Ocupantes e refugiados estrelam o filme ‘Era o Hotel Cambridge’

Foto: divulgação

“Sou refugiado palestino no Brasil. Vocês são refugiados brasileiros no Brasil”, diz Isam Ahamad Issa para seus parceiros de luta por moradia ao receber a notícia de que a Justiça decretou a reintegração de posse do prédio em que vivem. Ambientado na cidade de São Paulo, o filme Era o Hotel Cambridge, que estreou em março deste ano e continua em cartaz, mistura ficção e realidade para retratar a rotina dos moradores da grande ocupação homônima localizada na região central da metrópole. 

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Com crueza, atores e ocupantes que moram ali na vida real, como Isam, protagonizam diálogos que vão desde a saudade de sua terra natal até a disputa de espaço dentro de uma ocupação. “Nós não podemos cuidar nem dos brasileiros e temos de cuidar dos refugiados do Congo, dos libaneses e dos palestinos”, crava um dos moradores, provocando uma celeuma de declarações contra e a favor da afirmação.

A ideia inicial do longa-metragem era abordar a pungente questão dos refugiados em São Paulo, cidade que, em números, mais os recebe na América Latina. O mote acabou se ramificando quando, durante os dois anos de pesquisa e imersão da diretora Eliane Caffé e sua equipe, uma intersecção importante foi percebida. Refugiados e trabalhadores de baixa renda brasileiros padecem do mesmo problema: a dificuldade quando o assunto é moradia.

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A história se desenrola a partir da possibilidade de uma reintegração de posse. Por conta dela, os moradores se organizam em assembleia e decidem quais medidas devem ser tomadas.

No entremeio, o choque cultural embala a vivência entre eles, como Uta, a garota branca interpretada por Juliane Arguello, que se apaixona por Guylain Mukendi (que interpreta a si mesmo no papel de Nglandu), um refugiado negro congolês. Quando ela encosta nas mãos do rapaz, ele explica que, no Congo, seu país de origem, é preciso namorar sério antes que qualquer tipo de intimidade aconteça entre os dois, como um simples toque. 

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A divergência também acontece quando a personagem da veterana atriz Suely Franco serve sopa para um palestino recém-chegado ao país, que, mesmo sem falar uma palavra em português, acaba negando a refeição principal e optando por arroz puro. Ela não sabia, mas o homem não come carne de porco. Esses momentos delicados conferem ao filme a nuance sutil e constrangedora das estranhezas entre diferentes nacionalidades.

Apesar de todas as interpretações serem satisfatórias, é possível discernir quem é profissional e quem não é. Isso não é um problema porque, ainda assim, o longa intriga o espectador. Até que ponto o personagem transcende o ator? “Organizamos algumas oficinas de dramaturgia dentro do Cambridge e, assim, fomos compondo o casting”, comenta Eliane, que já havia trabalhado com não atores em seus projetos anteriores, como no longa Céu sem Eternidade (2011), protagonizado por quilombolas do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe).

A ocupante Carmen Silva, que, apesar de não ser atriz profissional, interpretou a si mesma e foi premiada. Foto: divulgação

O resultado em Era o Hotel Cambridge foi efetivo. O filme traz em cena Carmen Silva, líder da Frente de Luta por Moradia (FLM), movimento presente no Cambridge, interpretando a si mesma. Ela abocanhou o prêmio de melhor atuação no Festival Internacional de Cinema de Fronteira, que acontece anualmente na cidade de Bagé, fronteira do Brasil com o Uruguai.

O longa traz no currículo uma lista de prêmios, como melhor filme no voto popular da 40º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2016 e outra duas categorias no 63º Festival de San Sebastián, da Espanha.

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Para Eliane, seu projeto traz informações para conscientizar as pessoas sobre realidades não só de São Paulo ou do Hotel Cambridge, que há anos funciona como ocupação, mas de outras partes do mundo: a dos refugiados e da dificuldade de morar nas grandes cidades. “O filme também é importante pra criar uma narrativa que demonstra, muitas vezes, o que a mídia faz por estar desinformada, que é acabar criminalizando esses movimentos”, pontua.

Além disso, Era o Hotel Cambridge humaniza as pessoas com quem todas as classes lidam diariamente. Ela exemplifica: “São trabalhadores com suas famílias que estão nessa luta. São as cuidadoras de idosos, as domésticas, os garis que limpam a cidade”.

Se seu filme é político? “Extremamente”, responde, implacável, a cineasta.

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