O enredo da Mangueira conta a história do Brasil que o racismo apagou

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Em coluna, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem vindo ao Guia Historicamente Correto do Brasil.

Se você estudou em uma escola pública brasileira na década de 90, deve ter ouvido que os negros foram escravizados e libertos pela benevolente Princesa Isabel; que as poucas rebeliões contra esse sistema desumano foram lideradas apenas por Zumbi após a traição do seu tio Ganga Zumba — dependendo do desprezo do professor com essa parte da história brasileira, você deve ter achado que Ganga Zumba e Zumbi eram a mesma pessoa.

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Então você cresce e de repente se depara com nomes que nunca ouviu antes como Dandara, a mulher de Zumbi e Chico da Matilde, o Dragão do Mar que aboliu a escravidão no Ceará quatro anos antes da Lei Áurea. Mais anos vão se passando e novas informações, novos nomes entram na cena da historiografia sobre a escravidão brasileira e aquela ideia de que Isabel foi a redentora do povo negro cai por água abaixo. Descobrimos que os próprios negros geraram tensões para sua liberdade e, em sua maioria, já eram livres antes mesmo de 1888. Mas, afinal, que bagunça é essa na história do Brasil?

“História para Ninar Gente Grande”, o samba-enredo vencedor do carnaval 2019 pela Estação Primeira de Mangueira levantou a arquibancada cantando: “Brasil, meu dengo. A Mangueira chegou, com versos que o livro apagou”. Isso, estamos falando de um apagamento, um esforço coletivo para ignorar o ponto de vista de outros povos da colonização até a proclamação da república brasileira, um apagamento que foi trazido com as caravelas portuguesas e filosofias europeias, mas que está perdendo força como foi presenciado nos sambódromo do Rio de Janeiro e também de São Paulo, com a Mancha Verde que se consagrou este ano dando vida para a poderosa Aqualtune, rainha de Palmares e sua descendência que vai de Ganga Zumba até Zumbi.

Essas novas versões dos fatos históricos surgem após um período tenebroso no mundo. As grandes navegações levaram a morte às Américas — foram cerca de 90 milhões de ameríndios exterminados. Na África, algumas estimativas passam a 100 milhões de pessoas impactadas com a escravidão. Os efeitos contínuos criados além disso pelas invasões, guerras coloniais, estupros e genocídios como os do Congo Belga (e por outras formas de opressão da dignidade do povo negro atualmente) ficou conhecido pelo termo suaíli Maafa, traduzido como o Holocausto Negro.



Toda essa violência promovida pelas elites brancas europeias precisava de um aporte moral, algo que diante de tamanha desumanização pudesse servir como justificativa psicológica e ética. Esse suporte veio com a criação do Mito da Modernidade: a ideia de que a Europa estava “levando a civilização” para lugares selvagens. Esse mito é descrito no livro 1492: o encobrimento do outro. A origem do “mito da modernidade”, do autor Enrique Dussel. Esse imaginário colonial fundamentou as ideologias eurocentradas, aquelas que determinavam que a Europa era o centro da intelectualidade mundial.

“Os intelectuais europeus convenceram-se de que os objetivos, os conhecimentos, o poder e a riqueza de sua sociedade eram tão preponderantes que a civilização europeia deveria prevalecer sobre todas as demais.”

Joseph Ki-Zerbo, História Geral da África I – Metodologia e Pré História da África

O sociólogo e professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, estuda essas ideologias hegemônicas que hierarquizaram ou subalternizaram outros saberes, culturas e memórias, numa lógica dominante e excludente. Ele chamou o extermínio de outras culturas de epistemicídio.

Historiografia e antropologia com olhar racista

A partir desses conceitos, elaborados da convergência de correntes de pensamento de movimentos como o Renascimento e Iluminismo, os estudos das ciências humanas foram ganhando forma e a historiografia ganhou um olhar extremamente racista sobre os africanos e ameríndios. Em sua Filosofia da História, Hegel, um dos pensadores e filósofos mais influentes do século 18, defendeu que “a África não é um continente histórico”. Suas ideias fundamentaram uma corrente filosófica, o hegelianismo, que ganhou amplo espaço na cultura da época. Obviamente, quando ele se referiu à falta de história na África, estendeu o entendimento para as pessoas pretas, os africanos.

Para Hegel, “os povos negros são incapazes de desenvolver e receber uma educação”. Mais tarde, Richard Francis Burton, fundador da Sociedade Antropológica de Londres escreveu: “o negro puro se coloca na família humana abaixo das duas grandes raças, árabe e ariana” na sua obra Mission to Gelele, King of Dahomey — que deveria explorar com respeito um dos últimos Impérios Africanos da história.

O eurocentrismo sempre foi intenso em todos países que foram colônias europeias desde suas fundações, mas o racismo científico que surgiu no século 18 se tornou um movimento no Brasil em 1910, tendo Raimundo Nina Rodrigues como um dos seus maiores defensores. Em uma de suas obras, intitulada “Os Africanos no Brasil” e publicada em 1932, ele discursa abertamente:

“Não o pode deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e as virtudes privadas de certas e determinadas pessoas. Se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, não há de obstar esse fato o reconhecimento desta verdade — que até hoje não se puderam os Negros constituir em povos civilizados.”

A essa altura, o olhar prejudicado pelo racismo fez os historiadores desprezarem os negros e darem palco apenas para os pontos de vistas e personagens brancos em suas obras. Fato verificável também na obra de Gilberto Freyre Casa Grande & Senzala, que chega a romantizar a escravidão com trechos como “O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava”.

É provável que quase todos os grandes nomes da elite intelectual branca e brasileira estavam alinhados com as orientações racistas dessa historiografia europeia. Só que isso começou a mudar, muito recentemente.

Negros se libertam para reconstruir seu conhecimento histórico

Nos EUA aconteceu um movimento único para a intelectualidade negra, talvez o mais antigo desde a abolição da escravatura. Várias entidades negras envolvidas com a luta dos direitos civis e contra o preconceito iniciaram suas próprias universidades e desenvolveram seu próprio conhecimento, isento do racismo científico. A Morris Brown College foi a primeira universidade historicamente negra do país (1881), anos antes da abolição brasileira. Em 1888, outra universidade negra, a Fisk University, formou o pai da intelectualidade negra norte-americana William Edward Burghardt “W. E. B.” Du Bois.

A África ainda estava dividida para os vários impérios Europeus, que impediam a produção intelectual africana por muitos anos, até que Gana rompeu os laços e se tornou o primeiro país livre, carregando o lema “”é melhor ser independente para governar sozinho, bem ou mal, do que ser governado pelos outros”. Isso é muito recente, aconteceu em 1957. Se iniciou então um movimento rumo à decolonialidade. O termo se refere basicamente a um esforço que reconheça a existência de múltiplas visões que contribuam para o alargamento dos horizontes de experiências e práticas sociais e políticas alternativas, desmontando a exclusão dos conhecimentos de outros povos promovidos pelo monopólio europeu/colonial.

Esse movimento se intensificou na América Latina por volta de 1990. Porém, grande parte das bibliografias brasileiras ainda apresenta a visão única, protagonizada pelo ponto de vista da colônia, império e militar. Durante a ditadura, militares limaram muitos os esforços de revisitar a historiografia nacional. O grande problema desse período de apagamento histórico é que as evidências foram destruídas. Exploradores, historiadores e antropólogos com uma visão racista não estavam interessados em catalogar a vida e a cultura de índios e negros. Eles destruíram a maioria dos documentos, esculturas, registros, artefatos religiosos, mocambos, aldeias e até nomes em língua nativa foram alterados ou silenciados, pois acreditavam que nada tinha valor. O resgate é demorado, requer uma investigação minuciosa das entrelinhas e das narrativas que foram mantidas pelas tradições orais — essas que a historiografia tradicional insistiu em ignorar.

Existe um ditado africano que diz “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça seguirão glorificando o caçador.”

O que é o enredo da Mangueira senão um rugido dos próprios leões? Segundo a sinopse oficial do enredo da escola “Levando em conta apenas pouco mais de 500 anos, a narrativa tradicional escolheu seus heróis, selecionou os feitos bravios, ergueu monumentos, batizou ruas e avenidas, e assim, entre o ‘quem ganhou e quem perdeu’, ficamos com quem ‘ganhou’. Índios, negros, mulatos e pobres não viraram estátua. Seus nomes não estão nas provas escolares. Não são opções para marcar ‘x’ nas questões de múltiplas escolhas.”

Estamos vivendo um momento em que a historiografia brasileira está ganhando novos nomes, novas narrativas e dando vida e memória a todos aqueles que sofreram nas senzalas e foram mortos defendendo o povo negro do país. Temos espaço e autonomia para erguer os novos monumentos para personalidades como a bandeira levantada em homenagem à como Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada em março do ano passado.

Novos leões estão ganhando força no Brasil e o nosso rugido vai começar a recontar toda nossa história e levantar um império cultural afro-brasileiro.

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