, sobretudo, às vítimas, penetrando a lógica criminal em todas as esferas públicas e privadas. Com esse ‘projeto’, damos mais um passo para esse ponto”, avalia.

Legítima defesa para agentes policiais

Uma das propostas de mudança mais comentadas e criticadas do projeto de lei de Sérgio Moro foi a inclusão de dois incisos no art. 25 do Código Penal que legisla sobre a legítima defesa.

Hoje a legítima defesa é uma das excludentes de ilicitude elencadas no Código Penal ao lado do estado de necessidade e o estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Isso significa que, quando um sujeito comete algo dentro dessas três hipóteses, não será considerado um crime.

Na proposta do ministro, o artigo 25 terá a inclusão de mais dois incisos que permitem expressamente que agentes policiais possam agir em legítima defesa em conflitos armados ou risco iminente de conflitos armados ou no caso da vítima estar sendo mantida em refém. Para muitos ativistas, o ministro quer oficializar a “licença para matar” civis, especialmente os de cor negra e moradores de áreas pobres do Brasil dos policiais.

A polícia brasileira não só é a que mais mata civis no mundo, mas também é a que menos é investigada e punida por esses atos. Dos autos de resistência às absolvições de policiais envolvidos em massacres como o Carandiru. Para o juiz de Direito, o projeto de lei não oferece nenhum tipo de embasamento em dados, mas sim se sustenta em uma convicção de que a segurança do Brasil é ruim porque a polícia mata “pouco”.

“É um gesto de que não importa quanto a polícia mate, ainda é insuficiente para o quanto deve matar”, critica o juiz. “A primeira medida do governo foi liberar posse de armas; a segunda, perdoar o excesso doloso no uso delas. A lógica é: se as pessoas usarem mais armas e matarem mais vai ter menos crimes. Eu diria que é mais ou menos como dizer que a terra é plana. É mentira, mas na lógica a que estamos submetidos, se eu acreditar é o que basta.”

No caso da legítima defesa, Semer teme que seja, além de uma licença para matar, um estímulo para que a mesma continue fazendo o que faz contra civis. “(…) Levando a interpretação até onde ele [Moro] gostaria de chegar, ou seja, que os policiais e agentes da segurança pública (quais, não se sabe, pois a proposta não explicita) podem agir antes da ameaça (ou seja, apenas por um risco iminente de conflito) e prevenir agressões (antecipá-las) isso distorce totalmente a ideia de legítima defesa. A lei já fala em repelir agressão iminente -mas prevenir é ainda mais antecipado; e risco de conflito é absolutamente aberto para justificar tudo. É o tal ‘mira na cabecinha’ que o Witzel propôs de uma forma mais caricata”, diz.

Facções criminosas

Embora Moro tenha se comprometido a acabar com o problema das organizações criminosas no país, parece que o ministro fez o possível para destacar mais ainda o reinado de violência dessas mesmas organizações ao listá-las no artigo 1º da lei de Oragnizações Criminosas — inclusão que surpreendeu muita gente.

Para Semer, a proposta de modificação na lei é de “um amadorismo brutal”.

“Acho isso simplesmente grotesco”, frisa. “Eternizando nomes de facções, valorizando-as, aumentando o seu prestígio junto ao crime. É de um amadorismo brutal. Mas, se formos pensar bem, o projeto é um presente para as facções. Tudo o que elas mais querem, e mais precisam, é mais encarceramento, mais levas de jovens que poderão aliciar para seus exércitos. O PCC, penhorado, agradece.”

Lei Anticrime ou simplesmente Lei Moro?

O nome da lei, que é uma das maiores plataformas do ministro da Justiça, gerou piadas justamente pelo nome fraco escolhido que mais parece um “está proibido cometer crimes” do que de fato uma proposta bem estudada e elaborada para enfrentar o problema de segurança pública no Brasil.

“Eu diria, ainda, que o conjunto de projetos é muito mal articulado, e para minha surpresa, conseguiu ser ainda mais frágil do que as 10 Medidas”, diz. “Mas se for aprovado, muito mais gente vai ser presa. E eu te pergunto: os governadores estão contando com orçamentos que terão de crescer em tempos de teto de gastos? Ou a gente vai alojar esses novos presos em contêineres mesmo? Nenhum trabalho sério de pesquisa foi feito para escrever esse pacote. Qual seria o impacto prisional? Não se sabe. Quanto vai gastar? Não se sabe. Qual o impacto nos homicídios? Não se quer saber. Enfim, é o suprassumo do amadorismo jurídico, do reacionarismo penal e da publicidade política.”

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