O sacerdote Manoel da Nóbrega ainda não tinha chegado ao Planalto Paulista quando, em 1549, escreveu uma carta ao rei de Portugal. Pedia que o reino enviasse para o Brasil órfãs, ou mesmo mulheres “que fossem erradas”. Pois “todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa”.
Nóbrega era um dos tantos jesuítas que aqui vieram catequizar índios e ajudar os portugueses no projeto de colonização. No caso dele, entraria para a história ao lado de José de Anchieta, um dos fundadores da cidade de São Paulo, ou melhor, da Vila de São Paulo de Piratininga. Ambos celebraram onde hoje é o Pátio do Colégio a missa que marca a inauguração da cidade, em 25 de janeiro de 1554.
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Mas essas mulheres ditas “erradas”, no bom português da época, impregnado de machismo, se tornariam – ao menos parte delas – as primeiras prostitutas desta “terra em que se plantando tudo dá”. Pelo menos é o que acreditam historiadores. E, assim, aquela que é conhecida como a mais antiga profissão do mundo também pode ser a mais antiga profissão de São Paulo.
A existência desta carta de Nóbrega ao rei de Portugal, João III, aparece até no clássico livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quando o escritor fala sobre a “franca devassidão” da qual “nem o clero se isentava”, cita o padre jesuíta. “Pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos”, escreveu Cunha.
Mas foi o historiador e escritor Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre a história do Brasil – entre eles Titília e o Demonão, com as cartas eróticas escritas pelo imperador d. Pedro I e endereçadas à Marquesa de Santos, sua mais célebre amante –, quem resgatou a íntegra dessa missiva e viu nela a semente da prostituição na cidade de São Paulo. Mais que isto, Rezzutti decidiu pesquisar quais foram os lugares mais representativos dessas, digamos, obscenidades à moda antiga.
“Nóbrega entendia que havia aqui ‘um grande pecado’: os homens brancos tomando as índias por esposas, indistintamente, quantas quisessem”, comenta Rezzutti. “Ao pedido de Nóbrega, então superior dos jesuítas, foram enviadas para o Brasil as ‘erradas’. E as ‘erradíssimas’.”
Os incômodos e primeiros conflitos entre os cidadãos ditos “de bem” e a prostituição já aparecem em atas da Câmara de São Paulo a partir de 1570. Esses documentos apontam que os pontos das “rameiras” da então pequena vila eram nas proximidades das fontes de água. “Mulheres ‘direitas’ não deviam se aproximar desses lugares. Apenas escravos e pessoas que estivessem dispostas a alguma aventura de cunho sexual iam até os chafarizes”, afirma Rezzutti.
Na tentativa de coibir esse mercado do sexo, a Câmara criou uma multa para quem ficasse ocioso perto das fontes. Em 1579, a punição prevista era de 50 réis. Onze anos mais tarde, o valor fixado já era de 500 réis. “Sem que fosse lá muito respeitada”, comenta o historiador.
No século seguinte, São Paulo seguiria cheia de gente disposta a trabalhar na prostituição. A Câmara, então, passou a punir prostitutas com a expulsão da vila. Um documento de 1641 diz que duas “mulheres prejudicadas” foram mandadas embora de São Paulo. “No relato, a informação é que ‘Mariana Lopes e Joelma Pereira, apesar de casadas, recebiam homens em suas casas sem a presença dos respectivos maridos’”, afirma o historiador. Sim, eufemismos de toda a sorte para descrever o comércio sexual.
Era a miséria econômica que transformava mulheres em prostitutas. Em uma sociedade patriarcal, em uma São Paulo com poucas atividades econômicas, a muitas este era o trabalho que restava. Conforme contextualiza a historiadora Mary Del Priore no livro Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, até o século 18, prostituir-se era uma forma de sobrevivência. E havia gerações de avós, mães e filhas que iam seguindo por essa vida como única alternativa para se manterem e sustentarem parentes idosos e crianças.
“Em São Paulo a prostituição como profissão aparece nas Listas Nominativas, uma espécie de recenseamento do século 18, ordenado pelo Marquês de Pombal. Na época, a denominação ‘casinha’ para designar um local onde se bebia, jogava, divertia e tinha contato com mulheres era comum”, comenta a historiadora.
Relatos de viajantes que vinham da Europa para São Paulo descrevem uma prostituição mais romântica, quase naïf. Isto deixava os forasteiros impressionados. Ao contrário das europeias, as meretrizes paulistanas ficavam com um pé atrás, hesitando abordar seus clientes. Elas aguardavam ser cortejadas. Eram recatadas.
De acordo com descrições do botânico e viajante francês Augustin de Saint-Hilaire, a quantidade delas, entretanto, saltava aos olhos. O francês escreveu que as vias públicas paulistanas “ficavam cobertas por rameiras”, que eram “de todas as cores”. Saint-Hilaire chegou a dizer que – por causa da prostituição – São Paulo era uma rara cidade com mais agitação noturna do que diurna.
Nesta época, começo do século 19, o principal endereço para a prática do meretrício na cidade era a Rua das Casinhas, um ponto hoje chamado de Praça Manoel da Nóbrega – coincidência das coincidências, uma homenagem ao padre que solicitava mulheres ao Reino de Portugal –, entre a Rua 15 de Novembro e o Pátio do Colégio. O que se chamava de casinhas eram seis cômodos colados lado a lado. Durante o dia, funcionavam ali vendas de secos e molhados. À noite, o comércio era outro – com mulheres ditas “avulsas” espalhadas à espera de fregueses. “Os animais de carga e os compradores cedem lugar a verdadeiras nuvens de prostitutas de baixa classe, atraídas pelos camaradas e pelos roceiros, que elas tentam pescar em suas redes”, escreveu Saint-Hilaire.
À esquerda da igreja do Pátio do Colégio, bem no local onde hoje está o prédio da Secretaria da Justiça, ficava o Teatro de Ópera. Como boa parte das atrizes eram meretrizes, a clientela se dividia entre os que preferiam o espetáculo no abrir das cortinas – e os que ansiavam pela festa depois de elas se fecharem.
A inauguração da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1827, trouxe novos ingredientes à picante cena noturna paulistana. O centro passou a ser frequentado por jovens, filhos de endinheirados de todo o país – e morando sem os pais. A mais famosa prostituta a servir os estudantes da São Francisco foi Rita Maria Clementina de Oliveira, conhecida simplesmente como Ritinha Sorocabana. Ela foi amante do estudante Luiz Barbosa da Silva, mais tarde presidente da Província do Rio Grande do Norte, e do poeta Fagundes Varela. Mais velha, acabaria dona de um bordel de luxo na Rua Boa Vista.
É quando aquela aura ingênua dá lugar a um negócio profissionalizado, inclusive com importação de mão-de-obra especializada. “As prostituas europeias, provenientes sobretudo do Leste Europeu, começam a chegar na segunda metade do século 10, por meio de tráfico internacional – organizado, também, por estrangeiros”, afirma Del Priore. “Pela coloração dos cabelos e cor de pele, eram conhecidas como ‘polacas’ ou ‘francesas’. A prostituição se organiza em luxuosos bordeis, frequentados por políticos, homens de negócios e grandes fazendeiros.”
Mas uma das histórias mais curiosas dessa prostituição das antigas não ocorreu no centro da cidade – e está contada no livro Quadro Histórico da Província de São Paulo, publicado em 1864 por J. J. Machado d’Oliveira. De acordo com a obra, o capitão-general de São Paulo Martim Lopes Lobo de Saldanha – governador da capitania entre 1775 e 1782 – saciava seus prazeres mundanos em uma fazenda pertencente a monges beneditinos em São Bernardo do Campo. “Ele tinha um álibi: alegava que ia ao local para supervisionar obras na estrada velha de Santos”, conta Rezzutti. “Mas o que levava o governador até lá eram os bacanais, cheios de meretrizes, promovidos pelos monges.”
Só com o advento do café a prostituição paulistana começou a ganhar o requinte que já era visto na Europa. Afinal, o boom financeiro trazido pela cafeicultura a partir do fim do século 19 iria ajudar no desenvolvimento de todos os setores de São Paulo. “E, para o bem ou para o mal, esse desenvolvimento também influenciou o meretrício”, conta Rezzutti. “O enriquecimento da elite paulistana começou a atrair para a cidade cortesãs e diversas cafetinas. Isso impactou até mesmo no uso de alguns cafés famosos de São Paulo, que recebiam famílias durante o dia mas, a partir do entardecer, se tornavam redutos de prostitutas e seus ávidos clientes.”
De lá para cá, é a história que todo mundo já sabe: ainda que à margem da lei, prostíbulos cada vez mais organizados com “cardápios” para todos os gostos e bolsos. Oscar Maroni que o diga. Um negócio que, nos últimos anos, acabou turbino pela internet, dos sites às redes sociais.
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