Foto por Anna Mascarenhas.
No fim do ano passado, eu assisti ao meu primeiro show do Ludovic. Conheci o trabalho do Jair Naves, vocalista da banda, pelo segundo disco solo dele, Trovões a me Atingir (2015), e, depois de um tempo frequentando os shows dele e conversando com uma galera que também curtia, não demorei a sacar o tamanho do grupo paulistano no imaginário dessas pessoas. O show de “retorno”, que aconteceu no dia 24 de outubro, no Superloft, só inflou essa minha percepção: lotou, e os fãs gritavam fielmente as letras bizarramente difíceis de acompanhar do Jair, que convidou todo o público a subir no palco na última música do set, “Você Sempre Terá Alguém a seus Pés” e foi meio sufocado pela galera que levou o convite a sério, deixando metade da pista vazia.
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Mas parecia que só eu não estava surpresa por ver o impacto que o Ludovic causava naquela galera. Logo antes do fim do set principal do show, o Jair disse para a plateia: “Não consigo colocar em palavras o quanto me emociona vocês não terem nos esquecido”. A declaração foi bonita, mas não entendi na hora; pra mim, parecia quase como uma falsa modéstia — era óbvio que o Ludovic não tinha sido esquecido. Uns meses depois, porém, aprendi que não era.
Em agosto desse ano, a banda anunciou que, depois de sua turnê de reunião em 2015, fará (pelo menos) mais três shows pelo Brasil nesse mês de setembro, pra comemorar a primeira década do Idioma Morto, segundo álbum da banda: em Brasília (23), Goiânia (24) e Uberlândia (25). Depois de um dos ensaios que o grupo anda fazendo desde o início de agosto, encontrei o Ludovic (Jair, Zeek Underwood e Eduardo Praça, da formação “clássica”, e o novo baterista Rodrigo Montorso) pra conversar sobre as impressões do disco e da cena que o envolvia, dez anos depois.
O Ludovic foi formado em São Paulo no ano 2000 e lançou seu primeiro disco, Servil, em 2004; aterrissando entre as cenas de indie rock, de emo e de hardcore que se acomodavam na capital paulistana no começo da década. “A gente se sentia diferente de tudo o que tava acontecendo, com um timing meio esquisito para o que estávamos propondo”, conta Jair. Pra, de alguma maneira, celebrar esse deslocamento, há 10 anos, em 7 de setembro de 2006, o então-quinteto Ludovic lançava Idioma Morto.
Pôster do show de lançamento de ‘Idioma Morto’. Arte por Carlos Issa.
O disco foi gravado em São Paulo, durante primeiro semestre de 2006, no TC Estúdio. “Eu já gostei por ser um estúdio dirigido por uma mulher, só que ela não sabia nada de rock. Ela era super MPB, e o público alvo dela era um forrozeiro com um tecladão, que soltava uma sequência e gravava”, conta Jair. Toda a discografia do Ludovic foi gravada lá, e, para o grupo, a ajuda de Tereza Miguel, dona do estúdio, foi um fator importante para a sonoridade da banda; assim como os palpites de seu assistente, Mau Mau. “O cara era sambista, aí eu ficava tentando gravar as guitarras lá, já era complicado, e ele ficava: ‘toca mais calmo!’ (risos)”, lembra Eduardo.
O conflito amigável durou pouco: segundo Eduardo, as gravações do instrumental do disco não demoraram mais que dois dias. As letras, porém, demoraram um pouco mais pra serem totalmente finalizadas. “Tenho isso com todos, mas com esse disco especialmente, eu não queria que tivesse uma sílaba de que eu me arrependesse. Claro que tem (risos), mas a gente gravou o instrumental e eu fiquei muito tempo tentando um monte de coisa”, conta Jair. “Eu lembro que na época eu queria que cada música tivesse uma abordagem textual diferente, e que abordassem coisas que não fossem muito comuns no universo que a gente frequentava, de rock e tudo mais.”
Foto por Anna Mascarenhas.
A preocupação de Jair rendeu o real espetáculo de Idioma Morto. Em canções como “Poço de Hombridade”, um relato de palavra falada sobre um sonho aterrorizante e recorrente, e em “Qorpo-Santo de Saias”, uma verdadeira obra-prima da imaturidade masculina típica dos 20 e poucos anos, o Ludovic mostra a sofisticação lírica que o distanciava do restante das bandas do mesmo meio, na época. “É como cair na gargalhada em meio ao caos e cortar os pulsos no ápice da felicidade”, me conta por e-mail o baterista Júlio Santos, que integrava o Ludovic na época das gravações de Idioma Morto. “As letras do Jair tem um poder de misturar sentimentos e desorganizar o que poderia ser o óbvio.”
“Lembro que, quando estava escolhendo um nome pro disco, pensei: ‘a gente tá falando um idioma que ninguém fala’. E não é nem num sentido arrogante, de gênio injustiçado ou qualquer merda assim. É mais um ‘nossa, a gente tá fodido, porque isso aqui ninguém vai ouvir’”, diz Jair. Cleiton Sotte e Ailton Lucena, da Travolta Discos, foram alguns dos poucos que demonstraram fé no som do Ludovic na época.
A Travolta Discos surgiu na loja 255 da Galeria do Rock; depois do lançamento de Servil, a dupla colocou o disco pra tocar na loja e acabou curtindo o som do Ludovic. “Nessa época eles tavam sempre em turnê e a gente pirou no disco, escutava direto, mas ainda não tinha visto a banda ao vivo. A primeira impressão ao vivo não foi boa, mas lá pelo terceiro show a gente ficou ‘puts, que banda foda’ e passou a ir em todo show que tinha, porque era meio imperdível”, me conta Cleiton, por telefone.
O lançamento de Idioma Morto acabou por ficar na mão da Travolta, antes mesmo que Cleiton e Ailton tivessem a oportunidade de escutar o disco. “A gente ia lançar do jeito que viesse. A gente ouviu uma versão sem vocal, ele não tinha colocado as letras ainda. Aí, pouco antes de prensar, a gente ouviu uma mix, mas não ia nem ser aquela mixagem; daí foi pra fábrica. Foi meio às cegas. Mas eles já tocavam algumas músicas, a ‘Desova’ e a ‘Eu Fiz Pouco Caso de um Gênio’ já eram músicas que estavam no repertório”, diz Cleiton.
Nessa época, o Ludovic procurava fazer a maior quantidade de shows que conseguia, em qualquer pico que conseguisse arrumar, a fim de divulgar a banda. “Raramente tinha fim de semana sem show. Tocava em boteco, já teve show em cima de caminhão, em um monte de palco improvisado… A gente tocou numa pastelaria uma vez, não sei se vocês lembram”, diz Jair, sobre um show do grupo que Eduardo classifica como “clássico”. “A gente tinha muitos problemas com casas de show, porque, às vezes, ou a banda tava descontrolada demais, ou o público tava descontrolado demais, aí era gente caindo em cima de equipamento, cortava o som no meio, daí rolava treta”, ri Cleiton. “As casas de show faziam a primeira vez, depois ninguém queria deixar os caras tocarem. Aí tinha banda que não queria tocar porque na época ainda era meio precário, os caras juntavam equipamento, juntava o ampli de um, o ampli de outro e falavam ‘ah, não, os caras quebram equipamento’”, explica.
Os shows caóticos do Ludovic foram motivo o bastante para que surgissem várias lendas urbanas sobre a banda. “Que a gente era as pessoas mais drogadas do mundo, uma vez alguém me falou [que ouviu] que eu tinha me matado”, conta Jair. “A gente, nessa época, tinha uma relação bem imatura com álcool. Então acredito que era decorrência disso, mas a gente se deixava levar. Eu acho que foi bom, mas acabou sendo meio nocivo porque a coisa da performance às vezes ofuscava. As pessoas iam pra ver você se quebrar, mais um espetáculo performático do que a música em si”. Para Zeek, muitas das lendas surgiram por conta das fotos tiradas pelo fotógrafo Layr Barci — como a clássica foto do Jair com a cadeira no pescoço — , que acompanhou a banda por muitos shows.
“[O Jair] às vezes costumava interagir com o que tinha ao seu redor: cadeiras, pessoas… o que viesse pela frente!”, conta Layr Barci sobre a foto de 2004.
“As fotos talvez sejam impressionantes porque a apresentação dos caras era impressionante. Fotografava o que via, quase numa pegada de fotojornalismo mesmo. E eu conseguia capturar aquilo”, me conta Layr, por e-mail. “Como estava no palco com os caras, dividindo e fazendo parte daquele momento, eu conseguia capturar essas cenas. Realmente não consigo conceber o alcance dessas imagens e como as pessoas se relacionam com elas. Só posso afirmar que nada era combinado, encenado ou ensaiado. [Os shows] eram caóticos e emocionantes em diferentes gradações, sempre com com aquela urgência de que tudo aquilo poderia acabar a qualquer instante.”
Foto: Layr Barci
E, em algum momento, acabou. Em janeiro de 2009, o Ludovic anunciou que não faria mais shows nem lançaria discos. “Foi um pouco por stress psicológico — foram uns quatro, cinco anos de intensidade pura, tocando todo fim de semana, encarando qualquer coisa”, conta Eduardo. “Isso que eu vejo nas bandas novas hoje em dia, extremamente motivadas, indo fazer turnê sem saber onde vão dormir, sem saber qual vai ser a próxima cidade, e é ótimo, mas acho que requer uma certa juventude, sabe? (risos) A gente fazia isso e era umas coisas, tipo, de dormir no chão, tinha uma toalha pra cinco pessoas usarem. É uma coisa que é legal quando você tem 20 anos, quando você tem 25 já não é mais tão legal, quando você tem 28 já é uma merda e quando você tem 30 é, tipo… Não quero mais isso”, conta Jair. “Acho que as mesmas coisas que tornaram o Ludovic memorável de alguma forma foram as razões que levaram a gente pra decisão de parar de tocar.”
Apesar de terem seguido cada um para seus próprios caminhos e carreiras musicais — Jair tem seus discos solo e mais recentemente o NavesHarris, projeto com a cantora americana Britt Harris; Eduardo lidera o duo Quarto Negro e Zeek toca nas bandas Single Parents e Mudhill — o Ludovic já tentou, algumas vezes, trabalhar no que seria um terceiro disco.
“[Antes do fim da banda] a gente tava fazendo umas prés pro terceiro disco e graças a Deus a gente não lançou aquilo, porque era uma coisa horrorosa. É uma responsabilidade, também, compôr um disco pro Ludovic. É difícil você reconstituir um sentimento que ainda pode existir, mas não é da mesma forma”, diz Jair. Zeek complementa: “Acho que a gente teria que parar tudo por um tempo. Tem que parar tudo o que tá rolando. Muita coisa partia do Jair, as músicas, acho que também vai da gente pegar o gancho dele e tentar contribuir.”
Foto por Anna Mascarenhas.
Quando tomei conhecimento do Ludovic, a banda já tinha acabado. Talvez por isso eu tinha uma ideia de que a banda era muito maior do que ela parece ter sido — e, aparentemente, eu não era a única da minha geração. Seja pelos versos do Vitor Brauer em “SP – Pais Solteiros“, da Lupe de Lupe (“Ainda não havia para mim Ludovic, Hurtmold e a sua tradução”) ou pelo nome do álbum de estreia da banda carioca gorduratrans, repertório infindável de dolorosas piadas, tirado da canção “Nas Suas Palavras”, a influência do Ludovic parece ter se feito presente mais de uma década depois do surgimento da banda.
Não era incomum, que, nos shows do Ludovic, o Jair desse um discurso incentivando que qualquer um do público assistindo também formasse sua própria banda de rock. “A gente tocava em bairro de periferia, em cidade do interior que não fazia parte da rota dos shows, em grande parte para falar com pessoas que a gente sentia que eram como a gente. Então era importante falar isso”, conta Jair. “Sei lá, é meio cafona, eu não consigo ver esses vídeos meus hoje em dia. Mas eu espero que tenha funcionado porque sempre foi de coração. Acho que se alguém for fazer música boa, são essas pessoas que se sentem oprimidas, deslocadas, etc. Ou um Felipe [Aguiar, guitarrista do gorduratrans] da vida no quarto dele ou o próprio Lupe de Lupe.”
Seja como for, a influência do Ludovic — e, especialmente, do Idioma Morto —, uma década depois, se faz muito presente. Eu poderia ser desonesta e afirmar que o Ludovic era uma banda à frente do seu tempo, mas não acho que é o caso. O Ludovic esteve deslocado porque utilizava uma linguagem (musical, lírica e performática) que ninguém compreendia por completo, mas que não passava despercebida — para o bem ou para o mal. E, dez anos e muitas mudanças na cena de rock independente de São Paulo depois, continua sendo única.
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