Matéria originalmente publicada no Waypoint.
Ni no Kuni II: Revenant Kingdom é contado como um conto de fadas. Seus personagens são unidimensionais e têm motivações simples e claras. O videogame tem uma história linear e descomplicada que te leva sem tropeços do começou ao fim. Não é um jogo que está tentando te impressionar com profundidades maduras que pode usar para emoções esmagadoras.
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Em vez disso, a história é simplesmente sobre um garoto chamado Evan cujo pai morre. Herdeiro da coroa de Ding Dong Dell, Evan é obrigado a fugir de seu reino depois um golpe, escapando com ajuda de um homem chamado Roland que aparece para Evan em momentos de necessidade. A partir disso, eles vagam pelas terras juntando aliados, resolvendo problemas e fazendo todas as coisas típicas de RPG.
Não estou dizendo que a história é um conto de fadas como crítica aqui. Contos de fadas funcionam; eles são instruções morais pra vida.
Um desdobramento da mitologia, contos de fadas são histórias para guiar crianças numa cultura, e funcionam através de repetição. Eles ensinam que a devoção da Chapeuzinho Vermelho pela avó é algo bom, e que o lenhador é sempre alguém com quem você pode contar. Simultaneamente, eles te informam sobre os perigos de lobos que se disfarçam de vovozinhas, inimigos na pele de amigos. Contos de fadas são ferramentas para separar o bem do mal, nós deles, e o que tem valor do que é inútil.
Ni no Kuni II pega os valores dos contos de fada e os expande para novas escalas. Algumas horas depois do começo, Evan tem uma ideia: ele quer criar seu próprio reino onde ninguém nunca tem que ficar triste, infeliz ou insatisfeito. Mais que isso, ele quer usar seu reino para criar um mundo unido onde não haverá disputas ou guerras, onde os problemas sociais são resolvidos, e a igualdade reina. O trabalho para alcançar esse objetivo toma a maior parte do jogo, com Evan e seu time passando de cidade em cidade para encontrar seus governantes e fazendo missões em larga escala para convencê-los a assinar um Tratado de Interdependência.
As ações clandestinas da realeza são território familiar dos contos de fadas. Reis e rainhas aparecem em histórias como portais de fuga pra pessoa comum, um jeito de imaginar como sua vida seria se você pudesse realmente transcender o destino da classe social em que nasceu. Se você fosse um plebeu alemão ou francês no século 18, a ideia de um príncipe ou princesa se interessando por você, quanto mais te levando embora, provavelmente era algo tão fantástico quanto ter um deus sussurrando no seu ouvido. E tão aterrorizante quanto. Realeza é uma combinação de pesadelo de riqueza, status social, proteção legal e divindade. Ela representa alguma coisa nessas histórias. Os membros da realeza resumem um tipo particular de poder.
Então se Ni no Kuni II é um conto de fadas e as ações do Rei Evan representam alguma coisa, vale a pena rastrear e destacar o que isso representa exatamente. A abordagem direta do jogo significa que Ni no Kuni II é um dos únicos videogames da história recente a estabelecer sua visão política logo de cara. Como todos os contos de fadas, o jogo tem algo a dizer.
Evan vai criar um estado poderoso, com diplomacia forte e habilidades militares, para assim poder unir o mundo. Ponto. Não há um desejo secreto, não há uma razão “verdadeira” que permanece escondida do jogador até um momento crítico. O pai dele morreu, ele quase foi assassinado e perdeu pessoas importantes para ele. Mais tarde no jogo, descobrimos que o golpe que o depôs era o resultado final de um sistema racista de pessoas-gato oprimindo pessoas-rato. Quando Evan descobre isso, ele procura erradicar esse sistema. Não há lugar num mundo unificado para cidadãos de primeira e segunda classe. Através de seu poder e direito divinos, Evan quer garantir a igualdade para todos sob a lei.
Essa abordagem unilateral de usar o estado para mandar no mundo geralmente atrai um tipo de gente não muito legal. Em sua avaliação pro Kotaku, Jason Schreier apontou que Evan “daria um bom vilão de RPG” do tipo Kefka, e ele não está errado. Jogos desse gênero geralmente só conseguem conceber nações ou países como sistemas gigantes de governo que dominam nossas vidas, como estruturas que produzem subprodutos ruins na melhor das hipóteses. Na pior, você tem o estado religioso de Final Fantasy X, o império maligno de Suikoden, o estado corporativo de Final Fantasy VII, e as facções em guerra de The Legend of Dragoon. Em muitos desses RPGs, um estado é uma realidade sombria que produz atrito e violência entre aqueles dentro dele e contra outros grupos sociais.
Ni no Kuni II é único porque sua política explícita e simplicidade de conto de fadas significam que o jogo não tem espaço para uma visão complicada de estado. Se um país não está indo bem, é por causa de líderes ruins ou falta de empatia. A forma de governo não é ruim, mas as pessoas operando esses governos são. Em contraste com tantos jogos do gênero, Ni no Kuni II tem uma visão positiva do estado e o tipo de boas ações que bons governantes podem realizar.
Nesse mundo, os governantes não podem ser só um mal necessário ou o grande vilão que precisa ser derrotado. Em vez disso, um país tem que se tornar algo em que você pode acreditar, e isso cria um mundo onde as pessoas podem querer viver. De sua própria maneira simples, o jogo abraça a utopia do que é possível quando você leva ideias de governo e o estado a sério, como coisas que têm um grande impacto na vida das pessoas e busca aplicar essas ideias rigorosamente.
Talvez isso não parecesse tão radical para mim se o jogo não tivessem sido lançado na mesma época que Far Cry 5, um videogame que reproduz o mundo em que vivemos, acrescenta alguns ataques com vacas bizarros, e nem tenta se aprofundar politicamente mais que isso. Afinal de contas, já vivo num mundo saturado de milícias antigoverno, teoristas da conspiração apocalípticos e libertários a favor de armas que passam uma administração inteira recusando qualquer ideia de serem governados.
Até onde muita gente entende, ser governado é a mesma coisa que ser punido, e não há nada de errado em se sentir assim. Muitas pessoas só lidam com as estruturas dominantes do nosso mundo real na forma de policialmente violento, um sistema legal preconceituoso e como um jeito de tirar dinheiro da população. Enquanto isso, outros estão constantemente recebendo uma narrativa da mídia que diz que o governo é a pior coisa já inventada desde a praga, exigindo que eles coloquem sua fé num mercado livre. Se o estado é algo em que devemos pensar, não pode ser o estado que temos agora. Tem que ser uma utopia que podemos considerar um modelo ou imagem a emular.
Se o mundo em que vivemos, um que é bizarramente refletido por Far Cry 5 ou nossas histórias cyberpunks de um futuro próximo, vai mudar, então será necessariamente imaginando novas maneiras de governar. Se tudo que há de ruim no nosso mundo político desaparecesse amanhã, ainda iríamos precisar de comida, saúde, combustível, químicos industriais, etc. Para sequer pensar sobre esse mundo, precisamos ter alguns sonhos positivos e utópicos sobre como um governo deve ser.
Metade do trabalho de produzir o futuro é descobrir coisas imaginárias para emular, e se a forma de estado deve ser salva, pode ser útil retornar ao método educacional dos contos de fadas. Regras simples, reivindicações fortes e a exigência de empatia e governo honesto. Os contos de fadas podem abastecer esse mundo futuro como uma visão do que todos os nossos recursos poderiam fazer para cada pessoa, se gerenciados corretamente. É algo divorciado da realidade. Mas contos de fadas são ferramentas que funcionam, e Ni no Kuni II é o primeiro que vejo em muito tempo que vale a pena pegar e usar para pensar no que poderíamos fazer diferente.