Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.
Em 27 de novembro de 1978, Dan White, um amargo ex-supervisor municipal de São Francisco, baleou e matou o então prefeito George Moscone e o supervisor municipal Harvey Milk na prefeitura. Ele estava furioso porque Moscone se recusou a recolocá-lo no cargo, e puto com Milk, seu concorrente.
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Foi um assassinato que mudaria para sempre a luta pelos direitos dos gays e lésbicas. Milk foi a primeira pessoa abertamente gay a ter um cargo público na Califórnia, nos EUA, e alguns o chamam de o ativista LGBTQ mais influente da história norte-americana; quando caiu, ele se tornou um mártir, seu nome virou um grito de guerra para o movimento pelos direitos gays em toda a nação.
E Cleve Jones estava lá. Milk se tornou um mentor e amigo do jovem Jones nos anos 70, e depois da morte do ativista, Jones teria um papel fundamental na militância LGBTQ e da AIDS por meio do movimento de liberação gay. Recentemente, o livro de memórias de Jones, When We Rise: My Life in the Movement, saiu pela Hachette Books.
Seis meses depois dos assassinatos, White foi condenado por homicídio voluntário por um júri indulgente, e a cidade explodiria no que ficou conhecido como as Revoltas da Noite Branca, em protestos nos quais milhares de pessoas foram até o bairro de Castro e à prefeitura para mostrar sua indignação. No trecho a seguir de When We Rise, Jones reconta a marcha de um ano da morte de Milk, na qual uma nova era do movimento LGBTQ norte-americano surgiria para aqueles seguindo seu legado.
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As revoltas da Noite Branca mudaram tudo para nós em São Francisco. Estávamos mais poderosos, e sentíamos isso. Havia mudanças chegando e sentíamos o vento nas nossas costas. Mas levaria algum tempo.
Um efeito imediato da morte de Harvey foi que planos para a primeira marcha nacional pelos direitos dos gays e lésbicas em Washington começaram a avançar. Os ativistas pediam essa ação há anos, mas grupos locais e pequenas novas organizações nacionais se opunham à ideia, dizendo que seria um desperdício de recursos preciosos. Mas Harvey tinha falado com as pessoas certas, construído pontes, e tirado um tempo para acariciar o ego de líderes locais de todo o país. A notícia da morte dele inspirou as pessoas a dizerem sim, vamos marchar. Dez anos se passaram desde Stonewall. Uma comemoração fazia sentido, especialmente depois da violência das revoltas.
Participei de algumas reuniões de organizações regionais e fiquei feliz quando a marcha foi agendada para o final de semana do Dia de Colombo. Eu conhecia um barman bonitão de Washington, DC, e esperava passar meu aniversário de 25 anos, no dia 11 de outubro, nos braços e na cama dele.
No domingo, dia 14 de outubro, participei da primeira Marcha Nacional pelos Direitos dos Gays e Lésbicas em Washington. O metrô tinha sido inaugurado em 1976, e peguei um trem do apartamento do barman. Nunca vou esquecer de subir por aquela longa escada rolante até Dupont Circle, ouvindo os gritos e aplausos de centenas de participantes, até chegar ao topo e ver uma grande faixa com letras pretas dizendo: “Harvey Milk Vive!”
Foi uma marcha inspiradora, com cerca de 100 mil pessoas. No comício, o prefeito de DC Marion Barry nos recebeu. Ouvimos discursos do sucessor de Harvey, Harry Britt; do fundador da Igreja da Comunidade Metropolitana Troy Perry; das feministas Charlotte Bunch, Kate Millett e Eleanor Smeal. Fiquei particularmente emocionado com o discurso do poeta Audre Lorde e fiquei fora de mim de alegria quando me vi sentado nos degraus do Monumento de Washington, fumando um baseado com Allen Ginsberg e um bando de hippies gays charmosos.
De volta a São Francisco, comecei a organizar outra marcha: para 27 de novembro de 1979, o primeiro aniversário dos assassinatos na prefeitura. Quando mencionei a ideia para meus amigos, descobri que todo mundo já estava falando nisso, e concordamos em marchar novamente pela Market Street como tínhamos feito no ano anterior, quando o sangue de Harvey Milk e George Moscone ainda estava fresco no chão da prefeitura.
Comecei a escrever um discurso. Eu queria escrever sobre Harvey, sobre o homem e a lenda que ele se tornaria. Para nosso novo movimento, para nossa pequena comunidade emergente, precisávamos de lendas, precisávamos compartilhar histórias das lutas do nosso povo que ajudariam a unir as pessoas. A lenda de Harvey Milk poderia ter esse poder. Poderíamos alcançar aqueles que estavam isolados e sozinhos; ele poderia nos conectar, inspirar e informar. Se lembrássemos dele.
Na terça-feira, dia 27 de novembro de 1979, quando o sol começou a se pôr, milhares de pessoas se juntaram no cruzamento entre a Castro e a Market Street para começar a longa caminhada até a prefeitura. Marchamos em silêncio, liderados por um único tambor e bandeiras dos EUA e do arco-íris. A multidão iluminou o Civic Center Plaza de novo com a luz de inúmeras velas. Foi muito bonito, muito poderoso e terrivelmente triste. Respirei fundo e peguei o microfone.
“Estamos aqui esta noite para homenagear a lenda de Harvey Milk, que a palavra dele sobre seu sonho e sua luta possa se espalhar pela nação. Estamos aqui esta noite para continuar a luta dele, continuar seu sonho. Estamos aqui para espalhar a palavra dele, para que nossos irmãos e irmãs por toda parte conheçam a vida e a morte de Harvey Milk.
Mandamos essa mensagem para toda criança crescendo queer num mundo hétero. Mandamos a palavra para toda mulher forte e homem gentil, para os tios bichas e as tias solteironas silenciosas. Mandamos nosso amor a eles e a lenda de Harvey Milk, para que eles possam se sentir fortalecidos e ter suas vidas dignificadas, assim como nós que conhecemos Harvey fomos fortalecidos e empoderados. Estamos aqui para construir uma lenda, mas também para lembrar a realidade de que Harvey Milk era um homem, nosso amigo e nosso vizinho. Harvey, sorrindo atrás do balcão em sua loja de câmeras na Castro. Havey, o palhaço, Harvey, o fanfarrão. Harvey, que debateu com John Briggs. Harvey, usando um jeans surrado e um suéter rasgado no ônibus 8-Market.
Devemos sempre nos lembrar do homem por trás da lenda que construímos — o homem que não era nem gênio nem santo, o homem que não foi o primeiro mártir do movimento. Temos que lembrar que o trabalho feito por Harvey Milk é um trabalho que todos nós compartilhamos, que as conquistas dele são aquelas que podemos aspirar. Devemos lembrar também que nossas derrotas, nossas humilhações, nossas perdas também foram compartilhadas por Harvey em seu tempo.
Sim, sabemos que Harvey Milk não foi nosso primeiro mártir, nem será o último. Ele tinha um amante chamado Jack e no verão de 78, Harvey chegou em casa e achou o corpo de Jack pendurado do teto — um suicídio.
Fico pensando, quantos de nós aqui perderam amigos ou amantes para o suicídio? Levantem suas velas, por favor, quantos?
Quantos de nós conhecem uma mulher que já passou pela dor e o terror de um estupro? Deixe-me ver suas velas, quantos?
Quantos de vocês foram atacados, quantos já apanharam? De alguém na rua ou da polícia, quantos?
Quantos já ouviram uma provocação pelas costas, ‘bicha’, ‘sapatão’, quantos?
É por isso que estamos aqui hoje. É por isso que marchamos em Washington; é por isso que vamos continuar marchando. É por isso que Harvey viveu, é por isso que Harvey morreu. É por isso que não vamos descansar até que o sonho de Harvey seja realizado: quando lésbicas e gays de todas as idades, raças e origens vierem se juntar à luta com todos nós, que buscamos viver com liberdade, dignidade e alegria.
Vai ser uma luta longa. Serão décadas de campanhas e líderes e, sem dúvida, muitos mártires. Mas não deixe ninguém se enganar, nosso movimento é alimentado pela determinação de pessoas há muito negadas, há muito abusadas. Pessoas que só querem a liberdade para viver, trabalhar e amar. Que ninguém se engane — estamos falando sério, cada dia temos mais poder e ninguém vai nos parar.
É por isso que estamos aqui esta noite.”
Trecho do livro When We Rise de Cleve Jones, publicado em 29 de novembro de 2016 pela Hachette Books.
Tradução: Marina Schnoor