Esta matéria foi originalmente publicada no Waypoint.
Enquanto estava de serviço no leste do Afeganistão, o tenente Jonathan Bratten voltava para sua barraca depois de longos turnos no quartel de seu batalhão e ficava olhando pra Hindu Kush, a cadeia de montanhas cobertas de neve de 800 quilômetros que marca a fronteira com o Paquistão.
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“Eu olhava pra lá e queria sair correndo pelas montanhas”, ele disse. “Mas aí eu pensava ‘Que péssima ideia! Estou no Afeganistão’.”
Então ele entrava em seu abrigo e dava play no Skyrim. Segundo ele, o jogo não era só uma maneira de relaxar, mas um jeito de recapturar uma sensação de controle sobre sua vida que ele não tinha quando estava no Afeganistão. Como muitos jovens soldados, o dia a dia de Bratten enquanto ele estava de serviço era severamente limitado: o que ele vestia, onde ia e como ele passava o tempo era baseado nas regras e circunstâncias do serviço militar.
Não é surpresa que videogames sejam tão populares com os militares quanto com os civis, mas parece que há algumas diferenças-chave no jeito como as duas populações abordam e experimentam os jogos. Temos contextos muito diferentes para jogos, particularmente videogames que abordam conflito e guerra. E agora, pesquisadores estão explorando a relação particular de militares, ativos e reservistas, com os videogames.
Comprei meu primeiro Xbox alguns meses depois de começar meu serviço na Coreia do Sul. Quando cheguei lá como “especialista em assuntos públicos” recém-formado em 2003, os EUA tinham acabado de entrar na Operação Liberdade Iraquiana. Sabiamente, o exército me mandou pro outro lado do mundo, onde fiquei acampado a 40 quilômetros ao sul da zona desmilitarizada da Coreia. Mesmo depois de quatro anos zoando muito na faculdade, com dois meses no país eu sabia que não conseguiria acompanhar o ritmo “normal” de bebedeira ali.
O Xbox, imaginei, ia me manter longe de encrencas. Joguei Shenmue II, Grand Theft Auto: Vice City e qualquer outra coisa que eu conseguisse arranjar nas lojinhas do quartel quando o dia do pagamento chegava. Era um lugar e um tempo estranho para videogames – e para mim, uma pessoa tentando se tornar um adulto funcional. O exército foi meu primeiro trabalho depois da faculdade, e também a primeira vez que comecei a pensar em videogame como algo que poderia ser usado como um refúgio, em vez de mero entretenimento.
A Dra. Jaime Banks, pesquisadora e professora na West Virginia University, tem estudado as razões para militares e veteranos jogarem videogames. Ela publicou recentemente um trabalho no jornal Game Studies com John Cole, seu colega de universidade, observando videogames como uma prática para lidar com a realidade de militares e reservistas, além de como os militares veem os avatares que os representam nos jogos.
“Tenho membros na família que são gamers e militares”, ela disse. “Ouvindo eles falarem sobre como jogavam videogames e os ver jogando… Comecei a ficar curiosa sobre como populações diferentes se conectam com esses jogos.”
O estudo de Banks ainda é bem pequeno. É um estudo exploratório que visa destacar uma questão que ela pretende examinar mais profundamente depois. Ela analisou respostas de uma pesquisa feita em um grupo de amostragem de 100 militares em serviço e na reserva.
Algumas coisas que ela descobriu no estudo não são tão estranhas assim: gamers militares e veteranos muitas vezes veem os avatares como versões idealizadas de si mesmo, encarnando um objetivo mítico para sua própria performance ou autoimagem. “Meu avatar é um ‘fodão’ das Forças Especiais, no sentido heroico e cinematográfico”, um dos participantes da pesquisa de Banks escreveu. “Isso me atrai de uma maneira primitiva, em ser um guerreiro definitivo.”
Mas seu estudo também descobriu tendências surpreendentes entre ex-soldados e ativos.
As perguntas iniciais eram sobre que jogos eram os mais importante para eles, e por quê. De cara, cerca da metade dos participantes disse que usava videogames especificamente para lidar com stress relacionado ao serviço. Foi só na última pergunta da pesquisa – “O avatar é importante para como você pensa em si mesmo, como membro ou veterano do exército dos EUA? Por quê?” – que os participantes começaram a falar sobre como se viam representados em seus jogos favoritos.
“As pessoas que disseram que os avatares eram importantes sugeriram que isso era incrivelmente poderoso na mente delas”, disse Banks.
É importante entender o que Banks quer dizer exatamente quando usa o termo “avatar”, que se tornou uma palavra meio brega para qualquer representação do usuário, geralmente online. Mas Banks explica que a palavra tem um significado específico na sua pesquisa, e também na discussão acadêmica atual sobre videogames e identidade.
“Um avatar é uma representação visual na tela do jogador, que pode se estender para sua identidade no espaço (mesmo que nem sempre), mas que definitivamente estende sua participação ativa no espaço”, ela disse. “Meu avatar é uma extensão da minha participação ativa.”
E entre os soldados e veteranos que Banks entrevistou, participação ativa acabou se mostrando um fator importantíssimo nos videogames.
Um participante disse que, depois de várias dispensas médicas, ele não se considerava um veterano legítimo. Ele sentia que nem colegas veteranos, nem civis conseguiam entender a frustração de querer servir desesperadamente e não poder, e que o avatar de soldado em seu jogo preferido era importante para ele porque “é o único jeito com que consigo trabalhar esse sentimento”.
Outro membro da Marinha que foi dispensado depois de ser ferido disse que sempre jogava como healer agora. “Jogar com personagens que curam nos jogos me permite ser quem eu era antes de ser ferido”, ele escreveu. “Jogar com ele me faz sentir útil de novo.”
“Estando no exército, somos forçados a ‘suspender a descrença’ o tempo todo. Nos dizem que é assim que as coisas são, mas as coisas só são assim no exército.” – Tenente Jonathan Bratten
Mas esses gamers não estão trabalhando suas frustrações e sensação de perda em videogames de temática militar como Battlefield ou Call of Duty: Infinite Warfare. Banks descobriu que sua pequena amostra de soldados e veteranos parecia estatisticamente mais voltada para suspensão de descrença em jogos, especialmente em se tratando de seus avatares, que gamers civis.
Banks perguntou aos participantes quais são seus jogos favoritos. Jogos de fantasia eram a temática mais popular para 40%, os jogos de temática militar respondiam por 23%. MMOs representavam 40% também, seguidos por jogos de tiro com 30%. Mesmo sendo difícil comparar a popularidade de gêneros de jogos, considerando consoles diferentes, cópias diversas e jogos grátis para PC, fica claro que jogos de tiro militares (principalmente Call of Duty) estão no topo da lista de mais vendidos todo ano no Reino Unido e EUA.
(Jogos grátis disponíveis no Steam e outras plataformas também são incrivelmente populares, mas não apareceram significativamente no estudo de Banks com militares.)
A ideia de que os hábitos de videogame dos soldados é diferente dos civis parece fazer sentido para quem já serviu.
“Faz sentido mesmo”, Bratten disse quando contei a ele sobre as descobertas de Banks. “Quer dizer, estando no exército, somos meio que forçados a ‘suspender a descrença’ o tempo todo. Nos dizem que é assim que as coisas são, mas as coisas só são assim no exército.”
É verdade – estar no exército é profundamente estranho, às vezes deliberadamente. Você tem que aprender novos comportamentos, costumes até uma nova maneira de falar. Enquanto assista um exercício de estratégia em Fort Knox, lembro de ouvir um coronel explicando que o plano era “cansar o inimigo até um status de combate ineficaz”.
Matthew Watts é um especialista em TI e passou dez anos na Marinha. Ele se interessou por MMOs durante seu tempo no mar. Ele inicialmente recusou a ideia de jogar Everquest quando um colega fazia planos de visitar uma lan house quando eles estivessem no porto de Singapura em 2001, um pouco antes do 11 de Setembro.
Mas ele descobriu que seus gostos tinham mudado desde que ele tinha se tornado um marinheiro.
“Antes de me alistar, eu gostava muito de JAG“, ele diz, um pouco envergonhado. “Lembra daquela série? Era péssima. Eu não aguentava mais assistir aquilo depois que entrei pra Marinha.”
Eu sei exatamente o que ele quer dizer. Nunca assisti JAG, mas algo em programas, filmes e videogames militares, que eu adorava antes, se tornou irritante e diferente quando entrei pro exército. Falcão Negro em Perigo se tornou assustador de uma maneira desconfortável, e me vi inconscientemente apontando erros nos uniformes e inconsistências de procedimentos em toda cena com exército que assistia. Não era a violência dos jogos de tiro ou filmes militares que me incomodava, mas a dissonância perturbadora entre o que eu estava experimentando no meu dia a dia de soldado e o que eu via nas telas. Assisti a adaptação de Mel Gibson pro livro de Hal Moore sobre o Vietnã, Fomos Heróis, antes de me alistar e adorei. Um sargento passou o mesmo filme para nós em Georgia na semana da formatura, meses depois, e eu não conseguia nem olhar pra tela.
Muitas das nossas histórias heróicas hoje envolvem exército e soldados, mas de algum jeito o processo de transformar essas histórias em histórias épicas culturais as deixam estranhas para soldados de verdade. A boa dose de ridículo que Hollywood e os jogos frequentemente injetam em suas histórias pode ser o culpado às vezes, mas histórias que parecem muito com a realidade também podem ser desconfortáveis para soldados, especialmente para aqueles com memórias traumáticas associadas ao serviço. No fim das contas, você precisa fazer um filme ou jogo que entretenha o público, em vez de simplesmente recriar exatamente a realidade da vida militar.
Watts acabou comprando um PlayStation 2 (“Meu primeiro console de serviço”, ele chamou) e Final Fantasy X era, para ele, o primeiro jogo obrigatório do console. Modificadores ofereciam telas LCD para Xbox e PlayStations 2 na época, os tornando opções viáveis para tropas mobilizadas. De repente, você podia jogar videogames de console na sua barraca, e Final Fantasy era a combinação ideal de gráficos chamativos e cenário o mais longe possível da vida militar.
Quando Final Fantasy XI saiu, a resistência de Watts a MMOs tinha evaporado, e ele e alguns de seus colegas de navio mergulharam na história. Ele disse que o jogo se tornou um jeito de criar laços com os colegas marinheiros e se manter em contato quando seus caminhos inevitavelmente se separaram.
“Ainda uso videogames como um meio para isso”, diz Watts. “Quer dizer, jogo MMOs com pessoas [da Marinha] que não vejo há mais de uma década.” Agora eles já passaram para Final Fantasy XIV: A Realm Reborn.
Vendo o estudo de Banks anos depois que saí do exército, fiquei tocado pelas respostas de soldados que relataram problemas físicos e psicológicos severos. Lesões relacionadas ao serviço militar e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), ela descobriu, parecem ligar fortemente o escapismo e trabalho de trauma como motivações para jogar videogame.
“O que achei muito interessante foi como eles (pessoas com problemas crônicos) foram os únicos a relatar altos níveis de fantasia e desenvolvimento de habilidades como motivação”, disse Banks. “Meu cérebro interpretativo vê isso como uma possível sugestão de que, quando você tem esses problemas mais pervasivos no dia a dia, não só você quer escapar dessas coisas, mas também melhorar a si mesmo de outras maneiras.”
Mesmo na falta de trauma físico ou mental, parece haver algo único nos gamers do exército. Idade, gênero, tempo de serviço e ramo não parecem importar nos resultados de Banks, o que ela diz que pode significar que tem algo em ter estado no exército que afeta o modo de consumo e as motivações pros gamers.
Watts e Bratten usavam os videogames para tomar de volta uma pequena medida de controle durante o serviço, períodos quando controle era algo que eles tinham pouco por meses de cada vez. Servindo num navio ou mobilizado num campo aéreo do Afeganistão, não há um jeito real de conseguir um “equilíbrio entre vida e trabalho”, porque sua vida é gasta no trabalho. Sob essas circunstâncias, videogames podem funcionar como espaços sociais não ligados ao serviço para os soldados, um lugar para se encontrar que não seja O Trabalho – onde eles podem expressar sua agência fora da cadeia onipresente de comando.
“Quem precisa de escapismo mais que as pessoas no serviço militar?”, disse Watts. “ Final Fantasy se tornou uma coisa importante entre nós. Às vezes, quando estávamos de serviço e não podíamos jogar, nos reuníamos e falávamos sobre nossas explorações no jogo. Era interessante, e realmente sinto falta disso.”
O tenente Bratten ainda está no exército, agora trabalhando como historiador pra guarda nacional do Maine. Como todos os guardas, ele frequenta exercícios todo mês, e inclusive tinha acabado de voltar de um quando falamos por telefone. Ele me disse que durante um exercício de campo, um dos soldados se sentou no banco de trás do Humvee deles enquanto eles esperavam pelas próximas instruções, jogando Fallout 4 até sua bateria finalmente acabar.
Nunca fui mandado para o Afeganistão ou Iraque, como Bratten, ou para o mar, como Watts. Fiz meu ano na Coreia e passei o resto do meu tempo de serviço escrevendo colunas esportivas de escola no Kentucky. Eu morava nos quartéis de Fort Knox quando o PlayStation 3 e o Xbox 360 foram lançados, e os maiores jogos naquela época eram God of War II e Gears of War. Os dois jogos tinham “guerra” no título e se baseavam pesadamente em raiva e violência, mas não poderiam estar mais longe da guerra real de que estávamos conscientes todas as horas do dia.
Há mais de um milhão de pessoas no exército dos EUA, e apesar de ainda existir questões sobre quem serviu onde, essa é uma das instituições mais diversas do país. Há uma variedade de experiências no exército, mesmo dentro de ramos de serviço individuais, então é perigoso fazer generalizações sobre a “experiência militar”. A vida para soldados em Quantico é muito diferente da vida de um piloto mobilizado em Bagram.
As descobertas de Banks sugerem que soldados e reservistas tendem a abordar os videogames com um nível mais alto de escapismo que o público em geral, e tendem a se identificar profundamente com suas representações na tela quando jogam. E as histórias que ela coletou de seus participantes mostram que muitos militares encontram fuga e identidade em jogos com temas de fantasia, especialmente MMOs. Eles tiram menos dos retratos de militares encontrados nos jogos, mesmo que esses retratos sejam onipresentes e geralmente vistos como “positivos”, tanto quanto o retrato de soldados como máquinas mortíferas pode ser positivo.
Mas esses retratos podem ser alienantes para soldados que não se veem como John Rambo, ou que encontram um desconforto no retrato da vida militar que temos nas telas. Quando consideramos a divisão entre civil e militar, talvez fosse uma boa olhar para os videogames que se baseiam em conflito militar, e ainda parecem ter tão pouco a dizer para pessoas que lutam nessas guerras.
Tradução: Marina Schnoor.