​O Dia da Mulher Também Pertence às Transexuais e Travestis

Foto por Felipe Larozza.

Sempre tive milhares de ressalvas em escrever algo sobre o Dia das Mulheres. Não por discordar da data, mas pelo lance de isso servir mais pra vender perfumes e roupas com descontos especiais e distribuir flores de cemitério na porta do metrô do que celebrar a emancipação feminina. Só que, depois de começar a estudar o feminismo, percebi que, mesmo num movimento que prega a ruptura dos estigmas de gênero, ainda há muito elitismo. Isso afeta as mulheres pobres, as mulheres negras, as mulheres portadoras de deficiência e também as mulheres trans.

A transgeneridade é um conceito utilizado para englobar indivíduos que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento e nem aos padrões determinados para cada gênero. Esse conceito divide-se em subgrupos que carregam suas próprias peculiaridades. Existem pessoas não binárias, sem gênero fixo ou gênero fluidas; existem transexuais, que poderiam ser divididos em homens trans e mulheres trans; e ainda há as travestis, que podem se identificar como mulheres, homens ou ainda não se enquadrar na classificação binária, considerando-se um terceiro gênero. Na verdade, conceituar todas as classificações do grupo transgênero pode ser uma tarefa complicada e até mesmo ofensiva, já que cada indivíduo pode carregar consigo um gênero completamente diferente do que aparenta.

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Quando você faz parte de um grupo cisgênero (se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento), você já sai no privilégio; então, é apenas natural ignorar as problemáticas de pessoas que não se encaixam no padrão. Enquanto isso, as estatísticas continuam a indicar que o Brasil segue em primeiro lugar no ranking de assassinatos de travestis e transexuais, que essas pessoas ainda são marginalizadas pelo fato de não conseguirem modificar seu nome sem passar pela justiça, sendo, consequentemente, excluídas de oportunidades de emprego, saúde e moradia.

Recentemente, houve avanços importantes nessa luta. O Projeto de Lei nº 5002/2013, também conhecido popularmente como Lei João W. Nery (em homenagem ao trans homem mais antigo do Brasil), proposto pelos deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, busca uma sensibilização do Estado às diversidades de gênero ao mesmo tempo em que procura desburocratizar a mudança do nome de registro desses indivíduos. O projeto ainda está em tramitação e foi baseado na lei argentina aprovada em 2012.

João W. Nery. Foto: Reprodução/Facebook

O próprio João W. Nery, psicólogo e também autor de livros como Viagem Solitária, acredita que “os transexuais sempre estão nas mãos de outras pessoas, seja na parte política, jurídica, médica. A gente não tem autonomia nenhuma. Nem para dizer quem a gente é. Não somos cidadãos, não temos nem documentação coerente com o nosso gênero. Isso causa um mal-estar, uma humilhação constante. A sociedade nos coloca como doentes mentais”. Se o projeto for aprovado, basta à pessoa que desejar modificar seu nome no registro se dirigir a um cartório e fazer a mudança.

Ariel Nolasco. Foto: Reprodução/Facebook.

Para a Ariel Nolasco, mulher trans, o projeto representará mais um passo para a inclusão social e menos uma etapa cansativa para se ser reconhecida devidamente. “Atualmente, para que consigamos nossos nomes e nossos gêneros nos documentos, temos de passar por várias coisas. Existe uma coisa chamada DSM-4, que nada mais é [do que] uma lista que fala sobre doenças mentais, e lá estão inclusas a transgeneridade, a transexualidade e a travestilidade. Somos tratadas como pessoas doentes, diagnosticadas com ‘distúrbio dissociativo de identidade de gênero’, ‘disforia de gênero’, entre outros. E, como somos doentes mentais, precisamos de laudos. [São] dois anos de consulta com endocrinologistas (que vão nos dar um laudo dizendo que nos ajudaram no processo de tratamento hormonal), mais dois anos de consulta com psiquiatras e psicólogos (que vão nos dar um laudo dizendo que estamos ‘aptas’ a viver socialmente). Após conseguir todos esses laudos, entramos com um processo contra o Estado para a retificação dos nossos nomes e dos nossos gêneros em nossos documentos.”

Foto feita por Felipe Larozza no Centro Zaki Narchi, o complexo conta com 900 vagas masculinas e quartos exclusivos para travestis, transgêneros e transexuais.

Enquanto o projeto passa pelo trâmite legal, outras iniciativas foram implementadas na cidade de São Paulo, como a criação de vagas em abrigos para membros da comunidade LGBTT em situação vulnerável e também o programa Transcidadania, que auxiliará 100 pessoas do grupo transgênero na busca de capacitação profissional, além de se comprometer a lhes pagar uma bolsa-auxílio de R$ 840 para que essas pessoas tenham uma condição mínima de sobrevivência. Outra iniciativa no município é a colocação de gays e travestis na fila preferencial do programa “Minha Casa, Minha Vida.”

Não somos cidadãos, não temos nem documentação coerente com o nosso gênero. Isso causa um mal-estar, uma humilhação constante. A sociedade nos coloca como doentes mentais. – João W.Nery

São atitudes tímidas se levarmos em consideração que uma esmagadora maioria das travestis e transexuais ainda precisa recorrer à prostituição para sobreviver e que a expectativa de vida das travestis brasileiras é de 35 anos, porém demonstra que a atuação de grupos organizados na política pode reverter essa realidade, mesmo com a bancada evangélica, que corresponde a uma considerável parcela das cadeiras do Poder Legislativo do país.

Desde 2008, o SUS possui no rol de tratamentos o processo de redesignação de sexo para pessoas que não podem recorrer ao sistema de saúde particular; em 2013, esse órgão estabeleceu novas diretrizes para homens trans poderem ter acesso ao tratamento. Embora ele esteja longe da perfeição – muito disso se deve também aos problemas estruturais do próprio SUS –, é mais um degrau para a inclusão.

Mesmo citando todos os fatores que podem ser recebidos como boas notícias, muitas travestis e mulheres trans ainda sofrem para conquistar seu local de fala e se empoderar. Temos exemplos deploráveis de exclusão no próprio movimento feminista: a transfobia é tolerada por algumas de suas participantes, que entendem que mulheres só são consideradas mulheres quando nascem com uma vagina. São essas situações em que a frase da escritora Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, é colocada pra escanteio.

A analista de sistemas e mulher transexual feminista Daniela Andrade, que luta pelo reconhecimento dos direitos básicos dos transgêneros, também é uma das idealizadoras da plataforma Transempregos, uma iniciativa que busca facilitar a inclusão trans no mercado de trabalho, mesmo sem receber nenhum tipo de subsídio público. A atuação de Daniela é exemplo na militância como a de outras ativistas, como a Travesti Reflexiva e a Amanda Palha, que, além de serem páginas de referência nas redes sociais, também trazem a militância na vida real. Porém, não são poucas as ocasiões em que Daniela foi silenciada.

Daniela Andrade. Foto: Reprodução/Facebook.

“Em 2014, na semana do 8 de março, tinha uma mesa sobre violência contra a mulher na USP e a minha participação foi vetada, porque eu sou uma mulher trans”, conta. “Existem mulheres na periferia que nunca leram um livro sobre feminismo e são muito mais feministas do que muita gente na academia. Feminismo é uma questão de empatia: eu não preciso ler mil livros sobre lesbiandade para me sentir próxima à causa das mulheres lésbicas, por exemplo”, continua a ativista.

Para ela, a luta é única, uma vez que “o que une todas as mulheres é o fato de elas serem consideradas por toda a sociedade misógina um ser inferior por comportar as características daquilo que a sociedade considera como feminino”.

Daniela também aponta que há uma diferença gritante entre a orientação sexual e a identidade de gênero, aspectos que costumam ser tratados como sinônimos. Isso acaba dificultando o reconhecimento da luta trans. “Infelizmente, o movimento LGBT luta tanto pela aceitação da orientação sexual, [mas] se ele lutasse pela questão da visibilidade dos múltiplos gêneros, de lambuja a sociedade i[ri]a entender a orientação sexual. Se você consegue entender que não sou prisioneira do meu genital, não sou prisioneira dos meus hormônios, do meu corpo, por conseguinte, vou conseguir entender que não sou prisioneira de nada que tenha sido engendrado pela biologia e que, até hoje em dia, os cientistas da nossa vida se orientam por uma questão biológica. Quer dizer, se você nasceu com uma vagina, necessariamente você tem de menstruar? Necessariamente você tem de ser mãe? Engravidar? Segundo esse conceito biológico-determinante, sim. Não naturalize o que é imposto socialmente. Há um sem-número de mulheres que jamais seriam mães se não fosse a sociedade impondo que elas devem ser isso, que, se você não quer ser mãe, você é a bruxa má.”

O que une todas as mulheres é o fato de elas serem consideradas por toda a sociedade misógina um ser inferior, por comportar as características daquilo que a sociedade considera como feminino. – Daniela Andrade

Não se pode generalizar e dizer que todas as mulheres trans e travestis são engajadas, porém o fato de não se conformarem com a binariedade de gênero imposta pela sociedade já representa um ato político por si só. Ainda mais se levarmos em consideração que grande parte dessas pessoas traz histórias tristes para contar em relação à aceitação dos familiares e também sobre coisas mais básicas, como o uso de um banheiro público e as dificuldades de serem chamadas pelo pronome correto e de também se relacionarem social e intimamente. É como se serem quem são as obrigasse a serem párias.

A travesti doutoranda pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autora do blog “E se eu fosse puta”, Amara Moira aponta uma dessas questões problemáticas, especialmente pela “fetichização” da sociedade brasileira da figura da travesti. “Travestis não conseguem sequer ser tratadas com respeito pela mídia, dado o estigma brutal que paira sobre elas, dada a ligação extrema que toda a classe tem com a prostituição (e, logo, com a promiscuidade e com a perversão sexual). Nome de registro? Jamais deve ser abordado, pois é um nome que só serve para violentar suas identidades. Se uma matéria na mídia diz que ela é conhecida como Fulana, é como Fulana que ela deve ser tratada, visto que é dessa forma que ela é conhecida”, explica.

Amara Moira. Foto: Repdrodução/Facebook.

Amara destaca também que travestis são uma parcela ainda mais marginalizada do que as transexuais. “Travestis ainda estão reféns […] do assistencialismo do Estado, das políticas públicas que só as reconhecem como sujeitos políticos porque apresentam alta incidência de HIV. Como diz uma amiga trans, para o Estado, travestis são o aedes aegytpi humano. Transexuais ‘nasceram no corpo errado’;[já] travestis são pura perversão, na visão da sociedade cissexista.”

Recentemente foi aprovada a inclusão do crime de feminicídio no Código Penal Brasileiro, porém, numa tática de última hora da bancada fundamentalista, o crime só prevê a proteção de mulheres cisgêneras. Isso só reforça que ainda temos uma longa jornada a percorrer na luta pelos direitos sociais de minorias.

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