No sábado agora, dia 14 de maio, um tapete humano cobriu a Av. Paulista, mais ou menos do Vão Livre do MASP até a esquina com a Augusta. Era por volta das 17 horas. Até aí, nenhuma novidade, ainda mais em tempos recentes de tantas manifestações monocromáticas (amarela num finde, vermelha no outro), mas a diferença desta vez não estava apenas nas multicoloridas faces e camisetas do povo, mas no fato deles sentarem na via e por uns vinte minutos e realizarem o maior fumato da história das Marchas da Maconha no Brasil. Segundo os organizadores 42 mil pessoas saíram de diferentes bairros, cidades e até estados para pedir o fim da guerra às drogas e reclamar o seu direito de utilizar a cannabis, seja para fins medicinais, religiosos ou recreativos.
Mesmo com este aparente sucesso, ultimamente os maconheiros do Brasil não têm muito o que celebrar. Se por um lado a Marcha vem crescendo exponencialmente no país desde 2007, dentro da era PT o assunto foi totalmente ignorado pelo Poder Executivo desde a reforma na Lei de Drogas de 2006. Agora, a nomeação do deputado Osmar Terra (PMDB) pro Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário dá aos militantes da causa motivos para temer
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Ele é autor de uma lei, que tramita no Senado, que segundo os ativistas prevê um retrocesso na discussão sobre as drogas. O projeto da Lei Antidrogas n.º 7663/2010, criado pelo ministro, autoriza que o usuário seja internado para tratamento sem que ele, ou o juiz, autorize tal ação. Em poucas palavras, Osmar Terra defende a internação compulsória. Ele a justifica da seguinte maneira: “Isso permite antecipar o tratamento.”
Em 2014, o atual Ministro do Desenvolvimento Social e Agrário publicou em sua coluna um texto em que não reconhece os efeitos medicinais do canabidiol. O ministro afirmou na época que “o argumento central, mas dissimulado, é o de que existe uma molécula na droga, com efeito medicinal, e que por isso a droga é remédio e deveria ser liberada. Nada mais falso”. Bom, parece que Osmar Terra ignora as evoluções nas pesquisas acerca do CBD. Talvez ele não tenha visto Ilegal, vídeo de Tarso Araujo e Raphael Erichsen sobre a luta de uma mãe com uma filha de 5 anos epilética ou não olhe para as movimentações de outros pais com problemas parecidos.
Júlio Delmanto, do Coletivo Desentorpecendo a Razão, um dos grupos que encabeça a organização do evento em São Paulo explica que “com a lei de 2006, se melhorou para o usuário, piorou muito para o tráfico, aumentando muito o encarceramento. Isso fez parte da negociação que o PT fez, entre isso e a questão das comunidades terapêuticas, realmente daria para dizer que se no PT a gente tinha chance zero de mudar alguma coisa, neste do Temer as chances são menos cem, sei lá, menos ainda com essas figuras que estão colocadas aí. Agora acho que a postura nossa da Marcha, mesmo que ela seja muito plural, sempre teve esse entendimento que a mudança não vai vir dos políticos, não vai vir do Estado. Eles não fizeram nada nos últimos dez anos que teve marcha, e a marcha já mudou muito, a situação de quem fuma já mudou, a discussão sobre o uso medicinal mudou, então acho que o canal vai continuar sendo por aí. Se o Temer cair e entrar outro, os nomes que são colocados, Marina, Aécio, qualquer um desses, acho que nossa postura tem de ser a mesma, fazer com que por baixo seja tão forte que qualquer um deles vai ser obrigado a aceitar”.
Júlio acredita que o fato da marcha crescer ano a ano decorre do fato do debate geral ter crescido no Brasil e no mundo, com maior posicionamento da mídia e países vizinhos mudando suas leis, mais especificamente ele aponta o trabalho feito pela organização. “Desde que a gente saiu do Ibirapuera, a gente tem tentado ampliar a Marcha, desde quem constrói à quem frequenta. No início era muito movimento estudantil, galera universitária e tal, e a gente tentou expandir isso, indo pra junto de outros movimentos, ou indo para a quebrada, para a periferia. Neste ano a gente fez algumas atividades nas quatro zonas da cidade, isso ajuda bastante na divulgação e também ajuda essas pessoas a participarem mais e se sentirem mais membras da parada.” Júlio também aponta ao fato que com o debate em pauta e o fortalecimento do movimento, ficou muito mais relax fumar na Marcha de forma explícita: “a galera quer isso também, uma manifestação para fumar e celebrar o rolê”.
É fato que entre pelo menos três projetos de reforma de lei engavetados no Congresso e um Poder Executivo mudo, os únicos avanços recentes na reforma da política de drogas vieram de articulações na sociedade civil, como as recentes conquistas no acesso ao uso medicinal, ainda restrito a algumas poucas doenças. Ainda que a espessa nuvem de fumaça que seguia a Marcha não esconder que a maioria dos manifestantes ali eram usuários, é inegável que a proibição da maconha afeta a todos, do morador de favelas e periferias que está sempre sob o risco de ser encontrado por uma bala perdida, como muitos portadores de doenças aonde o único remédio é a maconha.
Carregando uma faixa que dizia “A regulamentação não garante o acesso, regulamentação do cultivo já”, pais e mães de crianças que fazem o uso medicinal da maconha lembram que os altos custos da importação inviabilizam o acesso a muitas famílias, além do fato de que o óleo que é comercializado em massa não atende a todos os casos, e se o governo permitir o auto cultivo e o desenvolvimento de pesquisas no Brasil, muitas outras cepas de maconha poderão ser exploradas, expandindo a abrangência de pessoas que podem se beneficiar das propriedades terapêuticas da cannabis.
“Minha filha usa o óleo artesanal que é cultivado aqui no Brasil e produzido aqui no Brasil por uma rede de apoio secreta. Ela usa há dois anos e tem muitos benefícios mesmo, e é um acesso, o único acesso, que garante de uma forma democrática com igualdade. O cultivo é o que você permite testar outras cepas, tem crianças que as vezes nem tem resultados com o importado, acontece que tem pacientes que não tem resultados com uma determinada cepa de cannabis, mas através do cultivo ele pode ir testando outras cepas até obter o resultado. A que a minha filha usa, que está dando ótimos resultados, não significa que vai dar resultados em outra criança que tem a mesma síndrome que ela”, explica Cidinha, associada da ABRACANNABIS, mãe de uma menina portadora da Síndrome de Dravet. Ela completa: “Eu sou a favor de todos os tipos de acesso, o acesso com igualdade, quem quiser importar que importe, quem quiser cultivar que cultive, mas fora isso cobramos que haja pesquisas junto com universidades, que tenhamos um respaldo, que ofereçam cursos para os médicos que as vezes nem querem prescrever por conta de falta de conhecimento. Precisamos fazer campanhas informativas para que combater esse preconceito, pois existe preconceito tanto da população como dos médicos também, e esse preconceito é justamente a falta de informação”.
O designer Gilberto Castro, que há alguns anos controla seu quadro avançado de esclerose múltipla com o uso da maconha contesta: “O que eu fico pensando é quando é que vão tirar essas pessoas daí, porque essa galera que tá ai em cima não é possível, não tem nem mulher lá em nenhum ministério. O Osmar Terra ele lucra com o encarceramento de pessoas, ele tem as clínicas dele, ele não pode estar na jogada, as pessoas que ganham dinheiro com a proibição não podem estar na jogada. Tão com helicóptero de cocaína e proibindo a maconha, que nunca matou ninguém”.
Pedi ao Dr. Henrique Carneiro, professor de história da USP, autor de vários trabalhos a respeito da história da alimentação, das bebidas e das drogas e um dos maiores crânios a discutir o proibicionismo no Brasil uma análise de professor de história a respeito das expectativas quanto ao próximo governo na questão. “Eu acho que a direita brasileira tem uma característica, que é pior do que vários outros países do mundo, que é um traço muito ideologicamente atrasado de vínculo ao puritanismo religioso, as correntes evangélicas. Isso enfim ocorre também nos EUA, a gente tinha lá o Ted Cruz concorrendo ao Partido Republicano, mas aqui é pior, não é à toa que o Temer foi logo em seguida fazer uma oração com os evangélicos e nomeou não só um pastor como o Osmar Terra, que é o grande lobbysta anti-proibição no Brasil.
Então acho que aqui temos uma direita que é pior que a direita liberal clássica que reconhece como uma questão básica das liberdades fundamentais, não haver nenhuma restrição do Estado a nenhum tipo de produto em que haja demanda na sociedade. Isso é um fundamento liberal, inclusive do funcionamento de uma sociedade na qual se supõe que o indivíduo é dono de si próprio, ele não pode ser punido, muito menos criminalmente, por algo que diz respeito a sua autonomia, ao seu corpo, a sua pauta de vida.” Carneiro, que já posicionou-se abertamente de forma muito crítica ao governo Dilma e ao PT, espera que haja confronto ao novo governo. “Espero que a gente consiga com o movimento social não apenas confrontar esse governo, mas eventualmente até derrubá-lo pois eu acho que ele é ilegítimo. Não tenho expectativa que ele termine o mandato de dois anos, acho que a exigência de uma eleição direta agora vai ser tornar cada vez mais um movimento social que pode levar a derrubada do governo Temer.”
Dr. Henrique. Foto: Matias Maxx
Com a novela do impeachment chegando perto de um desfecho, usuários e militantes pela regulamentação da maconha esperam que o STF retome o julgamento do RE635659 a respeito da descriminalização das drogas, estacionado desde setembro no gabinete do Ministro Teori Zavaski, que pediu vistas. Carneiro explica que “pelo menos o STF teve até agora uma posição que é correspondente ao que se espera de um consenso jurídico internacional com um respeito mínimo a essa esfera da autonomia de si, que é uma prerrogativa na qual não pode existir nenhum tipo de conduta ilícita porque o indivíduo é o dono de si próprio, então não pode ter crime sem vítima, não pode ter autolesão do ponto de vista jurídico. Nesse sentido o próprio Gilmar Mendes, que é um reacionário em vários aspectos, nessa votação ele teve um voto melhor do que os demais, do que o próprio Barroso e o Fachin, que estavam falando só da maconha.
Foto: Matias Maxx
O Gilmar Mendes lembrou que são todas as substâncias que tem de ser descriminalizadas, então eu acho que o STF pode sim descriminalizar. Isso não acaba com a guerra às drogas, porque uma coisa é considerar que não é crime o consumo individual, e outra é criar condições reais de haver um fornecimento, um cultivo, até mesmo uma indústria, que seja ligada a essa demanda da sociedade. Nesse sentido, por incrível que pareça os EUA são o país aonde mais está se avançando para o sentido de uma legalização que corresponda pelo menos à equalização da maconha com outros produtos da ingestão humana, que necessita que o estado fiscalize, garanta a correspondência do que é prometido numa embalagem, e que estabeleça o acesso de adultos de forma totalmente normal para esse produto que tem uma enorme demanda social. O problema lá é o regime de propriedade que parece que está criando uma série de mecanismos que podem levar ao crescimento de grupos mais oligopolisticos, mas ainda existe uma proibição de que o produtor seja comerciante, isso também quebra a cadeia de uma possibilidade de monopólio mais ampla”.
Quando o movimento que veio a se transformar na Marcha da Maconha chegou ao Brasil em 2002, os exemplos que tínhamos de legislação vinham de realidades distantes como Holanda e Espanha. Hoje temos reformas não só nos EUA, como na Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile, todos com uma realidade social e política mais semelhante a nossa. A des-demonização dos usos da maconha parecem cada vez mais próximos a nível global, o Brasil, trocando um poder executivo que era mudo sobre o assunto, por um abertamente contra, mantém sua liderança histórica na vanguarda do atraso. Fomos os últimos a abolir a escravidão, provavelmente seremos os últimos a terminar com a guerra às drogas.