Tá aqui aquela matéria que você não quer ler, quer passar longe, fingir que não existiu. Porém, caro leitor antifascista, não dá para esconder: 2018 foi um desastre político para o Brasil, cujo custo pode perdurar por décadas. Pode escolher a data de início desse processo: junho de 2013, o 7×1, a deposição de Dilma Rousseff da presidência. O que importa é que 2018 foi o auge da ascensão conservadora no país, puxando em seu esteio um modelo econômico ultraliberal que tem tudo para deixar a nação na lona.
Vamos voltar à uma época inocente, quando o ano começava com um escândalo rasteiro e moleque: a política brasileira começou 2018 sob o signo de Cristiane Brasil, então deputada federal pelo PTB, que foi indicada pelo papai Roberto Jefferson, presidente do partido, para ocupar o saudoso Ministério do Trabalho. O problema é que a pitchuca era bem enrolada em diversas questões trabalhistas, o que gerou uma série de manchetes apontando a hipocrisia temerista e uma difusa pressão popular sobre a quase-ministra. Brasileira como é, Cris não desistiu e foi à luta: gravou um vídeo em sua defesa dentro de uma lancha cercada de marmanjos bombados. “Vai ministra!”, dizia um colega. Não foi, acabou tendo a indicação substituída por Helton Yomura, que não durou seis meses no cargo, vítima da Operação Registro Espúrio, que segue investigando desvios milionários no ministério: entre suas vítimas estão deputados de alto calibre do PTB, como Jovair Arantes e Nelson Marquezilli, além de Paulinho da Força (SD-SP) e os próprios Jefferson e Cris. Nada disso impediu Jair Bolsonaro de abraçar o apoio entusiasmado de Jefferson já na disputa do segundo turno.
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Para não dizer que não falamos das flores, o carnaval trouxe talvez a única alegria política do ano, quando a pequena escola de samba Paraíso do Tuiuti ficou em segundo lugar da disputa no Rio de Janeiro com o enredo “Meu Deus! Meu Deus! Está Extinta a Escravidão?”, que teve entre seus destaques uma alegoria com a cara de Michel Temer travestido de vampirão – para não deixar dúvidas, além da faixa presidencial, a fantasia se chamava “Vampiro Neoliberalista”.
Sem nem deixar a quarta-feira de cinzas chegar, Temer arranjou uma sarna gigantesca para coçar o rabo dos cariocas – no dia 16 de fevereiro foi decretada a intervenção federal no Rio de Janeiro, com o objetivo de combater a criminalidade crescente no estado cada vez mais falido. Apesar de ter reduzido parcialmente o roubo de cargas, durante a intervenção os tiroteios cresceram 56% no estado, e o número de mortos pela polícia subiu 40%. O início da intervenção, por sinal, foi marcado por um dos crimes mais bárbaros cometidos no ano. Na noite de 14 de março a vereadora carioca do PSOL Marielle Franco foi executada junto com seu motorista no centro do Rio de Janeiro. Um dos casos mais emblemáticos do descaso com a democracia e os direitos humanos, o assassinato de Marielle levou centenas de milhares de brasileiros às ruas, virou caso de notoriedade internacional e, ainda assim, nove meses depois, parece cada vez mais longe de ter um desfecho. Todos os indícios apontam para a participação de milicianos de alto calibre na execução, mas com a proximidade do presidente eleito com as milícias no Rio, há um risco sério de o caso não ser solucionado nos próximos anos.
Assista a nosso vídeo “Jovens da Maré falam sobre a intervenção federal no RJ”:
Mas o principal acontecimento político do ano ainda estava por vir. Depois que sua condenação por Sérgio Moro (que afirmou que o ex-presidente teria recebido um apartamento da empreiteira OAS a título de propina) foi confirmada pelo TRF-4 e seus pedidos de habeas corpus negados pelo STJ e STF (com uma ajudinha do comando do Exército), Lula teve sua prisão decretada em 5 de abril. Ele deveria ter se entregado em Curitiba, mas ficou esperando a Polícia Federal no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, cercado por uma vigília de centenas de militantes. Depois de dois dias de tensão e de um comício regado a discursos de esperança e resistência, Lula se entregou (contra a vontade de parte dos correligionários) e seguiu para a sede da PF na capital paranaense. Esse seria um golpe fatal para a esquerda brasileira e um dos maiores trunfos para a vitória de Bolsonaro.
O penúltimo acontecimento essencial para selar 2018 como o ano de Bolsonaro foi a greve dos caminhoneiros, iniciada no dia 21 de maio. Os coletes amarelos avant la lettre pegaram o governo de surpresa e, apertando rapidamente a circulação da economia nacional, deixaram Temer de mãos atadas, com um apoio de setores amplos da população – e até do agronegócio, que viria a se ferrar com o tabelamento do frete no país. Além de escancarar a falência de Temer e de custar a cabeça do presidente da Petrobras Pedro Parente, a greve galvanizou uma rede “contra tudo que tá aí” no WhatsApp – chegando a pedidos por intervenção militar – que seria muito útil à extrema-direita em alguns meses.
Depois de uma Copa sem brilho, cuja principal alegria nacional foi rir da desgraça alemã e argentina, começou a disputa que havia sido postergada desde 2016: as eleições gerais. E que eleições, amigos.
Tudo parecia bastante nebuloso no começo. Geraldo Alckmin (PSDB) apostou todas as fichas na política tradicional, basicamente arregimentando toda a base de partidos que apoiavam Temer para si e abocanhando a maior parte do fundo partidário e quase metade do tempo de TV. O PT insistiu na candidatura quixotesca de Lula, na tática de transferir os votos para Fernando Haddad após o indeferimento do registro do ex-presidente – o que deu bem errado, no final. Marina Silva (Rede) saiu na frente como herdeira do voto lulista, mas exauriu-se rápido: sem base, sem dinheiro, sem tempo de TV, acabou atrás do impopular ministro da Fazenda Henrique Meirelles (MDB). Ciro Gomes tentou colocar-se como o Macron tropical, uma terceira via entre o “extremismo” do PT e o fascismo (sem aspas, por favor) de Bolsonaro – acabou traindo seu eleitorado se refugiando na França durante o segundo turno. Não bastasse essa turminha do barulho, tivemos ainda um ridículo Temer atacando de youtuber e o futuro ministro da voz fina Sergio Moro liberando a delação vazada há meses do ex-ministro petista Antonio Palocci (não era pra prejudicar o Haddad, não).
Já Bolsonaro contou com a providência de uma tragédia terrível que materializou todos os pesadelos dos democratas nacionais. Vítima de uma facada em 6 de setembro, o então candidato ganhou um inusitado presente, que quase o matou. A sua sobrevivência a um atentado vil, realizado na véspera do Dia da Independência, ungiu sua candidatura com toda a mitologia que ele patinava em criar para si. De um deputado falastrão que estava a fugir de Marina e de jornalistas durante os debates, ele passou a um pobre coitado que enfrentava interesses escusos, que estariam por trás do seu atentado, e sua base se fez crer miraculosa por tê-lo salvo da morte com suas orações. Adicione uns dois galões de pânico moral fustigado pelas igrejas e pelas mentiras do WhatsApp (para não falar da inação do TSE), misture bem essa química e pronto: eis um candidato imbatível.
Assista a nosso documentário O Mito de Bolsonaro:
Mas não é só Bolsonaro que ganhou. Arrastou com ele um novo partido (de aluguel), o segundo maior da Câmara, enquanto a maré conservadora levava junto todo tipo de candidato outsider ao governo dos estados, do empresário varejista Romeu Zema (Novo) em Minas Gerais ao juiz Wilson Witzel (PSC) no Rio de Janeiro, enquanto nomes tradicionais eram rejeitados nas urnas, o que resultou no encolhimento significativo do MDB e do resto do “centrão”, apoiados no impopular governo Temer. Por outro lado, o Nordeste brasileiro se destacou como um mundo à parte, votando em peso de Haddad no segundo turno e (re)elegendo uma legião de governadores “vermelhinhos”, incluindo 4 petistas.
E então que chegamos à beira de 2019, um precipício no qual já pulamos. Antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro já bagunçou o coreto, mostrando que vai copiar Trump até no modelo de permanecer em campanha permanente após ser eleito – com muito firehosing pela frente. Montou um gabinete ministerial rachado por temas, ancorado em políticos do DEM, militares e ideólogos indicados pelo astrólogo Olavo de Carvalho. Criou dois “superministros”, o “posto Ipiranga” da Economia Paulo Guedes e o ex-capo da Lava Jato Sergio Moro, que podem lhe dar (ou tomar) uma tremenda dor de cabeça. Criou atritos com a Liga Árabe, causou a retirada dos médicos cubanos do programa Mais Médicos, bateu continência para o beligerante secretário norte-americano John Bolton, extinguiu o ministério do Trabalho, deve cortar verbas do sistema S (incluindo SESC, Senai, etc), pode acabar com o Simples Nacional, disse que o trabalho com carteira assinada tem que virar trabalho informal, a lista é longa.
Diante de tudo isso, de tanto desespero e dor, o que fazer, camarada? Primeiro, respire. Eles te querem confuso e frustrado, essa é a tática deles. Dê um tempo a si. Depois, você viu as notícias no mundo? A extrema-direita foi derrotada nas eleições municipais da POLÔNIA. Milhares de pessoas estão nas ruas contra Orbán na HUNGRIA. Os democratas ganharam a Câmara dos EUA, e Trump está chafurdando em denúncias de corrupção. A popularidade de Duterte está afundando. O desastre do Brexit vai jogar o Reino Unido na mão da ala mais radical do Partido Trabalhista. Até Xi Jinping está se embrenhando em maus lencóis. A história é cíclica e o pêndulo tem se movido cada vez mais depressa. Organize-se, use a internet para encontrar pessoas no mundo real – aprenda a trabalhar junto com gente diferente num ambiente fora do trabalho. E, acima de tudo, sonhe. Nossa crise, no final, é de imaginação – afinal, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, não? Precisamos de novas utopias, de um plano para quando a bomba estourar e jogarem a batata quente no nosso colo. Bora nessa.
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