A falta de estrutura e de investimentos está desvirtuando a principal atribuição da Policia Civil no estado de São Paulo, que é a investigação e posterior esclarecimento de crimes praticados por quadrilhas e por marginais especializados. Ao invés de investir nos tão falados, em discursos, “trabalhos de inteligência”, o governo estadual prioriza seus esforços em “manter a ordem”, atrofiando paulatinamente as ações de delegados e investigadores na elucidação de delitos mais complexos.
A VICE teve acesso a um documento, atribuído a 2ª Delegacia Seccional de Campinas (interior de SP), que cobra produtividade imediata de investigadores e delegados. O texto teria sido enviado a todas as unidades do município, solicitando “mais empenho” de seus subordinados. “Tem sido solicitado empenho a todos, o que parece não está encontrando eco por parte de algumas unidades, principalmente dos Setores de Investigação”, diz trecho da mensagem, creditada ao delegado seccional da cidade, Jose Henrique Ventura. O texto ainda “alerta” aos setores “menos produtivos” que eles irão cobrir as escalas de plantão, férias e licenças de policiais – soando como uma punição ao não cumprimento de “metas”.
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Cobranças por produtividade também foram feitas a policiais da 4º DP da Consolação, na região central de São Paulo. No fim de fevereiro, áudio atribuído ao delegado titular Júlio Cesar Geraldo pede para que os investigadores da delegacia realizem dois flagrantes por equipe. Do contrário, serão punidos com trabalhos no fim de semana. “Senhores, boa tarde, até o presente momento não apareceu nenhum flagrante aqui no 4º DP da operação DECAP (Departamento de Polícia Judiciária da Capital). Se não tivermos dois flagrantes por equipe estão todos escalados para as operações de sábado e domingo. Ok? Então, por gentileza, vamos nos empenhar um pouquinho”, diz o delegado na gravação.
A presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do estado de São Paulo (Sindpesp), Raquel Kobashi Gallinati afirmou que a cobrança feita em Campinas não é um caso isolado. Ela atribui a situação à política “equivocada” do governo Geraldo Alckmin (PSDB), “que incentiva a busca de uma produção em prisões, a fim de dar maior visibilidade e ostensividade às ações policiais, desvirtuando-se a Policia Civil de sua atribuição constitucional de polícia judiciária, cuja vocação é a investigação criminal. Assim, enquanto a polícia investigativa é obrigada a fazer as vezes da polícia ostensiva, desvia-se o efetivo fazendo com que os crimes não sejam investigados”.
Caem prisões e inquéritos instaurados
A VICE consultou as estatísticas da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) referentes aos meses de janeiro de 2016 a janeiro de 2017, e também do primeiro mês de 2017 aos 31 primeiros dias de 2018, data da atualização mais recente da pasta até a conclusão desta reportagem. Segundo os dados, referentes a todo o estado de São Paulo, as prisões em flagrante caíram de 149.839 para 144.647 (-3,4%) e as apreensões de menores infratores seguiram a queda, indo de 4.815 para 4.703(-2,3%). Estes dados resultam das ações tanto de policiais civis como militares, pois, a SSP não especifica a produtividade, em seu site, de cada uma das instituições separadamente neste quesito. O total de inquéritos instaurados – ou seja, de crimes que deverão em tese ser investigados pela Policia Civil – também diminuiu de 438.587 para 427.233 (-2,5%).
Apesar da queda na quantidade de inquéritos instaurados, eles são humanamente impossíveis de serem esclarecidos em sua totalidade, por conta do diminuto efetivo de investigadores que compõem a PC no estado. Segundo o presidente do Sindicato dos Investigadores de Polícia do Estado de São Paulo (Sidpesp), João Rebouças, pouco mais de oito mil agentes estão atualmente na ativa em todo o estado, dado referente a 2013, data da última atualização, segundo o policial.
Se dividirmos os 427.233 crimes que precisam ser investigados em São Paulo pelo efetivo informado por Rebouças, daria uma média de quase 54 casos para cada agente tentar esclarecer. “O atual déficit de investigadores é de 53% e este número vai aumentar, pois até abril deste ano 1,8 mil investigadores estarão aposentados”, informou o presidente do sindicato, ainda acrescentando que, em média, somente 2% dos inquéritos instaurados em São Paulo são esclarecidos. A SSP também foi questionada sobre a quantidade de investigadores operantes no estado, além do número de crimes esclarecidos, mas não se manifestou até a conclusão desta reportagem.
“O crime não derruba governos”
O analista criminal Guaracy Mingardi explicou que as detenções em flagrante registradas nas delegacias resultam em um “volume” estatístico – proporcionando a sensação de produtividade, que não necessariamente ajuda a combater a criminalidade. Esta categoria de prisão é majoritariamente feita pela PM, que mantém policiais nas ruas exatamente para prevenir crimes e, caso eles ocorram, garantir a prisão imediata, em flagrante, dos criminosos. “Se há uma dupla de ladrões assaltando em um semáforo, por exemplo, uma viatura da PM é deslocada para o local. Com isso, os bandidos deixam de praticar crimes naquele endereço (por causa da presença policial). Porém (caso não forem presos), eles ‘migram’ para outro lugar, onde continuarão cometendo crimes”, exemplificou o especialista.
Mingardi afirmou ainda que a Policia Civil está sendo sucateada “há muitos anos” no estado de São Paulo. O motivo seria as prioridades do governo estadual, que se interessa mais por “questões de ordem” do que efetivamente pelo combate ao crime. Por conta disso, os investimentos estariam sendo mais direcionados à Polícia Militar, e isso há uns bons anos. Segundo o Observatório de Segurança Pública, entre 2001 e 2005, por exemplo, foram investidos R$ 285,7 milhões na Policia Militar, contra R$ 8,5 milhões destinados à Policia Civil.
Outra discrepância de investimentos ocorreu com a aquisição de veículos. Segundo o governo do estado, desde 2011, foram gastos R$ 241,1 milhões na compra de 3.641 viaturas para reforçar a frota da Polícia Civil. Os dados foram divulgados no fim de novembro de 2017. Já para a PM, entre 2011 e julho de 2017, o governo do Geraldo Alckmin comprou 10.355 viaturas, desembolsando R$ 522 milhões, pouco mais que o dobro destinado à outra instituição policial.
“Os governos, não só em São Paulo, estão mais preocupados com a ‘ordem’, porque o crime não derruba governos. Por isso, para os políticos, é mais importante que a PM fique na rua, com as viaturas rodando para cá e para lá, mesmo que isso não adiante nada. Isso dá a impressão de que se está investindo (em Segurança), é uma vitrine. Porém, o crime ‘profissional’ só pode ser combatido mediante investigações”, afirmou o analista Guaracy Mingardi. Acrescentou que todas as delegacias, incluindo as de bairro, deveriam realizar investigações, porém, a atividade está restrita, por conta da falta de estrutura e investimentos, aos departamentos e distritos especializados.
“O PSDB fodeu com a polícia nos últimos anos”
Um investigador da Polícia Civil, que atua na Grande São Paulo e pediu para não ter o nome publicado temendo represálias, também falou à reportagem sobre a falência da instituição. “Enquanto estamos nestas condições, as nossas investigações ficam mais difíceis, entendeu? E já que investigar fica mais difícil, quem pilota a polícia muitas vezes entende que, quando a gente não está investigando, a gente tem que apresentar algum resultado. E o resultado que é mais visível, para ser usado politicamente, é o flagrante”.
O policial falou sobre a dificuldade de se realizar investigações atualmente. “O volume de trabalho é muito grande. A gente não dá conta de investigar tudo que é (registrado em) Boletim de Ocorrência. Estou falando isso, pois quero muito que essa situação mude. Converso muito com meus colegas e estamos conscientes sobre os problemas da instituição. Queremos fazer nosso trabalho direito, mas infelizmente quem manda na polícia – estou pensando especialmente na Secretaria (Estadual de Segurança Pública) e no governador (Geraldo Alckmin, PSDB) – acham que isso é uma brincadeira. Não estou levantando bandeira ideológica, mas o fato é que o PSDB fodeu a polícia nos últimos anos (Alckmin está em seu quarto mandato em frente ao governo estadual)”, desabafou.
O investigador acrescentou ainda que os policiais são usados para “vender a ideia” de que o estado funciona. “O estado de São Paulo não funciona, de verdade não funciona, eu estou dentro dele e posso falar”. Ele defende ainda que os flagrantes registrados com o intuito de maquiar a violência, geralmente, não mantêm criminosos presos – o que ajuda para que isso ocorra são as investigações, precarizadas por conta da falta de estrutura oferecida pelo estado à instituição.