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Quão efetivo é expor casos de machismo na cena independente?

Em agosto de 2015, a repórter do site norte-americano Pitchfork Jessica Hopper usou seu Twitter para coletar relatos de mulheres (fãs, jornalistas, técnicas de som, artistas) que haviam sofrido algum tipo de machismo na indústria da música ou do jornalismo musical. Em 24 horas, a jornalista recebeu mais de 400 histórias que iam do desprezo ao trabalho feminino a casos sérios de assédio e abuso sexual por parte de profissionais da área.

Mais ou menos da mesma época pra cá, histórias similares têm vindo à tona aos poucos na cena indie brasileira. O carioca Lê Almeida cancelou um show no Breve, em São Paulo, após a calçada da casa ser pixada com uma “acusação extremamente séria” contra o músico em novembro de 2016. Mancha Leonel, dono da Casa do Mancha, e Mateo Piracés-Ugarte, da banda Francisco El Hombre, foram acusados pelas ex-companheiras de machismo durante o relacionamento.

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Mais recentemente, na semana passada, ganhou visibilidade o relato de Clara Corleone. A ex-esposa do guitarrista Felipe Zancanaro, da banda Apanhador Só, postou um texto em sua página pessoal no Facebook acusando-o de agressão física e outros tipos de violência.

O episódio rendeu suspensão nas atividades do Apanhador Só. E na esteira do caso, uma lista postada no Medium reunia nome de bandas brasileiras que deveriam ser evitadas por conta de casos de machismo (e um texto-resposta). E foi assim que uma discussão tão antiga quanto as postagens que a motivaram nos fizeram questionar: quão efetivo é expor casos de machismo na cena independente? O quanto essas postagens públicas ajudam a tornar os espaços da música independente mais seguros pra mulheres? O quanto esses homens são excluídos desses mesmos espaços e, suas vítimas, acolhidas?

Sem respostas prontas para essas questões delicadas, o Noisey conversou com mulheres (produtoras, donas de selo, artistas, fãs) envolvidas com o cenário indie brasileiro para tentar entender que caminho essas acusações fazem após serem tornadas públicas. Aqui estão seus relatos:

Bruna Guimarães (BRVNKS)

Olha, eu acho que não vale de porra nenhuma ficar gritando no palco “fora machistas” se quando acontece algo no seu meio você não faz nada, sabe? A gente tem que saber separar um cara que foi idiota, imaturo, moleque ou sei lá, de um cara que agrediu, estuprou ou chantageou uma mulher. Não dá pra querer queimar absolutamente todo cara que já foi idiota com você, não dá pra por na mesma roda também. Se fosse assim, todos os caras ao meu redor mereciam um textão. Eu acho que tá faltando peito de muita mina tomar coragem de ir conversar, de contar, de ir atrás dessas coisas, porque cada vez mais isso tá tomando forma. Acompanhei uma das mulheres que fez esses relatos de perto. Eu vi o sofrimento e ainda vejo que ela passa por ter a vida dela toda fodida por causa de um cara que ainda tá de boa, que ainda tem a casa de shows dele, rindo e bebendo com os amigos pra lá e pra cá. E ela ali, fazendo terapia, sem conseguir manter um relacionamento com ninguém, tendo ataque de pânico, ansiedade. “Mas também não pode afastar o cara de tudo”, me falaram. Mas ela foi afastada, né? Ela foi afastada de todos os amigos que ela conheceu com ele, de toda a vida que construiu com ele, mas o cara, coitado… Ele vai mudar, ele tá arrependido. Mas nenhum se arrepende sem se foder, sem perder trampo, show, o que for. A gente precisa ter paciência pra ensinar pros caras o que não tá certo, e ao mesmo tempo ninguém precisa ter paciência com abusador. São dois lados da coisa.

Letícia Tomás (PWR Records)

A “eficiência” da exposição se dá pelo medo: os caras não criam consciência, eles somente são inibidos pelo medo de ser expostos. Eu ainda tô pistola com aquela lista sem sentido que fizeram no Medium. Somente jogaram lá nomes, totalmente irresponsável, sem data, sem a situação. O pressuposto para ser contra algo é saber sobre, né? O mito da segurança no rolê é muito doido, porque na verdade não se trata dos caras que tão lá, mas da falta de mulheres. Entendo e apoio alguns boicotes pra tirar a visibilidade do cara e o alerta para as minas sobre os caras, dar apoio em caso de abuso e etc, mas “segurança da mulher” no rolê é totalmente relativa. Nós, como comunidade, não damos nenhum apoio às vítimas e as denúncias estão longe de ser eficientes. Fazer uma lista cheia de “não apareça nem cole com fulano e ciclano” sem informação nenhuma é muito irresponsável. [A exposição] não adianta de nada, mas a gente ainda não descobriu um jeito de fazer adiantar. Penso que um jeito é ter mais mulheres em posições privilegiadas, porque as denúncias aconteceriam de maneira mais privada e o boicote aconteceria de cima pra baixo. Mas você sabe o quão longe a gente está disso, né…

Bells Delfiol (PWR Records)

Muitos artistas seguem tocando. Acho a denúncia mais uma parada de expurgo da vítima do que qualquer outra coisa. Por isso eu acho que prefiro seguir correndo atrás de mulheres, falando de mulheres e divulgando mulheres, ao invés de perder energia me fodendo por fazer textão falando de homem. Os caras “param” de ser escrotos não porque sabem que são escrotos, mas porque têm medo de serem pegos. Eu conheço caras que foram escrotos, foram corrigidos, levaram prensa, coça, e mudaram de postura, mas eles são muito muito muito poucos em comparação aos que simplesmente não são filhos da puta por medo da exposição. A gente é sempre o grupo que mais se fode. Vamos nos ajudar e ir descobrindo no meio do caminho como lidar com os caras.

Amanda Magnino

Falando racionalmente, é muito perigoso pras meninas fazerem relatos públicos por questões judiciais mesmo. Já conheci meninas que foram processadas e perderam a causa mesmo depois de recorrer por relatarem casos de agressão no Facebook mesmo sem colocar o nome do cara, porém deixando claro que se tratava dele. Isso é muito injusto, mas a Lei é a Lei e não tem como a gente brigar contra isso. Além da questão jurídica, existe a questão psicológica que é bem séria. A gente tem que estar muito firme para aguentar a pressão que vem depois de uma exposição. O mais certo seria se uma menina foi agredida ou abusada por um cara de uma banda faça um boletim de ocorrência contra ele, e siga conforme a lei para se proteger. Depois que finalizar o caso, aí, com prudência e instrução do advogado(a), ela divulga conforme instrução o que aconteceu.

Caso ela queira expor de qualquer forma e dar a cara a tapa, acho legal que ela converse com uma pessoa que tenha noção jurídica antes para orientá-la sobre os riscos, para ela ficar ciente de tudo que pode acontecer e como ela pode reduzir esses riscos. Eu admiro muito quem dá a cara a tapa mesmo ciente de tudo.

Nanda Loureiro (Banana Records)

Não acho que seja efetivo porque machismo no meio independente só vai deixar de existir quando o machismo deixar de existir na sociedade. Infelizmente, isso tá longe de acontecer. Apesar disso, esse tipo de exposição e denúncia ajuda a tornar o meio minimamente mais seguro, mas é só a ponta do iceberg e por isso é impossível afirmar que nós estamos protegidas. Existem milhares de abusadores e agressores muito além do nosso segmento, e também existem centenas dentro dele. Isso não é denunciado por medo das vítimas, já que, como dito, elas não estão totalmente protegidas. Falando por mim mesma, já expus vários homens machistas da música independente de Fortaleza — acredito que esse tipo de denúncia seja importante porque a maioria deles pararam de tocar e/ou circular, por exemplo — mas ainda tenho medo de sair de casa para festivais (inclusive os que são produzidos por mim) por saber que posso ser assediada/agredida por esses ou quaisquer outros homens.

Carolina Viccari

A primeira questão que a gente precisa discutir é que o homem vê a mulher como um objeto e no cenário musical isso se reforça mais ainda. Grandes artistas veem a mulher como uma conquista. Essa discussão em si, da mulher no cenário musical nunca tinha sido tão forte como agora. O que eu mais me surpreendi é que muitas denúncias eram antigas, de 2015 ou 2013, mas nunca tinham realmente chegado ao conhecimento público ou entrado em discussão. Acredito que agora os homens vão olhar com outros olhos para essa situação, tendo em vista que, sim, agora eles vão ter consequências. Bandas que tem músicas sobre feminismo e liberdade vão perder a credibilidade agora. Eu nunca concordei com homem cantando sobre feminismo ou liberdade, e isso só reforçou minha ideia.

Cint Murphy (In Venus)

Pra gente, funciona de um jeito bem simples. Quando a gente sabe de uma parada a gente evita expor, porque quando você expõe, é pra você que volta. As pessoas vêm te cobrar, querem saber mais, querem ter provas e afins. A mulher que expõe é sempre a que sai mais prejudicada. No caso da In Venus, a gente cobra pessoalmente. Olha no olho e vai pra cima dos caras, porque não tem outro jeito. Quando a gente sabe de alguma coisa vamos passando a história para as amigas, pedindo pra elas avisarem as amigas, e assim vai alastrando. Outra coisa que é muito mais eficaz é reverter a parada e cuidar das minas. Geralmente, quando você faz uma exposição, [a repercussão] só fica no ataque do cara. Ninguém vai atrás da mina que sofreu. O que a gente tem feito é pensar “foda-se o cara, vamos dar apoio pra mina”. Os caras podem mudar e a gente precisa dar chance pra essa mudança. A mudança não vem do dia pra noite. Eles têm que repensar, fazer terapia e mudar de atitude no dia a dia. Mostrar que estão realmente mudando. O que a gente quer não é arranjar treta, é só ter um espaço mais seguro pra gente, onde a gente não sofra esse tipo de coisa. O motivo pelo qual nós temos feito essa luta incessante e estressante pra caralho é porque a gente quer mudança, não tretar por tretar. Cada mulher tem uma visão diferente, mas é muito necessário que a gente discuta porque precisamos chegar num consenso do que a gente quer dentro do feminismo, o que a gente quer dentro da cena, e não só ficar dando murro em ponta de faca.

Paula Albuquerque

A exposição dos casos de violência machista da cena independente na internet exige cuidado, mas pode ser uma ferramenta muito válida pra vítima e pras demais meninas. É necessário as denúncias partam das vítimas e que seja respeitada a forma como impõem se isso pode ser compartilhado, quando e onde. Devemos estimular que as mulheres possam denunciar esses casos na Justiça, mas ao mesmo tempo sabemos como isso por vezes é doloroso e ineficiente, então muitas evitam. E é claro, quem publica um relato assim sabe que podem existir consequências jurídicas, por isso colocar em prática é uma decisão particular. Quando as mulheres denunciam os abusos muita gente é mobilizada e podemos saber que determinados caras se comportaram assim. Além delas exteriorizarem como se sentem, possibilitam que a cena abra os braços pra acolhê-las em vez de receber os agressores.

Deborah F (Def)

Acho importantíssimo termos um espaço pras vítimas alertarem outras minas sobre casos de abuso e acredito sim que nos ajude a nos precaver e evitar alguns lugares e pessoas. Mas acho que devemos ter mais cautela no momento de compartilhar essas informações. Pensar se o caso já foi resolvido e se reabri-lo não causaria um desconforto ou risco à vitima, ou se a proporção que esses compartilhamentos podem tomar não seria maior do que a vítima imaginou e poderia lidar. Saber também se o caso já não passou muito num telefone sem fio e está com a história deturpada e, principalmente, nomes trocados. Até hoje vejo gente que não acompanhou a resposta da Salma do Carne Doce compartilhando aquela acusação antiga sobre um membro que nem está na banda mais. É algo que queima um trabalho incrível de uma mina que lutou muito por aquele espaço. Primeiramente, a gente tem que pensar se alguma mina não pode sair prejudicada na história. É muito delicado no geral e leva um tempo pra gente aprender uma forma melhor de lidar com isso.