Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .
No final dos anos 70, a década na qual os sonhos de revolução que impulsionaram uma geração morreram, James Baldwin escreveu sobre uma ideia para um livro que ele nunca viria a completar. O livro, intitulado Remember This House, seria um relato das vidas e assassinatos de três de seus amigos — Martin Luther King Jr., Medgar Evers e Malcolm X —, os mártires mais reverenciados do movimento pelos direitos civis nos EUA. Baldwin escreveu apenas 30 páginas do livro proposto antes de morrer em decorrência da AIDS em 1987. O diretor haitiano Raoul Peck, cujos trabalhos anteriores abordaram o assassinato político de um estadista congolês ( Lumumba de 2000) e o genocídio em Ruanda ( Abril Sangrento 2005), retoma a busca de James Baldwin em seu novo documentário Eu Não Sou Seu Negro.
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Indicado ao Oscar de Melhor Documentário, o filme de 95 minutos repassa as palavras de Baldwin por meio da narração de Samuel L. Jackson. O longa se aprofunda no cânone do autor para erguer, em termos cinematográficos, uma analogia audiovisual do livro nunca terminado. Com base nas críticas de cinema do final de carreira da Baldwin, coletados em The Devil Finds Work tanto quanto no manuscrito Remember This House, Eu Não Sou Seu Negro é um mergulho impressionante na psique de Baldwin e nos males ainda não resolvidos da supremacia branca e fragilidade branca — coisas que os liberais norte-americanos chamavam, nos dias de Baldwin, de “O Problema Negro”. Peck combina material de arquivo de filmes populares, as aparições do autor na televisão, e fotografias de Baldwin com seus muitos contemporâneos apresentados no filme. Essas sequências são justapostas com filmagens de turbulências raciais mais recentes, sugerindo um contínuo entre os eventos e eras. Diretor dessa exploração poderosa da relação irracional dos EUA com raça, Peck recentemente se encontrou com a VICE para falar sobre seu novo filme e a cena política global contemporânea.
VICE: Quando você ouviu falar em Remember This House?
Raoul Peck: Ah, muito tarde. Eu já tinha acesso aos direitos. Me deram tudo. Eu podia usar tudo o que eu queria. Você pede uma opção, e geralmente eles te dão um ano com opção de renovar uma, duas ou no máximo três vezes. E eles esperam que você faça o filme e compre os direitos. Eu disse a eles claramente que não sabia o que o filme seria. Eu estava experimentando [algo] entre narrativa e documentário. Passei tempo com diferentes autores tentando encontrar o eixo certo, a história certa.
Até que, quatro anos depois, decidi que o único jeito de abordar isso era ser muito pessoal. Fazer um documentário e me dar toda a liberdade que eu pudesse — política e artisticamente, em todos os níveis, em termos de conteúdo e forma. E aí a questão era: como encontrar o ponto de entrada certo? Como eu conto o filme de um jeito muito original, de um jeito criativo onde eu me sinta inspirado. Isso veio na forma daquelas anotações. Lembro que um dia as recebi de Gloria Karefa-Smart, a irmã mais nova de Baldwin. E foi isso. Essa era a ideia. O livro que nem sequer existia, e então eu disse a mim mesmo: “Isso está em toda parte, em toda a obra dele”. Então meu trabalho era encontrar e reconstruir essa obra de uma maneira criativa.
E isso me deu a desculpa, além daquelas anotações, de tirar tudo que eu tinha de Baldwin que amei minha vida inteira, todos os livros que eu tinha sublinhado, todos os temas. Isso me deu não só a liberdade, mas acesso a tudo porque pude conectar toda a obra.
É interessante você falar dessas conexões com os outros trabalhos, com a obra dele. Eu estava pensando em The Devil Finds Work. A perspectiva histórica em que ele engajou o cinema — é marcante.
The Devil Finds Work é basicamente uma desconstrução de como Hollywood — como a mídia, como a literatura — basicamente inventou o “nigger”. Está tudo lá. E essa invenção está ligada ao poder. Ligada à economia. Ligada à história e você tem tudo isso. Então reconstruindo esse livro é, ao mesmo tempo, colocar Baldwin em todas essas diferentes latitudes e níveis, e fazer uma história sobre isso. E uma história que seria a essência de todo Baldwin.
“A história não é o passado. Essa história é o presente.” – Raoul Peck
Uma coisa que o filme faz maravilhosamente é justapor filmagens das lutas negras contemporâneas e o trabalho dos movimentos passados, com o mal da vida contemporânea como um todo. Tem uma montagem marcante no final de reality shows, talk shows e as palavras de Baldwin sobre como estamos criando essa sociedade falsa, o que parece prever o futuro naquele momento.
A indústria lida com isso do mesmo jeito que lida com narcóticos. Mas isso se conecta com aquelas preocupações do passado. Se conecta com aquela sociedade que criamos para evitar a verdade do tumulto dos anos 60 e da vida daqueles três homens, e o relacionamento de Baldwin com eles naquela era. E história não é o passado. Essa história é o presente. Essa é uma declaração importante. Isso significa que você diz que você é sua história.
As coisas novas que você filmou em Nova York e em vários lugares surgiram de como você estava respondendo ao material de arquivo?
A ideia em si já estava lá, e foi se aprimorando no caminho. Há um caso onde as pessoas estavam assistindo e disseram “Bom, você tem que me dar uma data aqui, então eu posso entender, posso acompanhar”. E eu disse “Não, quero seguir em frente e voltar sem que você me faça essa pergunta. Enquanto você me fizer essa pergunta, a edição não está como deveria ser”.
Tínhamos uma ideia muito clara do que estávamos procurando. Minha chefe de arquivo era francesa, mas conhecia os EUA muito bem. Então ela buscava nos arquivos, na Biblioteca do Congresso, em todas essas companhias, mas também fazíamos isso na Alemanha. Procurávamos na Itália. Encontramos filmagens sobre os EUA que só existiam na televisão francesa. E a ideia também era encontrar imagens que as pessoas não conhecessem. A era dos direitos civis — você conhece essas imagens. Eu não queria usar essas imagens em preto e branco que todo mundo já conhece. Porque as pessoas não assistem mais isso. Elas vêm isso de cara e dizem “Ah, sim” e seguem em frente.
“Seja lá o que a repressão era 40 anos atrás, é o mesmo sistema, apenas usando ferramentas melhores.”
Vendo, em algumas tomadas, as imagens se transformarem de preto e branco para colorido, sugere essa relação entre o passado e o presente. A continuidade da história — nossa história está aqui e agora. Hoje.
É por isso que mostro todas essas imagens, porque o tema é criar imagens e onde você não sabe o que é verdade e o que não é, e onde a cor é um sinal de modernidade e preto e branco é velho. Então mostro as imagens de Ferguson em preto e branco, e assim, consciente e inconscientemente, você reage a isso.
Seja lá o que era a repressão 40 anos atrás, é o mesmo sistema, apenas usando ferramentas melhores. Mas é exatamente a mesma coisa. O que isso te mostra, espero, que você precisa encontrar a resposta apropriada. O movimento pelos direitos civis encontrou uma maneira de se organizar, e eles eram sólidos. Hoje temos movimentos, temos raiva, temos reações espontâneas. Mas somos sólidos o suficiente para trazer uma resposta para o que estamos passando hoje? O filme questiona isso também.
Qual a sua opinião?
O que eu acho — que não é tanto o que penso — são os fatos, os fatos que: eles mataram a maioria da liderança [do movimento de direitos civis], ou os compraram. Quando digo compraram, eles mudaram de classe, eles se tornaram ricos. Ou seus descendentes se tornaram ricos, ou se tornaram nobreza. [Negros vendidos] mataram muitos deles. Alguns deles enlouqueceram. Alguns estão no exílio. Então a nova geração não teve uma transição, e alguns caras que fizeram a transição foram os primeiros rappers. Mas aí o rap se tornou comercial.
É um sinônimo de capitalismo.
Exatamente. E na TV foi a mesma coisa. Você podia encontrar alguma forma de, eu diria, resistência em Soul Train ou nos filmes black exploitation. No começo pensamos “Uau”, e logo isso se tornou comercial de novo.
Já foi argumentado que esses filmes eram uma catarse vazia.
Bom, isso simplifica as coisas e te dá uma ideia. “Ah, bom, somos como o outro, mas negros”. Há justiça nisso: tem um vilão negro e um vilão branco. Não estávamos acostumados a ter vilões brancos.
Antes desses filmes, Baldwin realmente falou sobre essas questões em The Devil Finds Work, que os homens negros eram dessexualizados. E nos filmes Blaxploitation eles eram hipersexualizados.
Exato.
Não havia heróis negros que venciam, apelando para a violência. Mesmo enquanto a crença na viabilidade do confronto armado enfraquecia entre os grupos nacionalistas negros. E ainda assim, nessa reação exagerada, talvez, esses filmes perderam a chance de normalizar a luta pela libertação negra, além das lutas vividas em experiências reais da classe trabalhadora e da classe média afro-americana.
Você tem razão na despolitização, porque o que isso fazia, basicamente, era te mantr no gueto negro. Esses filmes não te davam a imagem maior. Isso não te diz que o problema é o capitalismo. O problema é a classe. O problema é pobre de um lado e rico do outro.
Ou, como você sugere no filme através do texto de Baldwin, o NAACP era uma organização classista.
Exato. Esse é o dilema agora. Aliás, não vejo o Black Lives Matter — vejo o Occupy Wall Street, vejo muitos outros movimentos que perderam o impulso no momento em que decidiram pular para a política. Somos uma civilização onde não existe mais ideologia. Não há mais verdade científica. Não há mais verdade acadêmica. O aquecimento global existe, o aquecimento global não existe.
Você é um cineasta que já bordou temas de legado como o assassinato de Patrice Lumumba ou o genocídio em Ruanda. Esse filme é muito sobre a vida de um negro norte-americano e a realidade vivida por negros norte-americanos. O que te permite habitar, como artista, essas várias esferas da narrativa pan-africana?
Não são coisas disparatadas, essa é a questão. Fui privilegiado no começo por ver as conexões. E decidi bem cedo, com a vida que estava tendo, a vida que meus pais estavam tendo. O único jeito como posso sobreviver é ter certeza de quem quer que eu seja, sou engajado. Estou no exílio. Isso é algo que nunca aceitei. Estou onde moro, sabe? Meu pai saiu do Haiti em 1960. E eu saí em 1961. Eu tinha oito anos, e fui para o Congo com a imagem da África que eu tinha dos filmes norte-americanos — John Ford e tudo mais. E juro por Deus que cheguei para ver safáris, ver africanos dançando e sorrindo, e era isso que eu pensava. E esse foi um dos primeiros choques da minha vida. Eu cresci assim.
Então isso é parte da minha biografia. E acho que é uma liberdade nunca aceitar o que os outros diziam que eu devia ser. Baldwin disse o mesmo. Ele nunca acordou, se olhou no espelho e disse “Meu Deus, sou negro, então vou agir como um homem negro o dia todo”. Eu não digo isso. Quando você cresce no mundo, você pensa sobre o mundo. O que você pode fazer para mudar o mundo? O que posso fazer para mudar o meu bairro? O que posso fazer?
Tenho amigos que viveram sempre com raiva. Eu entendo essa raiva. Entendo, porque é frustrante. Mas então, como digo a eles “Sim, mas o que você vai fazer?” Você vai fazer isso sua vida inteira? Ou vai tentar outra coisa? Por que é isso que eles querem. Eles querem que você continue com raiva.
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Eu Não Sou Seu Negro está disponível no Netflix.