‘Esta matéria faz parte do projeto Ciclos, uma série sobre mobilidade urbana feita pela VICE em parceria com o Itaú.’
Na década de 50, a malha ferroviária brasileira tinha 30 mil km de extensão. Hoje, a mesma malha ferroviária continua com seus 30 mil km. Na época, os cinquenta anos em cinco de Juscelino Kubitschek deu um dos pontapés iniciais para a predominância dos automóveis no transporte de passageiros e cargas no país. Um dos efeitos secundários dessa política foi o descaso com os trens. Relegados a segundo plano, com velhas e caras locomotivas e falta de investimento em manutenção e expansão, os trens de passageiros praticamente desapareceram nos trajetos entre cidades e estados.
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Uma pena. Isso porque o sistema ferroviário é o modelo capaz de transportar o maior número de pessoas de uma única vez, está livre de interferências do clima e trânsito e, se for elétrico, não polui.
Melhorar esse panorama, no entanto, depende de uma série de fatores, mas o ponto de partida poderia ser resumido em “uma política de investimento verdadeira por parte do governo”, afirma Yesid Asaff Mendonza, coordenador do curso de Engenharia Ferroviária e Metroviária do campus de Joinville da UFSC — um dos únicos cursos de graduação na área do Brasil. A escassez de formação especializada, aliás, é outro problema. “Faltam engenheiros para dar suporte a uma possível expansão da rede ferroviária brasileira”, diz Yesid.
A necessidade de investimento público se explica pelos valores exorbitantes envolvidos na criação de vias ferroviárias e operação dos trens. Enquanto o retorno de tal investimento atrai o setor privado quando o objetivo é o transporte de cargas, a perspectiva de ganhos financeiros no transporte de passageiros não chega perto de fechar a conta por dois motivos. Em primeiro lugar, os preços seriam proibitivos. “Todo transporte público é subsidiado, mas no caso de trens intermunicipais esse subsídio teria que ser ainda maior”, explica Yesid.
Em segundo, não há garantias de que haveria demanda suficiente. “Seria preciso avaliar quantas milhares de pessoas fariam determinado trajeto por dia, afinal o trem é um modelo de alta capacidade”, diz Telmo Giolito Porto, professor da Escola Politécnica da USP e especialista em infraestrutura ferroviária. Mesmo com uma perspectiva atraente numa análise do tipo, ressalta Telmo, criar uma linha ferroviária nova para transporte dificilmente seria interessante para uma empresa privada.
“Seria necessário uma parceria pública privada”, avalia ele. Uma outra alternativa é o aproveitamento por parte de concessionárias de trechos dedicados ao transporte de carga para o transporte de passageiros, com um custo extra marginal. Dessa maneira, o alto retorno financeiro decorrente do primeiro custearia o segundo. É o que acontece, por exemplo, na ferrovia que liga Belo Horizonte a Cariacica, na região metropolitana de Vitória, a Estrada de Ferro Vitória a Minas. Operado pela Vale, o trem segue um cronograma diário e serve tanto como atração turística como meio de transporte acessível para moradores da região.
Quando a análise se limita apenas aos trens urbanos, no entanto, o cenário é diferente. Semelhantes aos metrôs, os trens por sua vez têm capacidade maior de passageiros e possuem com uma frequência menor de viagens — além, claro, de ficarem acima do solo. “Quando se equacionam esses dois fatores, a volume de pessoas transportadas por hora nos dois é semelhante”, diz Telmo.
Ainda que seja mais barato expandir a linha ferroviária em comparação a metroviária, o professor explica que ambos os modais servem a propósitos complementares dentro de o sistema de mobilidade urbano de uma metrópole. Enquanto o trem aproxima a população das periferias em direção ao Centro, o metrô as distribui ao redor da área central. Por isso mesmo, o espaçamento entre estações de trem (CPTM, no caso de São Paulo) é de 3 km, enquanto no metrô essa distância fica em 1 km.
Para Telmo, São Paulo não é carente de malha ferroviária, apenas necessita otimizar a infraestrutura existente, com melhor capacidade elétrica e sinalização, o que permitiria aumentar a frequência nos quase 260 km de vias. “Com a finalização da linha 13, que ligará o Centro a Guarulhos, a rede ficará perto de ser satisfatória”, afirma. Em um contexto que inclui o metrô, o especialista afirma que dobrar a quilometragem atual seria suficiente para levar o sistema a um patamar ideal. “A malha seria fechada, com opções variadas para um mesmo trajeto, diferente do que acontece hoje quando qualquer perturbação afeta muito todo o sistema.”
A verdade é que viajar de trem é uma delícia — salvo exceção do cosplay de sardinha enlatada que é a hora do rush. Dentro das cidades ou fora delas, eles imprimem uma passividade rara hoje em dia e facilitam um tempinho livre só para olhar em volta, sem muita preocupação. Nem todo mundo pensa assim, no entanto. Nascido na Colômbia, Yesid Asaff chama atenção para uma questão cultural que ainda dificulta o abraço do brasileiro ao transporte público: “Aqui carro é um símbolo de poder. Mesmo com o carro mais caro do mundo, as pessoas trocam os automóveis a cada três ou quatro anos. Eu não entendo”, diz.
Acesse o site www.projetociclos.com.br e assista ao documentário sobre mobilidade urbana que fizemos em parceira com o Itaú.