Música

Madonna, Miami e a Identidade Vogue

Não há como negar que “Vogue”, de Madonna, é um dos momentos mais icônicos da história da cultura pop. Completando 25 anos de seu lançamento este mês, o single número um de platina dupla da cantora e seu clipe, dirigido por David Fincher, são inesquecíveis. Quem poderia negar o charme, a coreografia poderosa, o clima clássico de Hollywood em preto e branco, a elegância casual, a mistura de masculino e feminino… Aquele sutiã? O que tem estimulado o mundo desde os anos 90 não foi nem começo nem o fim da cena existente no mundo real de onde surgiu “Vogue”. Após muitas reinvenções, a cultura revelada certa vez pela rainha do pop segue prosperando, agora, mais do que nunca.

Qualquer um que tenha assistido ao documentário Paris Is Burning sabe que a cultura de bailes surgiu nos anos 80 em Nova York tanto como meio de sobrevivência, quanto como entretenimento. Jovens homossexuais, muitas vezes expulsos de casa por conta da sua sexualidade, juntaram-se em passarelas improvisadas, criando novas famílias na forma de “casas”, liderada por “mães” e “pais”. Essas casas, que muitas vezes ganham seus nomes com base em marcas de grife caríssimas ou outras coisas maravilhosas, brigavam nas pistas de dança, competindo em diversas categorias. O que importava era viver um sonho que não teria como e com personalidades que o mundo não deixaria você ter por conta própria. O primeiro verso da música de Madonna captura este clima perfeitamente.

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“Look around, everywhere you turn is heartache, it’s everywhere that you go / You try everything you can to escape the pain of life that you know / If all else fails and you long to be something better than you are today / I know a place where you can get away, it’s called a dancefloor, and here’s what it’s for so / c’mon, vogue.” [Olhe ao seu redor, onde quer que você vire há pesar, onde quer você vá / Você tenta tudo que pode para escapar da vida que conhece / Se tudo der errado e você anseia por ser algo melhor que hoje / Sei de um lugar para onde você pode escapar, chama-se pista de dança, e é para isso que serve / então vamos lá, vogue]

Graças a este trecho, a outrora cena subterrânea de bailes explodiu para além de Nova York, espalhando-se por todo os EUA e o mundo.

“Tudo acabou crescendo junto, especialmente na época em que Madonna tinha toda aquela popularidade por conta da turnê Blonde Ambition e ‘Vogue’”, diz Power Infinity, que ocupa atualmente o cargo de Mãe da House of Infinity, em Miami. Desde aquela época, ele ajuda a fomentar a cena regional literalmente do nada a uma potência nacional emergente. Não foi nada fácil, e Power não fez isso sozinho.

A primeira casa na Flórida foi a House of Exxcentrika, fundada pelo nova-iorquino Gustavo. Naqueles dias, a House of Infinity era administrada por um tal JoJo, e ambos contavam com a House of Lords e a casa original de Power, Righteous Shade. Ao passo em que muitos se sentiam explorados pela apropriação de Madonna da cultura vogue, isto só serviu para aumentar a popularidade da cena, atraindo integrantes que de outra forma nunca saberiam que ela existia. Com o apoio de “Vogue”, a cultura de bailes pôde se firmar em cidades como Los Angeles, Chicago e Miami.

“[A cena] era muito popular, não só nas casas noturnas, mas entre os gays”, disse Power. “Os bailes de JoJo eram bem frequentados porque todo mundo queria ver algo que não tinha tido a oportunidade de ver antes”.

Por anos, a cena foi dominada por estas quatro primeiras causas, mas ao final dos anos 90 e começo dos 00, algumas casas nacionais começaram a se ligar.

“Minha honra pessoal aconteceu quando vi os Mizrahis se juntando a nós, Ninjas se juntando a nós, Ebonys, Milans”, diz Alexis Lords, fundador da House of Lords. “Todas estas casas começaram a prestar atenção na gente, ao sul da Flórida. Aquilo, pra mim, é a melhor forma que tenho para descrever uma experiência orgástica”.

Um assunto intocado por Madonna em seu single “para as pistas”, de certa forma é o mais importante: não dá pra fazer parte da cena sem sem ser meio babaca. Sendo assim, não se pode ter uma cena dessas sem emputecer algumas pessoas. Por mais que Miami tenha passado décadas na batalha, passando de quatro casas locais a um bem-estabelecido grupo de grandes nomes nacionais, até mesmo mandando seus melhores dançarinos para participarem e vencerem em bailes aprovados nacionalmente, a cena de bailes de Nova York abomina a ideia de dar aos seus colegas do sul qualquer crédito.

“Temos seguido a cartilha, então o que nos diferencia de qualquer outro além do fato de quererem nos excluir só porque não estão aqui conosco?” questiona Warren, Pai da House of Milan.

Warren é uma “lenda”, uma figura reconhecida por sua supremacia em determinada categoria. Warren é conhecido pelos EUA, tendo vindo de Nova Jersey para a Flórida nos anos 90. Ele testemunhou o crescimento da cena de Miami e apoia a cidade quando ela “reconhece” suas próprias lendas. Nova York e aqueles no comando do Conselho Nacional, diz, nem sempre reconhecem as lendas das casas de Miami. “Precisamos seguir em frente, porque temos tantos talentos aqui, nas mais variadas categorias”, diz Warren. “Nossa comunidade como um todo pode sair daqui pro norte e botar pra foder. As pessoas que estão aqui já fizeram e provaram isso”.

Em suma, a briga entre norte e sul da cena de bailes norte-americana é só uma manifestação de uma de suas características, que as casas de Miami levam na esportiva.

“Eles querem a Meca seja Nova York e pronto” diz Temeka LanVin, supervisor da divisão Miami da LanVin. “Você é reconhecido em Nova York, [eles querem que] todo mundo que volte a Nova York ao invés de expandirem a coisa”.

As mídias sociais, disse LanVin, tornaram as coisas instantâneas demais para se prenderem a uma cidade. De fato, o imediatismo e o caráter aberto das redes sociais reacenderam uma chama na cena de bailes internacional, relembrando o espírito sobre o qual Madonna cantou há 25 anos.

“Foi excitante para mim”, relembra Xavier Mizrahi, Pai da House of Mizrahi, falando da primeira vez que foi a um baile. “Eu poderia ser alguém diferente de quem era no mundo normal. Era só escola e trabalho, mas aí eu chegava no baile e poderia ser X. Poderia ser eu. Consigo me identificar com todas essas pessoas e me tornar alguém que não era. Não importava o dinheiro. Valia a competição amigável e ver o que existia lá fora, ao invés de só observar o que estava no mundo cotidiano”.

Alexis Lord concorda que “o que importa é o fato de que quando você participa da cena dos bailes, você vive sua fantasia”.

Hoje, vogue, o ato, é maior que “Vogue”, chegando a atingir a cultura “hetero” mainstream quase sem ninguém perceber. A internet está cheia de vídeos de forasteiros fazendo passos que surgiram nesta cena. O último disco de J. Lo tem uma faixa chamada “Tens” é recheada do linguajar dos bailes e tem Jack Mizrahi participando como MC.

“Madonna não deu início ao vogue, ela pegou o vogue e o transformou em mainstream”, diz Power. “Madonna deu uma espiada neste mundo dos bailes, e é claro que é tudo fabuloso e ela é uma mulher de negócios, e claro que ela sabia que poderia lançar essa e que seria algo novo. Ela seria a garota-propaganda do vogue. Bem, ela não é; ela pegou algo que já fazíamos e apresentou como uma coisa nova pro mundo, mas que pra gente era normal”.

Não que estejam desrespeitando Madonna.

Na foto: Tameka LanVin, Power Infinity, Trigga Ebony, Danny Ninja, Yasser Ninja, Xavier Mizrahi, Lexx Miyake Mugler, Warren Milan, Prada Chanel, Alexis Lords, Sierra Mizrahi.

“Madonna quer dar um salve para os diferentes, e os gays, acreditem ou não, são diferentes”, diz Yasser Ninja, Pai da sede local da House of Ninja. “Temos tanto a oferecer ao mundo normal, mas só nos encaram como AIDS e doenças. Na real, temos tanta criatividade que pode beneficiar o mundo exterior, que vai além disso tudo”.

“Não teríamos como tê-lo feito”, diz Trigga Ebony, da House of Ebony. “Precisávamos de alguém aceito para colocar aquilo na TV para que as pessoas vissem”.

“Ninguém pode questioner se ela fez do jeito certo”, afirma Power. Tudo que ela fez pelos bailes teria sido certo, porque nos deus uma chance que não existiria de outra forma”.

Independentemente de quem deu chances, quem reconhece o dançarino ali, ou a que casa o dançarino pertence, o lance destes bailes é estar ali, ver aquilo e dar jeito em quem estiver no seu caminho.

“Quando eu era jovem, queria ter um lugar que poderia ir e me divertir como nossos jovens estão fazendo”, disse Alexis Lords. “Todos nós líderes aqui estamos dando aos nossos jovens um senso de pertencimento, de lugar para ir, e esperamos salvar mais vidas ao fazer isso”.

Poucas músicas podem se gabar de ter um legado como esse.

Kat Bein zoa geral em Miami e no Twitter.

Tradução: Thiago “Índio” Silva